O presente estudo busca trazer esclarecimentos a respeito das alterações causadas no direito à saída temporária e no trabalho externo, pela Lei n. 14.843/2024 e a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 932.864-SC.
A Lei n. 14.843/2024 trouxe consideráveis mudanças na Lei de Execução Penal, no que toca à saída temporária, ao trabalho externo, ao monitoramento eletrônico e à progressão de regime.
Atendo-se ao objeto deste estudo, relativamente à saída temporária, a Lei n. 14.843/2024 alterou a LEP em dois pontos importantes: restringindo hipóteses de saída temporária; e proibindo saída temporária e trabalho externo, sem vigilância, a apenados que cumpram pena por crime praticado com violência ou grave ameaça contra pessoa.
Redação da LEP antes da Lei n. 14.843/2024:
Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
I - visita à família;
II - freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
§ 1º A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.
§ 2º Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte. (grifou-se).
Redação da LEP após a Lei n. 14.843/2024:
Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
I - (revogado);
II - freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
III - (revogado).
§ 1º A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.
§ 2º Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa. (grifou-se).
Quanto às hipóteses de saída temporária a LEP, com as alterações causadas pela Lei n. 14.843/2024, passou a prever uma única hipótese (não confundir com permissão de saída): frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução.
Foram revogados expressamente os incisos I e III do art. 122, de modo que não mais existe direito a saída temporária para visita à família ou participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
Embora, inicialmente, tenha ocorrido veto presidencial sobre as alterações da LEP vinculadas à saída temporária, o Congresso Nacional, no dia 28.05.2024, rejeitou os vetos (BRASIL, 2024). Em 12.06.2024, as alterações legais inicialmente vetadas foram promulgadas.
Em relação aos apenados que cumprem pena por crime praticado com violência ou grave ameaça contra pessoa, também houve recrudescimento. Foram excluídos os direitos à saída temporária para estudo (art. 122, inc. II, d da LEP) e ao trabalho externo sem vigilância.
Nesse ponto, vale destacar que o Pacote Anticrime (Lei n. 13.964/2019) havia retirado o direito à saída temporária de apenados condenados por crime hediondo e com resultado morte, porém mantinha autorização para trabalho externo, sem vigilância.
Exemplificando, Fulaninho foi condenado por homicídio qualificado, cometido em agosto de 2021. Assim, por se tratar de crime hediondo, não terá direito à saída temporária. Porém, Beltraninho, condenado por lesão corporal circunstanciada pela violência doméstica (que não admite substituição da pena), também cometida em agosto 2021, teria direito à saída temporária.
Já, a Lei n. 14.843/2024, ampliou as vedações para todos os condenados por crime com violência ou grave ameaça, além de retirar a autorização para trabalho externo sem vigilância.
Nesse cenário, Cicraninho, condenado por lesão corporal circunstanciada pela violência doméstica (ou até mesmo ameaça), cometida em agosto de 2024, não terá direito à saída temporária, nem a trabalho externo sem vigilância.
A parte das questões envolvendo a criminologia e a ressocialização/socialização/inclusão social de apenados – que ingressam no mérito legislativo e, apesar de tão importantes, não serão objeto deste estudo – surgiu à celeuma quanto à aplicabilidade das alterações trazidas pela Lei n. 14.843/2024, visto que não houve estabelecimento de regra de transição aplicável a apenados com penas em curso.
Nesse ponto, dois posicionamentos antagônicos ganharam força dentre os operadores do direito. Um entendendo que as alterações são de natureza processual; outro, que são de natureza penal.
Natureza processual:
O art. 2º do CPP estabelece que a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.
Assim, em caso de sucessão de leis, normas de natureza processual deverão ser aplicadas imediatamente, abrangendo fatos ocorridos antes de sua vigência.
Conforme essa corrente, a Lei n. 14.843/2024, ao retirar o direito à saída temporária e ao trabalho externo sem vigilância (para condenados por crime com violência ou grave ameaça), conquentemente, levou a perda de expectativa de direito no gozo de tais benefícios, tratando-se, portanto, de norma de natureza processual.
Sobre o ponto, o magistério de Willian Terra de Oliveira:
Ocorre que, com a Lei nº 14.843/2024, na forma aprovada pelo Congresso, o próprio direito a saídas temporárias deixou de existir. A situação é hoje diferente. Não mais existindo o direito já não mais existem expectativas de sua fruição, pois as condições objetivas da norma, que antes permitia a diminuição de dias dentro dos muros da prisão, já não mais existe. (...) E ademais: não se trata de conflito de leis no tempo. Não existe conflito algum. O que temos é uma regra atual de aplicabilidade imediata (o renascentista tempus regit actum) que não mais prevê um direito invocável. A aplicação imediata e ex nunc de alterações legislativas em matéria de execução já foi reconhecida pela jurisprudência do STF. Não se ignora o dever jurisdicional que cabe ao magistrado das execuções em aplicar a lei mais benéfica mas no caso da Lei nº 14.843/2024 (se mantido o texto aprovado pelo Congresso ante a possível derrubada do veto presidencial) temos a extinção de um direito sem previsão de amparo a situações precedentes já aperfeiçoadas em termos de direito adquirido (regras de transição ou mitigação). (grifou-se).
Natureza material:
O art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal estabelece que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Além disso, o art. 2º, parágrafo único, do Código Penal estabelece que a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Ambos os dispositivos consagram o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa e, consequentemente, a ultratividade da lei penal mais benéfica.
Em outras palavras, a regra geral é que deverá ser aplicada a lei em vigor quando da prática do fato (tempus regit actum), resguardando-se a reserva legal e a anterioridade da lei penal.
Por outro lado, no caso de sucessão de leis que disciplinem total ou parcialmente a mesma matéria e o crime tenha sido cometido na vigência de lei anterior, poderão surgir cinco situações diversas: (1) lei nova cria novo tipo penal (novatio legis incriminadora); (2) lei nova é mais rígida em relação à anterior (lex gravior); (3) lei nova extingue o tipo penal (abolitio criminis); (4) nova lei é benigna (lex mitior); e (5) a lei nova contem alguns aspectos mais rígidos e outros mais brandos que a antiga.
No caso em tela, a Lei n. 14.843/2024 é classificada como Lex gravior (novatio legis in pejus), pois, ao estabelecer critérios adicionais para progressão de regime e extinguir hipóteses de saída temporária, recrudesceu o cumprimento da pena – a aplicação da lei em seu sentido material.
Desse modo, reconhecendo-se que as alterações trazidas pela Lei n. 14.843/2024 são de natureza material, os apenados condenados por crimes cometidos antes de sua vigência (11.04.2024) não serão por ela afetados, pois haverá incidência da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Assim, esses apenados continuarão a ter direito às saídas temporárias para visita à família, para atividades de contribuam ao retorno ao convívio social, para estudo e ao trabalho externo sem vigilância.
Ademais, o STJ afirmou que a Lei n. 14.843/2024 é de natureza material, fixando a irretroatividade de sua aplicação:
(...) II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2. A questão em discussão consiste em verificar a possibilidade de aplicação retroativa do § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei n. 14.843/2024, que torna mais gravosa a execução da pena, pois veda o gozo das saídas temporárias. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. A Lei n. 14.843/2024, ao modificar o § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, recrudesce a execução da pena ao vedar a concessão de saídas temporárias para condenados por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça contra pessoa. 4. A aplicação retroativa dessa norma constitui novatio legis in pejus, vedada pela Constituição Federal (art. 5º, XL) e pelo Código Penal (art. 2º). 5. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) firmou entendimento de que normas mais gravosas não podem retroagir para prejudicar o executado, conforme a Súmula 471/STJ e precedentes correlatos. 6. No caso concreto, os crimes pelos quais o paciente foi condenado ocorreram antes da vigência da Lei n. 14.843/2024, o que impede a aplicação retroativa das novas restrições à saída temporária. IV. DISPOSITIVO E TESE 7. Ordem concedida. Tese de julgamento: 1. O § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, com redação dada Lei n. 14.843/2024, torna mais restritiva a execução da pena, restringindo o gozo das saídas temporárias aos condenados por crimes hediondos ou cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, não pode ser aplicado retroativamente a fatos ocorridos antes de sua vigência, em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. (...). (HC n. 932.864/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.). (grifou-se).
Em suma: ainda que não haja posicionamento em controle concentrado de constitucionalidade ou em repercussão geral pelas Cortes Superiores – o julgado do STJ é da 6ª Turma – , e que o STJ tenha se manifestado especificamente quanto à saída temporária para apenado condenado por crime cometido com violência e grave ameaça (art. 122, §2º, da LEP), depreende-se que o entendimento – de ser a Lei n. 14.844/2024 de natureza material – será replicado em casos que versem sobre saídas temporárias em geral. Ademais, a aplicação da pena é a materialização do jus puniendi, o que, com perdão da redundância, demonstra que a norma é de natureza material, atraindo, portanto, a irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Referências:
BRASIL. Constituição Federal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. Lei de Execução Penal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. Lei nº 14.843/2024. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L14843.htm#art3>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. PL nº 2.253/2022. Disponível em <https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/16409>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. Lei nº 13.964/2019. Disponível em < ttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm#art4>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. Código Penal. Disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 15 Nov. 2024.
BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. acesso em 155 nov. 2024.
_____STJ. HC 932.864/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.
OLIVEIRA. Willian Terra de. A Lei nº 14.843/2024: considerações sobre sua aprovação e efeitos (fim da saída temporária).