A entrada em vigor da Lei nº 14.133/2021, que revogou progressivamente a antiga Lei nº 8.666/1993, trouxe inovações importantes no campo das contratações públicas. Um dos pontos mais relevantes — e, ao mesmo tempo, sensíveis — está relacionado às formas de encerramento de licitações, especialmente no tocante ao instituto da revogação, que, pela sua natureza discricionária, demanda uma análise aprofundada e criteriosa para evitar violações aos princípios constitucionais e legais.
Revogação e a Discricionariedade Administrativa
Conforme o art. 71, inciso II, da Lei nº 14.133/2021, a revogação de uma licitação pode ocorrer por conveniência ou oportunidade, desde que fundamentada em fato superveniente devidamente comprovado. A introdução dessa exigência eleva o nível de controle sobre o exercício do poder discricionário da Administração Pública, estabelecendo um contraponto à ampla margem de atuação administrativa historicamente reconhecida.
O poder discricionário, em sua essência, está vinculado ao juízo de conveniência e oportunidade, mas não é ilimitado. O art. 71, § 3º, reforça que a revogação deve observar o direito ao contraditório e à ampla defesa, protegendo os interesses dos licitantes. Essa previsão é essencial para equilibrar o exercício da autotutela administrativa com a proteção dos direitos subjetivos envolvidos no certame.
A discricionariedade administrativa, contudo, deve ser exercida de maneira razoável e proporcional, em conformidade com os princípios da legalidade, eficiência e impessoalidade previstos no art. 37 da Constituição Federal. Qualquer decisão que extrapole esses limites, como a revogação sem motivação adequada ou fundamentada em interesses alheios ao interesse público, pode configurar desvio de finalidade, ensejando a nulidade do ato administrativo.
Diferença entre Revogação e Anulação: Limites e Finalidades
Um aspecto fundamental é a distinção entre revogação e anulação no âmbito licitatório. Enquanto a anulação decorre de um vício de ilegalidade no procedimento, a revogação está relacionada a uma decisão discricionária, baseada em conveniência administrativa. A Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal estabelece que:
“A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”
Portanto, ao passo que a anulação visa preservar a legalidade do procedimento, a revogação se justifica na busca pela eficiência administrativa, sempre atrelada à existência de fatos supervenientes e interesse público claramente demonstrado.
Práticas Abusivas no Âmbito da Revogação
Na prática, há situações em que o poder discricionário da Administração é exercido de maneira arbitrária, prejudicando licitantes e comprometendo o interesse público. Um exemplo recorrente é a inclusão de cláusulas restritivas ou abusivas em editais, as quais limitam a interposição de recursos administrativos contra decisões de revogação. Essa prática, além de ilegal, viola os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF), bem como compromete a transparência e a competitividade do certame.
A própria Nova Lei de Licitações busca mitigar tais práticas ao determinar, em seu art. 71, § 2º, que os licitantes devem ser ouvidos antes de qualquer decisão de revogação. Tal dispositivo cria um mecanismo de controle interno que permite aos interessados apresentarem razões contrárias à revogação, fortalecendo o diálogo entre Administração e particulares.
Impactos da Revogação no Interesse Público
Sob o prisma do interesse público, a revogação de licitações deve ser cuidadosamente analisada. Decisões precipitadas ou baseadas em fundamentos frágeis podem gerar prejuízos significativos à coletividade, como:
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Morosidade na entrega de bens e serviços essenciais: A revogação sem justificativa adequada pode atrasar projetos importantes, como a construção de hospitais, escolas ou infraestruturas críticas.
Oneração dos cofres públicos: Um processo licitatório revogado sem necessidade gera custos adicionais relacionados à reabertura do certame e possíveis litígios administrativos ou judiciais.
Perda de credibilidade da Administração Pública: A ausência de transparência em decisões de revogação pode afastar potenciais interessados de futuros certames, comprometendo a competitividade e, consequentemente, a obtenção da melhor proposta.
Implicações Judiciais e Controle do Poder Discricionário
O controle judicial sobre os atos administrativos discricionários, como a revogação, é uma garantia fundamental contra abusos de poder. Embora o Judiciário não possa se imiscuir no mérito administrativo, é plenamente possível revisar os aspectos formais e materiais do ato, verificando:
A existência de fato superveniente que justifique a revogação;
A adequação da motivação apresentada pela Administração;
O respeito aos princípios do contraditório, ampla defesa e proporcionalidade;
A compatibilidade com o interesse público.
Nos casos em que forem constatadas irregularidades, os licitantes podem recorrer ao mandado de segurança para proteger seus direitos líquidos e certos, ou ainda ajuizar ação anulatória, com pedido de tutela provisória para suspender os efeitos da revogação.
Conclusão e Recomendações
A Nova Lei de Licitações, ao prever a revogação como uma ferramenta legítima, estabelece salvaguardas que visam garantir sua aplicação em conformidade com o interesse público e os direitos dos licitantes. Contudo, a eficácia desse instrumento depende de sua utilização responsável pela Administração Pública, com respeito irrestrito aos limites legais e constitucionais.
É recomendável que os órgãos públicos invistam na capacitação de seus agentes e na elaboração de editais claros e objetivos, contemplando mecanismos de resolução de conflitos que reduzam a necessidade de judicialização. Além disso, a participação ativa dos licitantes, por meio de impugnações e recursos administrativos, desempenha papel crucial na prevenção de abusos e na promoção da transparência.
Por fim, o papel do Judiciário como guardião do Estado de Direito permanece indispensável. Em um ambiente onde a presunção de legitimidade dos atos administrativos nem sempre é suficiente para afastar práticas abusivas, o controle judicial qualificado é essencial para equilibrar o poder discricionário da Administração com os direitos fundamentais dos cidadãos e a eficiência da gestão pública.
Referências
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm
https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=1602