Capa da publicação Racismo no futebol: origens, impactos e normas criminais
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O negro no futebol brasileiro.

O racismo sob a égide penal

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Resumo:


  • O racismo no futebol é um problema persistente e global, com episódios recentes envolvendo atletas como Daniel Alves e Tinga, que foram alvo de ações discriminatórias em campo.

  • A legislação brasileira, incluindo a Lei Caó (Lei nº 7.716/1989) e o artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, busca punir práticas discriminatórias, mas enfrenta desafios na aplicação e na eficácia das medidas punitivas.

  • Há uma necessidade de revisão e criação de tipos penais mais específicos para combater o racismo no futebol e em espetáculos públicos, visando uma punição mais severa e efetiva contra os infratores.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O presente artigo visa abordar o tratamento penal concebido ao racismo existente dentro do futebol no brasileiro, considerando o contexto histórico, assim como a repercussão midiática do tema, traçando um paralelo em relação à própria escravidão.

INTRODUÇÃO

Recentemente, acompanhamos inúmeras ocorrências demonstrativas da mediocridade humana. Repercutindo em toda a imprensa mundial, em uma partida realizada entre as agremiações espanholas Barcelona e Villareal, o lateral esquerdo Daniel Alves, de nacionalidade brasileira, foi humilhado diante das câmeras, quando um funcionário do clube rival, tomado por um gesto antirracial, arremessou e sua direção, no gramado, uma banana.

O caso narrado, no entanto, não é exclusividade em território estrangeiro. Em outra situação recente, o jogador de futebol Tinga, defensor de um clube mineiro, o Cruzeiro, foi hostilizado por torcedores da agremiação rival do América Mineiro Futebol Clube. No primeiro caso, a atitude do funcionário do clube Villareal objetivou discriminar o jogador Daniel Alves por conta de sua procedência nacional. Já no segundo caso, a discriminação ocorreu por conta da pigmentação da pele (Tinga é negro).

Os casos narrados trazem à baila um assunto espinhoso: o racismo no futebol. O presente trabalho tem como alvo este delicado problema social. Inicialmente, traçaremos a origem do futebol em terras tupiniquins para tentar identificar o início da problemática. O desenvolvimento do trabalho seguirá com a análise de alguns episódios de racismo no futebol brasileiro e, sob um enfoque constitucional, o histórico das legislações aplicáveis nesses casos, tecendo, ao final, as diferenças entre a injúria racial e o crime de racismo propriamente dito na legislação atual. Por fim, se fará uma análise pontual sobre quais tipos penais devem responder os infratores desta repugnante espécie criminosa que tanto nos envergonha.


1. A ORIGEM DO RACISMO

As pesquisas encetadas sobre a origem do racismo nos revela que a demarcação de sua origem é incerta.

Na obra de Amaury Silva e Artur Carlos Silva, “Crimes de Racismo”, editora J.H. Mizuno, 2012, página 17, encontramos um artigo interessante acerca do assunto:

“Ao explicar sobre a origem do racismo no mundo, o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular da FFLCH/USP e autor de "Origens Africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias, Línguas, Culturas e Civilizações", Editora Global, enfatiza que: não existe unanimidade entre os estudiosos sobre a origem do racismo. Sociólogos e antropólogos pensam que o racismo foi construído na modernidade ocidental pelos filósofos iluministas e naturalistas. A partir do século 18, esses filósofos Iniciaram a obra de classificação científica da diversidade humana em raças distintas, decretadas por eles de inferiores e superiores com base nas diferenças somáticas. Já trabalhos mais recentes, como o de Isaac Benjamm (Racism and Oxford, Princeton University Press, 2004), encontram as raízes do racismo na antigüidade clássica, entre os gregos e os romanos. Apesar da controvérsia sobre as origens do racismo, sua essência é única. É a idéia de que a diversidade humana é composta de grupos biologicamente contrastados (cor da pele, traços morfológicos e marcadores genéticos). Esses grupos são hierarquizados com bases nessas diferenças em raças superiores e inferiores, numa pirâmide encabeçado pelo grupo branco, tendo os negros na base inferior e os chamados amarelos na parte intermediária. Essa classificação é usada para justificar e legitimar a dominação de um sobre os outros.”

(In: https://claudia.abril.com.br - acesso em 14.06.2011).

Segundo os autores da obra supracitada:

“os fundamentos das teorias raciais são elaborados a partir de três vertentes: a tipologia racial, darwinísmo social e estudos protossociológicos, que mereceram a seguinte abordagem de Evandro Charles Piza Duarte: As duas primeiras, que emergiram de descobertas no reino biológico, são contemporâneas ao surgimento da Criminologia positivista, estando associadas sobretudo à noção negativa em que o termo raça foi inicialmente empregado e ao surgimento de sua forma derivada, o racismo. Ambas negaram a cisão entre corpo e alma, tão cara ao pensamento religioso, assim como apresentaram o antagonismo interracial como um fato implantado na natureza das raças. A terceira, surgida da tentativa de os investigadores americanos formularem explicações sociológicas para aquilo que acreditavam constituir problemas sociais, está associada a própria desconstrução da Ideologia da desigualdade-inferioridade presente nas teorias anteriores e aos movimentos de emancipação dos grupos sociais racialmente rotulados como inferiores.”

(In: Criminologia & Racismo. 2009, Juruá Editora, p. 86)

Apesar de pouco se saber acerca das raízes do racismo, a grande verdade é que ainda hoje, ele é uma realidade. Está enraizado em todas as sociedades, em todos os lados, em alguns lugares de maneira mais discreta, em outros, de maneira bem aflorada.


2. NEGROS NO FUTEBOL

2.1. Reflexão Preliminar

O futebol é o esporte eleito por muitos como “esporte das massas”. Como se sabe, na visão populista, o futebol não exige muitos requisitos para ser praticado.

Em que pesem as regras do futebol profissional estabelecerem que, para a pratica do esporte, necessário se faz a obediência a alguns requisitos, para o bom e velho futebol brasileiro, aquele praticado nas ruas, nos campos, nas areias das praias ou num terreno baldio, basta uma bola, a grande protagonista do espetáculo e meia dúzia de interessados.

O futebol dos últimos tempos se consagrou sim em um esporte que pode ser praticado por qualquer pessoa, seja ela com muita ou nenhuma posse. Todavia, seu atual status não o acompanha desde o início da história, do seu surgimento no solo brasileiro.

A título de curiosidade, no tópico seguinte, iniciaremos uma abordagem histórica acerca do surgimento do futebol no Brasil, descrevendo, com riqueza de detalhes, a transição do esporte elitista ao esporte do povo.

2.2. Futebol: o esporte da aristocracia

É de conhecimento comum que o pai do futebol brasileiro, Charles William Miller, de origem inglesa, trouxe a prática do desporto em comento às terras brasileiras.

Tido inicialmente como atividade privativa dos aristocratas (o esporte bretão era praticado por ricos, brancos ou, pelo menos, pessoas de boa família), ganhou destaque no Distrito Federal, na então cidade do Rio de Janeiro.

À guisa de exemplo da classe social que desfrutava da prática do desporto, vale trazer à baila passagem da obra “O Negro no futebol brasileiro”, 5ª edição, Ed. Mauad, 2013, p. 29 e 32, do jornalista Mario Filho:

“O futebol era divertimento. Como todo divertimento custava dinheiro. Mais ou menos. Menos em Bangu do que na Rua Retiro de Guanabara, onde o Fluminense fizera o seu campo. Por isso não havia o perigo de que um Francisco Carregal, apesar de mulato limpo, ou um Manuel Maia, apesar de bom preto, respeitador, entrasse no Fluminense. Para entrar no Fluminense o jogador tinha de viver a mesma vida de um Oscar Cox, de um Félix Frias, de um Horácio da Costa Santos, de um Waterman, de um Francis Walter, de um Etchegaray, todos homens feitos, chefes de firmas, empregados de categoria de grandes casas, filho de papai rico, educados da Europa, habituados a gastar. Era uma vida pesada. Quem não tivesse boa renda, boa mesada, bom ordenado, não aguentava o repuxo. (…) Para alguém entrar no Fluminense tinha de ser, sem sombra de dúvida, de boa família. Se não, ficava de fora, feito os moleques do Retiro da Guanabara, célebre reduto de malandros e desordeiros. Os moleques debruçavam se na cerca de arame para ver os treinos, se a bola ia fora podiam correr atrás dela, dar um chute. Mas nada de demora. Se demorassem não levariam as malas dos jogadores, acabado o treino, até o bonde que passava na Rua das Laranjeiras”.

A participação dos negros no esporte bretão foi se dando gradativamente, através de alguns clubes, o que foi visto com maus olhos pela sociedade. Nesse sentido, vale conferir outra passagem da obra de Mario Filho:

“Gradativamente, admitiu-se o ingresso dos negros e mulatos no plantel das equipes das fábricas. Leia-se bem o termo que ora empregamos: 'admitiu-se'. Ou seja, não foi algo pacífico. Foi algo que foi acontecendo. Um aqui, outro acolá. Todavia, essa aceitação não foi pacífica (…) o Bangu tinha seus ingleses, mais brancos do que os brasileiros do Botafogo. Tinha os seus ingleses, mas tinha também os seus operários, os seus brancos pobres, os seus mulatos, os seus pretos. O que distinguia o Bangu do Botafogo, do Fluminense, era o operário. O Bangu, clube de fábrica, botava operários no time em pé de igualdade com os mestres ingleses. O Botafogo e o Fluminense, não, nem brincando, só gente fina. Foi a primeira distinção que se fez, entre clube grande e pequeno, um, o clube dos grandes, o outro, o clube dos pequenos. O Bangu sentiu isso antes de qualquer outro clube. E não se conformou logo. Teve suas revoltas, invadindo o campo depois do jogo, jogando pedras no trem, ficando com a taça. E também querendo jogar só com clube pequeno, de operário, de subúrbio. Surgiram outros clubes suburbanos. O Esperança, o Brasil, Bangus mirins, ajudados também pela fábrica. Ao lado deles o Bangu era grande. Quase parecia o Fluminense, com os seus ingleses e seus filhos ingleses. Não se parecia inteiramente porque havia um, dois operários no meio dos mestres. Um mulato, um preto”.

Esta situação perdurou por muitos anos, até o futebol conquistar a todos: brancos e negros, ricos e pobres, todos, sem exceção.

2.3. Histórico do racismo no futebol brasileiro

A história do futebol brasileiro nos revela que a discriminação racial sempre esteve aqui impregnada.

No prefácio elaborado pelo escritor e historiador Édison Carneiro, a realidade vivida pelos negros no futebol brasileiro fica bem clara:

“Quando o futebol começou a candidatar-se à preferência popular, faltavam ao negro dinheiro e posição social. Naqueles tempos, as regatas e as corridas de cavalos eram as diversões prediletas. Esporte era para ricos, para brancos ou, pelo menos, paia pessoas de boa família. O futebol não excluiu, inicialmente, o negro, mas não lhe deu as mesmas regalias que ao branco. O negro se conformava, parecia conhecer o 'seu’ lugar, e o branco podia assumir a confortável atitude do bom senhor em relação aos escravos dóceis e obedientes. O paternalismo desse primeiro período não durou muito. O interesse do público aumentava cada dia - o futebol não dava camisa a ninguém, mas dava renome e fama - o remo e o turfe passavam a segundo plano - e houve um recrudescimento do preconceito de cor. No espírito do tempo, dos ominosos tempos em que o fascismo estava em ascensão no mundo, a Ame, uma liga local, e a CBD se lançaram a campanhas de 'arianizacão' do futebol, afastando dos times jogadores pretos e mulatos, então numerosos - conta Mario Filho - nos clubes do subúrbio, Bangu, Andaraí, América, Vasco e São Cristóvão. Tão deliberada era essa atitude dos racistas do futebol que nem mesmo se importavam com o risco da derrota em partidas internacionais. A ofensiva segregacionista fez as suas baixas nas hostes de cor - feridos, estropiados, desertores. Alguns tentaram disfarçar a cor - Friedenreich engomava o cabelo, houve um mulato que cobria o rosto com uma camada tão espessa de pó-de- arroz que acabou dando o famoso apelido ao Fluminense. Outros, mais seguros de si, como Robson, declaravam já terem sido pretos. Outros se envergonharam e se deixaram subjugar, como Manteiga, que aproveitou a primeira oportunidade para voltar à sua terra, a Bahia, ou Leônidas que vilipendiado, se refugiou em São Paulo. Outros ainda se asilaram em times estrangeiros”.

Mas a realidade é que os dirigentes dos grandes clubes, em dado momento, compreenderam que não se faziam grandes times sem a presença dos talentosos negros e mulatos.

Nesse sentido, vale destacar prefácio à 4ª edição da obra de Mario Filho, escrita pelo professor e cientista político Luis Fernandes:

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“A narrativa do Mario Filho conta, igualmente, como esta estrutura elitista que dominou o futebol brasileiro nos seus primórdios veio a ser quebrada. Na Capital Federal, os marcos desta ruptura foram os triunfos do Vasco da Cama no campeonato de 1923, do São Cristóvão no de 1926, e do Bangu no de 1933. Todos eram clubes de origem popular, com sedes no que então se consideravam 'bairros periféricos' da cidade, e contavam com numerosos jogadores negros, mulatos e de origem humilde. Destes clubes, como é sabido, apenas o Vasco conseguiu se consolidar na elite do futebol brasileiro (o próprio conceito de 'elite' passando a ser referido não mais à condição social dos atletas ou associados do clube, mas ao seu desempenho esportivo em seguidas competições). Mas o destaque dado à ascensão do Vasco em 1923 na narrativa de Mario Filho deve-se ao fato de esta ter operado uma 'verdadeira revolução' no futebol brasileiro. A aguda sensibilidade social do cronista, reforçada pelos depoimentos colhidos nas entrevistas, captou o significado mais profundo e duradouro desta revolução: Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor. No futebol, assim como na vida social e na História em geral, todo processo de ruptura se depara com a reação das forças dominantes que se sentem ameaçadas. No caso da ascensão do Vasco em 1923, esta reação se deu em duas frentes. A primeira, ainda com o campeonato em andamento, se processou na própria assistência dos jogos. A escalada vitoriosa de um clube de origem popular trouxe uma afluência de novo tipo às nobres arquibancadas dos clubes tradicionais. O próprio Mario Filho relata como havia se tornado costume entre 'famílias de bem', após assistir missa na Igreja da Matriz da Glória no Largo do Machado, se dirigir, ainda trajando as suas melhores roupas de domingo, para o estádio do Fluminense nas Laranjeiras, para acompanhar a performance dos seus filhos e amigos nos jogos de futebol. Com a ascensão do Vasco, essa seleta assistência passava a ter de disputar lugar nas arquibancadas com imigrantes portugueses, suas famílias, colegas e empregados. Para a elite da época, tratava-se de inaceitável subversão da hierarquia social. Guardadas as devidas proporções históricas, era como se, nos dias de hoje, uma turma de farofeiros invadisse o desfile de gala das socialites nas bancadas do Jockey Club Brasileiro em pleno Grande Prêmio Brasil. No caso do futebol, a primeira reação elitista a essa 'invasão' tomou a forma de um curioso e deslocado anti-lusitanismo, que se espalhou rapidamente entre os adeptos dos 'clubes grandes' do então (Fluminense, Flamengo, Botafogo e America). Tratava-se de uma espécie de reedição farsesca do jacobinismo anti-lusitano do inicio da República no Brasil. Mas o alvo do anti-lusitanismo republicano era a monarquia, ao passo que a sua nova versão futebolística se voltava contra o imigrante, por parte dc uma elite formada historicamente em convívio íntimo com a corte imperial. Por isso, as diatribes lançadas contra 'o português' mal disfarçavam a sua real carga de preconceito social. A segunda reação foi de natureza institucional, e muito mais séria. Os quatro clubes tradicionais acima citados se retiraram da Liga Metropolitana que organizara o campeonato vencido pelo Vasco e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (Amca). Sob a presidência do patrono do Fluminense, Arnaldo Guinle - que o próprio Mario Filho caracterizou como 'uma espécie de Príncipe de Gales do esporte brasileiro, a Amca adotou controles rígidos sobre a origem social dos atletas dos clubes filiados, incluindo a investigação minuciosa dos seus meios de sobrevivência e a aplicação de questionários extensos para aferir o seu grau de escolarização. O objetivo, segundo o autor, era expurgar os atletas negros, mulatos e de origem humilde que haviam subvertido o monopólio elitizado futebol que imperara até então. O Vasco não aceitou essas condições e permaneceu na Liga Metropolitana, gerando a disputa de dois campeonatos de futebol paralelos na Capital Federal. Alguns autores críticos da obra de Mario Filho sustentam que a ausência de referências explícitas à questão racial nos documentos da Amca não permitiria caracterizar os seus desígnios como 'racistas'. A verdadeira polarização se daria entre a defesa de formatos amadores ou semi profissionais para o esporte. Ocorre, no entanto, que a polêmica em torno do amadorismo está diretamente ligada à questão da origem social dos praticantes do futebol. Já vimos como as estruturas do amadorismo privilegiavam os estudantes c candidatos a bacharel na prática do esporte (e dada a composição étnica da nossa estratificação social, este era um universo quase que exclusivamente branco nas primeiras décadas do Século XX). O ponto forte da interpretação de Mario Filho, respaldada nos depoimentos dos principais participantes no processo que resultou na cisão do futebol carioca, reside, precisamente, no destaque dado ao entrelaçamento material e simbólico dos preconceitos raciais e sociais. Só assim podemos compreender a profundidade do enigmático comentário, citado no livro, do jogador negro Robson que atuava no Fluminense no início dos anos 50: 'Eu já fui preto e sei o que é isso'. O caminho da superação das barreiras sociais e raciais para a prática do futebol aberto pela ascensão do Vasco em 1923 e seguido pelo São Cristóvão em 1926 e o Bangu em 1933 foi coroado pela implantação generalizada do profissionalismo na década de 30. Este regime abriu definitivamente as portas dos grandes clubes brasileiros para jogadores profissionais negros, mulatos e de origem humilde (embora alguns, como o Fluminense, continuassem a fazer questão dc evitar o convívio dos atletas profissionais - definidos como empregados do clube - com o seu quadro social). Na seqüência da sua adoção do profissionalismo, a contratação dos maiores ídolos negros do futebol brasileiro – Leônidas da Silva e Domingos da Guia e Fausto dos Santos - pelo Flamengo em 1936 foi decisiva para a conquista de uma grande legião de adeptos para o clube em todo o país, superando as barreiras sociais e raciais que haviam marcado a sua história inicial”.

A realidade enfrentada pelos negros, tão bem narrada no livro do jornalista Mario Filho, não é exclusividade carioca. A seguir, destacamos narrativa acerca dos desafios enfrentados pelos negros no futebol gaúcho:

“É importante perceber que quando o futebol foi criado, a comunidade escravocrata não estava inserida no contexto social. O esporte foi criado e praticado por brancos, ingleses, europeus e posteriormente, pelo povo brasileiro. Aqui no Rio Grande do Sul, o primeiro clube surgiu em 1900, o Sport Club Rio Grande; e a abolição da escravatura não tinha ainda nem completado duas décadas. Mesmo com esta transição lenta, como é comum em qualquer sociedade, o Bangú já ousava ao escalar o seu primeiro homem “de cor” em 1905. Aos poucos, o Bahia, o Vasco da Gama e o Fluminense quebravam o preconceito em relação às raças. Em 1914, um negro chamado Carlos Alberto maquiava-se com “pó de arroz” e vestia a camisa do Fluminense, tentando disfarçar sua cor. No Rio Grande do Sul, um Estado colonizado basicamente por alemães e italianos, a inclusão era ainda um processo mais lento e complicado. Mas já mostrávamos sinais de mudanças, exemplo disso seria o time do Guarany de Bagé, campeão estadual de 1920, que mantinha negros e uruguaios na sua equipe. Os negros começaram a organizar as suas ligas para poder jogar futebol. Em Porto Alegre foi criada a liga independente dos “Canelas Pretas”, após o ano de 1910. Uma década depois, em Pelotas, era formada a liga “José do Patrocínio”; já em Rio Grande formava-se a liga “Rio Branco”. Em 1928, o Americano rompeu o preconceito, com Alegrete e Barulho; posteriormente o Internacional, com Dirceu Lopes; logo após, o Cruzeiro e o São José foram incluindo os negros nos seus plantéis. Mas os negros eram tolerados e não aceitos de forma ampla. No Grêmio, a lenda do Tesourinha foi uma das maiores jogadas de marketing do futebol gaúcho. Tesourinha não foi o primeiro negro a vestir a camisa tricolor, mas ele era a pessoa certa para quebrar este paradigma. Tesourinha era negro, simplesmente o maior jogador que já havia passado por aqui, estava jogando no Vasco da Gama, em idade avançada e louco para voltar ao Rio Grande do Sul. O bom relacionamento dos dirigentes do Grêmio com os dirigentes do Vasco da Gama, a instauração de uma nova era, a transição do velho estádio da Baixada para o novo estádio Olímpico eram os pontos fundamentais para a extinção do paradigma de racismo no clube germânico. Mas antes de Tesourinha, desfilaram mais de duas dezenas de negros: Laxixa, Mário Carioca, Hélio, Prego, Jorge, Hermes Conceição. Antes do primeiro negro vestir a camisa colorada, Maldonado, Saraiva, Silva, Neco e Adão Lima já haviam suado muitas camisas tricolores e conquistado muitas vitórias. Os “filhotes do Grêmio” – hoje considerada uma espécie de categorias de base – possuíam na sua equipe da década de 20 vários jogadores negros. Mas, ironicamente, um clube considerado racista por muitos até hoje, é um clube popular e pioneiro”

(disponível em: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/hiltormombach/?p=15992).

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Como visto, os negros não encontraram facilidades por aqui. Para gozar do status proporcionado pelo futebol, os altos salários, o “glamour”, muitas barreiras foram ultrapassadas. No capítulo próximo, faremos uma análise histórica da legislação brasileira aplicável às condutas discriminatórias para, finalmente, adentrando na legislação atual, estabelecidas as diferenças entre a injúria racial e o crime de racismo, ponderar sobre quais tipos penais podem responder os autores das discriminações vistas nas arenas, que tanto nos indignaram.

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Sobre o autor
Rafael Cícero Cyrillo dos Santos

Especialista em Direito Processual Civil pela UNIMESP/FIG e especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura de São Paulo (EPM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Rafael Cícero Cyrillo. O negro no futebol brasileiro.: O racismo sob a égide penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7493, 6 jan. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32033. Acesso em: 26 dez. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado como requisito para conclusão do Módulo II do Curso de Pós Graduação “Lato Sensu” em Direito Penal na Escola Paulista da Magistratura.

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