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A luta contra o racismo no futebol brasileiro: contributos constitucionais

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Agenda 21/10/2024 às 15:38

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente estudo é contribuir com aportes do Direito Constitucional para com a questão do racismo no meio futebolístico brasileiro. Sabe-se que a Constituição Federal é a norma mais importante do ordenamento jurídico, e deve se valer de força normativa, isto é, a pretensão de concretização da teoria em realidade.

No primeiro capítulo, tem-se a tratativa do direito fundamental à igualdade, previsto na Constituição Federal de 1988, e sua relação com a discriminação em razão da cor no futebol brasileiro. São abordadas as três dimensões do direito à igualdade (formal/processual; material/real; e como reconhecimento), e demonstra-se como as ações afirmativas, através das cotas raciais, podem ser aplicadas no panorama futebolístico do Brasil.

No segundo capítulo, o foco está em como o direito social à educação, estabelecido na Carta Constitucional, pode servir como meio de combate ao racismo no futebol brasileiro.

Por fim, no terceiro capítulo, busca-se melhor aclarar o tópico acerca da punição de atos racistas no contexto do futebol no Brasil, já que a controvérsia a respeito de quem e como punir permanece latente.


  1. O RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO E O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE

O direito fundamental à igualdade se subdivide em três dimensões: igualdade formal/processual; igualdade material/real; e igualdade como reconhecimento.

A igualdade formal/processual denota que todos devem ser tratados igualmente, como a lei exige. Contudo, no plano fático, mesmo que a lei preveja igual tratamento a todos a ela subordinados, ainda perduram desigualdades entre os indivíduos. Dessa forma, a igualdade formal, por si só, não consegue conter os desníveis existentes no seio social.

Tem-se como exemplo o teste de aptidão física nas carreiras policiais. Sob o prisma da igualdade formal, as regras seriam as mesmas, tanto para homens, quando para mulheres, desconsiderando-se que mulheres não possuem o mesmo vigor físico que os homens.

Segundo Rafael de Lazari:

[...] neste enfoque formal, a igualdade pode ser na lei (normas jurídicas não podem fazer distinções que não sejam autorizadas pela Constituição), bem como perante a lei (a lei deve ser aplicada igualmente a todos, mesmo que isso crie desigualdades indiretas) (Lazari, 2024, p. 322).

A igualdade formal está insculpida na Lei Básica, em seu art. 5º, caput, e inciso Ⅰ:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

A igualdade material/real surge para abrandar as desigualdades concretas, essas que a igualdade formal não consegue, efetivamente, resolver. Retomando-se o exemplo do teste de aptidão física nas carreiras policiais, tem-se que haveria uma compensação para as mulheres quando da realização do teste, já que, como dito, não possuem a mesma força física do que indivíduos do sexo masculino.

Conforme Marcelo Novelino:

A concepção material de igualdade tem como ponto de partida a fórmula clássica de Aristóteles, segundo a qual os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade. Na lição de Rui Barbosa (2003), “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”, pois “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real” (Barbosa, 2003 apud Novelino, 2024, p. 383).

A igualdade material está referenciada no art. 3º, incisos Ⅰ e Ⅲ, do texto constitucional:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

A igualdade como reconhecimento, terceira dimensão do direito fundamental, de acordo com Luís Roberto Barroso, consiste no “respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras” (Barroso, 2024).

Ainda segundo o atual Presidente da Suprema Corte:

O discurso da igualdade material, historicamente centrado na questão da redistribuição de riquezas e de poder na sociedade, recentemente passou a ser acompanhado por uma nova concepção, relacionada à ideia de igualdade como reconhecimento. O discurso de base marxista acerca da igualdade se demonstrou insensível às minorias (Sarmento, 2007, p. 194 apud Barroso, 2024, p. 504). A busca pela homogeneidade não era capaz de perceber o reconhecimento das diferenças étnicas ou culturais de diversos grupos e a necessidade de afirmação da sua identidade. A injustiça a ser combatida nesse caso tem natureza cultural ou simbólica (Fraser, 2000, p. 48-57 apud Barroso, 2024, p. 504). Determinados grupos são marginalizados em razão da sua identidade, suas origens, religião, aparência física ou opção sexual, como os negros, judeus, povos indígenas, ciganos, deficientes, mulheres, homossexuais e transgêneros (Barroso, 2024, p. 504).

A dimensão da igualdade como reconhecimento se localiza no art. 3º, ⅠⅤ, da Magna-Carta:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Para além das dimensões do direito fundamental à igualdade, imperioso destacar o tema das ações afirmativas. Estas são medidas administrativas ou legislativas, adotadas pelo poder público ou por ele fomentadas, com o objetivo de garantir certas prerrogativas à parcela da população que sofreu por uma discriminação ou prática nefasta no passado. São medidas temporárias, que cessam no momento em que restabelecem o equilíbrio à população que foi discriminada.

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De acordo com Rafael de Lazari:

[...] há se lembrar que o STF já reconheceu a constitucionalidade das políticas de ações afirmativas, seja para o caso de afrodescendentes e indígenas (ADPF n° 186/DF e RE n° 597.285/RS – via repercussão geral), seja para o caso de estudantes advindos do ensino público (ADI n° 3.330/DF), seja no caso de cotas para negros em concursos públicos (ADC n° 41/DF) (Lazari, 2024, p. 325).

Ações afirmativas no meio do futebol são plenamente possíveis, através das cotas raciais, já que o racismo estrutural existente se perfaz pelo baixo número de técnicos, dirigentes, presidentes de clubes e integrantes da justiça desportiva negros (Serrano, 2023).

Marcelo Carvalho, Diretor-Executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, afirma:

No caso do futebol, há ainda um agravante de que, dificilmente, observa-se anúncio de cargos. Não existe uma procura, um processo de seleção, seja de marketing, jurídico, comunicação, por exemplo, num clube. Esses espaços são preenchidos politicamente, por conta de amizade, grau de proximidade ou familiar. Para as pessoas negras, que já não estão presentes nesses locais, não é dada nem a possibilidade de indicar seus pares (Serrano, 2023, p. 229).

Consoante Igor Serrano:

A questão também se manifesta na Justiça Desportiva. Diante da essência fechada, política e de indicações, vemos Tribunais em sua maioria formados por homens ou mulheres brancos. A exceção à regra é o Tribunal ligado à Federação Baiana de futebol, que recentemente, em 2020, divulgou a nomeação dos novos auditores para o período de 2020/2024: dos nove, quatro eram negros, “algo totalmente diferente no cenário dos Tribunais de Justiça Desportiva de todo o Brasil”, como destacou o site do próprio TJDBA (Serrano, 2023, p. 202).

Nessa esteira, vislumbra-se que as cotas raciais são necessárias, inclusive no futebol, pois, em que pese serem medidas paliativas, servem como meio para se chegar à justiça social. Sem que haja desprendimento de esforços, no sentido de mudar uma situação desfavorável, tudo continuará como está.

Conforme salienta o Ministro Luís Roberto Barroso, uma das razões de atribuição de importância às ações afirmativas é a seguinte:

[...] a importância do acesso de pessoas negras a posições de liderança e destaque. Esse fato tem uma dimensão simbólica e motivacional sobre todos os integrantes do grupo social, oferecendo-lhes um modelo e inspiração. Isso aumenta a autoestima do grupo e dá força para oferecer resistência ao preconceito alheio. Por fim, se metade da população é negra, há um componente de justiça, representatividade e respeito ao pluralismo (Barroso, 2024, p. 506).

O Ministro Barroso acrescenta:

Tudo isso sem mencionar que o racismo estrutural e a exclusão social terminam por desperdiçar o talento e o potencial de metade da população brasileira. Uma vez devidamente integrado, esse enorme contingente de pessoas poderia se juntar, com maior capacidade, ao esforço coletivo de construção nacional (Barroso, 2024, p. 506).

Quando se fala de talento, negritude e futebol brasileiro, não há como não citar, nos dias atuais, o jogador brasileiro Vinicius Junior, o Vini Jr., que é um dos fortes candidatos aos prêmios de melhor jogador do mundo. Isso prova mais uma vez que a cor de pele não influencia, em nada, a capacidade do atleta.

Noutro giro, destaca-se, como ação afirmativa implementada pela República Federativa do Brasil, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Decreto n° 10.932, de 10.01.2022), firmada na Guatemala, em 05 de junho de 2013.

A Convenção é recente, tendo passado pelo rito do art. 5°, §3°, da Carta Magna, sendo, portanto, equivalente à emenda constitucional. Vejamos a redação contida na Lei Maior:

Art. 5°. [...]

§3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 

Dessa forma, a aludida convenção internacional cumpriu o requisito material (versar sobre direitos humanos), bem como o requisito formal (ser aprovada, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros).

Como bem pontua Rômulo de Andrade Moreira, é previsto na Convenção que:

Os Estados-partes comprometem-se "a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições da Convenção, todos os atos e manifestações de racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância, bem como a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos" (Andrade Moreira, 2022).


  1. A EDUCAÇÃO COMO CAMINHO PARA O COMBATE AO RACISMO NO FUTEBOL BRASILEIRO

A Constituição Federal traz logo na parte preambular, a seguinte escrita:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Dentre os direitos sociais mencionados no preâmbulo da Lei Maior, está a educação, conforme se nota do art. 6°:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 

Certamente, a educação é instrumento essencial de combate ao racismo. Esse também é o entendimento de figuras notáveis quando o assunto é discriminação racial no futebol, como o atleta Paulão (Paulo Marcos de Jesus Ribeiro), vítima de racismo em 2014 (quando atuava no Internacional – RS) e 2018 (quando atuava no Vasco); Marcelo Carvalho, Diretor-Executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol; Marcelo Jucá, Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol do Rio de Janeiro, de 2016 a 2020; e Paulo Schmitt, Procurador-Geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, de 2004 a 2016 (Serrano, 2023).

Segundo Camilo:

A infância bem educada dará ensejo à juventude bem estruturada, em termos gerais, o que produziria o surgimento de uma sociedade de adultos capaz de cultivar e cultuar a honradez, o trabalho, a honestidade, a fraternidade e a fé robusta, porque amparada pela razão e pelo altanado sentimento (Camilo, 2013, p. 20).

Nessa perspectiva, faz-se necessário que os jovens torcedores sejam bem educados, para que não venham a reproduzir condutas preconceituosas. Ações publicitárias podem ter o seu grau de eficácia, por atingirem massivo número de pessoas, contudo, imprescindível mesmo é a educação familiar e escolar.

Consoante Igor Serrano:

Em 2003, foi publicada a Lei n° 10.639/2003, que alterou as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino em escolas de ensino fundamental e médio, públicas e particulares, a previsão obrigatória do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História Brasileiras, com o seguinte conteúdo programático: “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”, além de incluir no calendário escolar o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra (Serrano, 2003, p. 49).

Com o advento da Lei n° 10.639/2003, o ensino escolar obteve um avanço inabordável, entretanto, não basta que haja a previsão legal. É forçoso que o Estado cumpra a sua missão constitucional de proporcionar uma educação de qualidade a todos os menores.

Há trecho da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, que versa sobre a educação, senão vejamos:

[Os Estados-partes] comprometem-se, ademais, "a formular e implementar políticas cujo propósito seja proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas, políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional, e a divulgação da legislação sobre o assunto por todos os meios possíveis, inclusive pelos meios de comunicação de massa e pela internet, além de adotar legislação que defina e proíba expressamente o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, aplicável a todas as autoridades públicas, e a todos os indivíduos ou pessoas físicas e jurídicas, tanto no setor público como no privado, especialmente nas áreas de emprego, participação em organizações profissionais, educação, capacitação, moradia, saúde, proteção social, exercício de atividade econômica e acesso a serviços públicos, entre outras, bem como revogar ou reformar toda legislação que constitua ou produza racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância" (Andrade Moreira, 2022, grifo nosso).


  1. DA CONTROVÉRSIA ACERCA DA PUNIÇÃO DE PRÁTICAS DISCRIMINATÓRIAS NO CONTEXTO FUTEBOLÍSTICO BRASILEIRO

Um ponto que ainda gera debates é quem punir e como punir. O art. 243-G, do CBJD (Código Brasileiro de Justiça Desportiva), traz as punições no âmbito esportivo, vejamos:

Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.

§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.

§ 3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art. 170.

Nota-se que a redação do artigo é aberta, ensejando diversas interpretações. O trecho “caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva” gera dúvidas, no sentido de quem seriam as pessoas vinculadas à entidade, podendo ser torcedores, atletas, membros da comissão técnica, entre outros. Além de que a expressão “considerável número de pessoas” deixa em aberto a quantidade de indivíduos necessária para a formação do bando (Serrano, 2023).

Fernanda Soares ainda chama a atenção para o seguinte:

Consta nesse parágrafo [§2º] que o torcedor que praticou atos discriminatórios, se identificado, ficará “proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias”. É uma pena pesada, mas de rara aplicação, já que o controle de ingresso não é tão simples. Ocorre que o torcedor não é jurisdicionado da Justiça Desportiva, ou seja, ao torcedor não se aplicariam diretamente as decisões tomadas pelos tribunais desportivos já que a ele não se aplica o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Mas na incidência da pena prevista no § 2º do artigo 243-G está-se diante de um cenário no qual o torcedor pode ser punido num Tribunal regido por um Código ao qual ele não está submetido, por meio de um processo ao qual ele não tem direito ao contraditório e à ampla defesa. A aplicação da pena seria flagrantemente inconstitucional (Soares, 2021, grifo nosso).

Para além das sanções desportivas, é preciso ter em mente que pode haver penalidades, também, nas esferas cível e criminal.

A esse respeito, a Convenção Interamericana contra o Racismo assegura que é preciso:

Garantir às vítimas do racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de Justiça, processo ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente (Andrade Moreira, 2022).

O árbitro Márcio Chagas, por exemplo, ajuizou Ação Indenizatória a título de reparação por danos morais, por ocasião dos incidentes racistas sofridos no dia da partida entre Esportivo x Veranópolis, em 05/03/2014 (Serrano, 2023).

Na esfera criminal, com o advento da Lei n° 14.532/23, o crime de injúria racial foi equiparado ao crime de racismo, e, dessa maneira, a ação penal deixou de ser pública condicionada à representação, e passou a ser pública incondicionada. Isso significa que a persecução penal pode ser iniciada de pronto pelo Ministério Público, sem anuência da vítima (Serrano, 2023).

Entendemos que deixar a tarefa de punição dos atos racistas sob responsabilidade do Ministério Público é um grande avanço, já que, nos ditames do art. 127 da Carta Constitucional “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Em conformidade com Salomão Ismail Filho:

Verdadeiramente, a Carta de 1988 consagrou o Parquet como verdadeiro Advogado e ouvidor da coletividade, Povo, no sentido de servi-lo, a fim de assegurar os direitos e garantias constitucionais perante os poderes constituídos; ou seja, a instituição deve funcionar como um verdadeiro instrumento para a promoção da dignidade humana (Dallari, 2009 apud Ismail Filho, 2024, p. 47).

O Ministério Público pode requisitar acesso às imagens do estádio, para identificação dos infratores, bem como ao que foi relatado na súmula da partida pelo árbitro, dentre outras medidas. Todo meio de prova é importante e não pode ser dispensado, por conseguinte, a arbitragem dos jogos deveria sempre informar a ocorrência de atos racistas nas súmulas, o que nem sempre acontece (Serrano, 2023).

Além do mais, após a equiparação feita pela Lei n° 14.532/23, é importante destacar que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável, nos termos do art. 5º, ⅩⅬⅡ, da Carta da República:

Art. 5°. [...]

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Sobre o autor
Bruno Miranda e Silva

Graduado em Direito pela PUC Minas; pós-graduando em Política Criminal, Segurança Pública e Direito Penal, pela PUC Minas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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