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As ações afirmativas e a concretização do valor constitucional da igualdade

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Agenda 24/05/2008 às 00:00

3. AS POLÍTICAS DE QUOTAS MÍNIMAS OBRIGATÓRIAS: LIMITES E POSSIBILIDADES

A ação afirmativa foi implementada em vários pontos do país, mas de maneira isolada e sem estrutura, carecendo de políticas ou programas de maior alcance. Sua maior controvérsia surgiu a partir de iniciativas que adotaram a política de quotas, principalmente aquelas referentes ao acesso de afrodescendentes ao ensino superior.

É importante salientar que as ações afirmativas não devem ser confundidas e nem se limitam às quotas. A rigor, a ação afirmativa é um gênero da qual a política de quotas faz parte. Nesse sentido, Gomes (2001a, p.40) assinala:

A desinformação fez com que o debate sobre as ações afirmativas tenha se iniciado no Brasil de maneira equivocada. Confunde-se a ação afirmativa com sistema de cotas. Em realidade, as cotas constituem apenas um dos modos de implementação de políticas de ação afirmativa. (...) A jurisprudência americana tem sérias restrições às chamadas ‘cotas cegas’, isto é, aquelas instituídas aleatoriamente, sem o propósito de corrigir uma injustiça precisa, que é a própria razão de existência das políticas de ação afirmativa. No Brasil, infelizmente, os poucos projetos de lei de ação afirmativa já apresentados ao Congresso Nacional incorrem nesse erro.

As quotas se constituem na forma mais usual de ação afirmativa e, também, na mais polêmica, na medida em que excluem direitos de pessoas privilegiadas para favorecer os excluídos. Por meio da cotas se incluem as minorias em espaços a que antes não tinham acesso.

No Brasil, em virtude de consideráveis desníveis nos indicadores da educação, surgiram propostas de implementação de quotas raciais em vestibulares, sendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) a instituição pioneira na aplicação dessa política, posteriormente adotada em instituições como Universidade de Brasília (UnB), Universidade de Campinas (Unicamp), dentre outras.

Segundo o pesquisador Renato Ferreira2, dados consolidados até janeiro de 2008 indicavam que 54 universidades, entre federais, estaduais e municipais, já haviam adotado algum tipo de ação afirmativa, sendo que desse total 33 estipularam o sistema de quotas para afrodescendentes.

3.1. Objeções às políticas de quotas

De acordo com Silva, A. (2002), o mecanismo de inclusão das minorias em espaços públicos e privados, mediante a adoção de quotas mínimas obrigatórias, consiste em uma via de mão-dupla, uma vez que determina, necessariamente, a exclusão de membros pertencentes a grupos não minoritários. É neste momento que surge oportuna indagação, batizada pelo norte-americano Ronald Fiscus, de argumento das pessoas inocentes. Tal argumento, radicalmente oposto a qualquer medida de quotas, traduz-se em que pessoas integrantes da maioria (racial, religiosa ou fundada em qualquer critério que indique uma discriminação historicamente relevante), não necessariamente culpadas pela discriminação sofrida no passado por grupos minoritários, acabam, por meio indireto, sendo responsabilizadas diretamente no presente e tendo oportunidades diminuídas em função da reserva minoritária. Tem-se que a maioria pode suportar algum ônus em benefício da minoria, mas não qualquer ônus.

Deve ser ressaltado que às políticas de quotas são apresentadas diversas críticas. Argumenta-se, sobremodo, que tal espécie de discriminação positiva iria contra o mérito ou esforço individual. Deve-se ampliar a própria concepção do que seja mérito, permitindo o reconhecimento de sua ocorrência mesmo entre os menos favorecidos economicamente.

Faz-se necessário saber de quem é o mérito ou, se se quiser, quem tem mais mérito. Serão aqueles estudantes que tiveram todas as condições normais para cursar os ensinos fundamental e médio e passaram no vestibular ou aqueles que apesar das barreiras raciais e de outras adversidades em sua trajetória, conseguiram concluir o ensino médio e também estão aptos para cursar uma universidade? (SANTOS, 2003, p.113-114).

Com efeito, somente no caso concreto é que se poderá aferir se as políticas de quotas passariam pelo crivo da constitucionalidade. Cabe apresentar o asserto sobre critérios úteis para a análise da constitucionalidade da política de quotas:

Se o critério discriminatório não se basear em uma discriminação pretérita de um grupo definido que surta efeitos no presente, será então inconstitucional. A utilidade dessa regra é imensa pois poderá, com margem razoável de certeza, excluir a possibilidade da adoção de quotas com parâmetros visivelmente arbitrários. Além disso, o parâmetro de discriminação pretérita e histórica com efeitos presentes pode servir como valioso instrumento de controle da política afirmativa implementada ao longo do tempo, pois, malgrado originariamente tenha a medida sido constitucional, tornar-se-á inconstitucional supervenientemente a partir do momento em que, por dados empíricos como a estatística e os costumes, seja possível constatar a implementação da igualdade material e mostrar que a discriminação pretérita foi sanada (SILVA, A., 2002, grifos do autor).

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As políticas de ações afirmativas demandam uma constante vigilância, com o escopo de acompanhar o desempenho e os objetivos traçados, o que reclama uma constante vigilância na coordenação de princípios e procedimentos, buscando atribuir adequação, razoabilidade e proporcionalidade aos métodos de realização das ações afirmativas.

Sem dúvida, a precisa medida dos planos e programas visando à ação afirmativa se manifestam num contexto de razoabilidade, com o intuito de concretizar o mandamento constitucional, uma vez que qualquer excesso acaba por representar violação à própria ordem constitucional. Nesse sentido, Rocha (1996, p.286), afirma:

É importante salientar que não se quer ver produzidas novas discriminações com a ação afirmativa, agora em desfavor das maiorias, que, sem serem marginalizadas historicamente, perdem espaços que antes detinham face aos membros dos grupos afirmados pelo princípio igualador no Direito. Para se evitar que o extremo oposto sobreviesse é que os planos e programas de ação afirmativa adotados nos Estados Unidos e em outros Estados primaram sempre pela fixação de percentuais mínimos garantidores da presença das minorias que por eles se buscavam igualar, com o objetivo de se romperem os preconceitos contra elas, ou pelos menos propiciarem-se condições para a sua superação em face da convivência juridicamente obrigada(...) Os planos e programas das entidades públicas e particulares de ação afirmativa deixam sempre à disputa livre da maioria a maior parcela de vagas em escolas, em empregos, em locais de lazer, etc., como forma de garantia democrática do exercício da liberdade pessoal e da realização do princípio da não-discriminação (contido no princípio constitucional da igualdade jurídica) pela própria sociedade.

3.2. Posição do Poder Judiciário brasileiro

As controvérsias advindas da implementação de políticas de ação afirmativa no Brasil, mormente às voltadas à política de quotas mínimas para afrodescendentes, acabaram batendo às portas do Poder Judiciário.

Com efeito, não é tarefa fácil determinar quem é branco, pardo ou negro. Outrossim, a definição de um percentual mínimo a ser destinado às minorias também causa polêmica. Ante a falta de critérios objetivos, o que poderia comprometer a lisura do processo, diversas liminares foram concedidas a candidatos que obtiveram notas superiores aos candidatos favorecidos pelo sistema de cotas, sobretudo no processo seletivo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que, sentindo a deficiência dos primeiros processos seletivos, passou a adotar critérios mais objetivos e em consonância com a razoabilidade.

Até o momento, o Poder Judiciário não se manifestou definitivamente sobre a constitucionalidade ou não dos programas de ação afirmativa, sendo que em controle difuso de constitucionalidade há decisões favoráveis e contrárias, sobretudo no que se refere às quotas raciais.

Deve ser digno de registro acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, relatado pelo Desembargador Cláudio de Melo Tavares, que bem resume a sorte da política afirmativa, conforme noticia Silva, L. (2004, p.29-30):

APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO DO WRIT. SISTEMA DE COTA MÍNIMA PARA POPULAÇÃO NEGRA E PARDA E PARA ESTUDANTES ORIUNDOS DA REDE PÚBLICA ESTADUAL DE ENSINO. LEIS ESTADUAIS 3524/00 E 3708/01. EXEGESE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre presentes essas palavras. A correção das desigualdades é possível. Por isso façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para o arrependimento, para a acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo. Mas mãos à obra, a partir da confiança na índole dos brasileiros e nas instituições pátrias. O preceito do art. 5º, da CR/88, não difere dos contidos nos incisos I, III e IV, do art. 206, da mesma Carta. Pensar-se o inverso é prender-se a uma exegese de igualização dita estática, negativa, na contramão com eficaz dinâmica, apontada pelo Constituinte de 1988, ao traçar os objetivos fundamentais da República Brasileira. É bom que se diga que se 45% dos 170 milhões da população brasileira é composta de negros (5% de pretos e 40% de pardos); que se 22 milhões de habitantes do Brasil vivem abaixo da linha apontada como de pobreza e desses 70% são negros, a conclusão que decorre é de que, na realidade, o legislador estadual levou em conta, quando da fixação de cotas, o número de negros e pardos excluídos das universidades e a condição social da parcela da sociedade que vive na pobreza, como posto pela Procuradoria do Estado em sua manifestação. O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é privilegiá-la conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão em curto prazo, podemos pelo menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país.

O descortinamento de tal quadro de responsabilidade social, de postura afirmativa de caráter nitidamente emergencial, na busca de uma igualdade escolar entre brancos e negros, esses parcela significativa de elementos abaixo da linha considerada como de pobreza, não permite que se vislumbre qualquer eiva de inconstitucionalidade nas leis 3.524/00 e 3708/01, inclusive no campo do princípio da proporcionalidade, já que traduzem tão-somente o cumprimento de objetivos fundamentais da República.

(TJRJ-Apelação Civil em Mandado de Segurança Processo nº 2003.001.27194, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio de Mello Tavares).

Conforme já registrado, a eficácia das políticas de ação afirmativa nos Estados Unidos se deu, sobretudo, a partir da atuação da Suprema Corte.

Efetivamente, deve ser ressaltado o papel determinante dos juízes e tribunais no equacionamento e calibragem de qualquer política pública de promoção da igualdade material, para a adequada ponderação dos diversos interesses em confronto.

Daí a importância da atuação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de pacificar as controvérsias atinentes à implantação das políticas de discriminação positiva. Nesse sentido, não se pode deixar de ressaltar a expectativa em torno do resultado do julgamento das Ações Direta de Inconstitucionalidade 3197/RJ e 3330/DF, que questionam a adoção de cotas raciais em universidades públicas.

Na ADI 3330/DF3, manejada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem), Democratas (DEM) e a Federação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social (Fenafisp), alegou-se que o ProUni – Programa Universidade para Todos – criou um uma discriminação entre os cidadãos brasileiros, ofendendo o princípio constitucional da igualdade.

De acordo com a sistemática do ProUni, as universidades privadas devem reservar bolsas de estudo para alunos que tenham cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral. Parte dessas bolsas deve ser concedida para negros, indígenas e pessoas portadoras de necessidades.

O Relator da ADI 3330/DF, Ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto proferido na Sessão Plenária do dia 2 de abril de 2008, não enxergou nos textos impugnados nenhuma ofensa à Constituição. Confira-se trecho do mencionado voto4:

Essa possibilidade de o Direito legislado usar a concessão de vantagens a alguém como uma técnica de compensação de anteriores e persistentes desvantagens factuais não é mesmo de se estranhar, porque o típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer desigualações para contrabater renitentes desigualações. É como dizer: a lei existe para, diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora da harmonia ou do equilíbrio social, impor uma outra desigualação compensatória. A lei como instrumento de reequilíbrio social. O que ela (a lei) não pode é incidir no "preconceito" ou fazer "discriminações", que nesse preciso sentido é que se deve interpretar o comando constitucional de que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". O vocábulo "distinção" a significar discriminação (que é proibida), e não enquanto simples diferenciação (que é inerente às determinações legais).

Em seu voto, lembrou o Ministro Carlos Britto que a Constituição da República consagrou valores humanistas, que estaria bem sintetizado no objetivo fundamental de construir uma sociedade justa, livre e solidária.

Por derradeiro, colhe-se do primeiro voto proferido na ADI 3330/DF uma direção a ser seguida para que eventual diferenciação seja considerada legítima:

Logo, somente é de ser reputado como válido o critério legal de diferenciação que siga na mesma direção axiológica da Constituição. Que seja uma confirmação ou uma lógica derivação das linhas mestras da Lex Máxima, que não pode conviver com antinomias normativas dentro de si mesma nem no interior do Ordenamento por ela fundado. E o fato é que toda a axiologia constitucional é tutelar de segmentos sociais brasileiros historicamente desfavorecidos, culturalmente sacrificados e até perseguidos, como, verbi gratia, o segmento dos negros e dos índios. Não por coincidência os que mais se alocam nos patamares patrimonialmente inferiores da pirâmide social. (grifos no original).

Vale consignar que logo após o voto proferido pelo Ministro Carlos Britto, o julgamento foi interrompido, em face do pedido de vista formulado pelo Ministro Joaquim Barbosa.

Contudo, acredita-se que há uma tendência dos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal em seguir a linha de raciocínio adotada no voto do Relator. Vale lembrar, que os Ministros Marco Aurélio Mello, Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia Antunes Rocha possuem trabalhos escritos a favor das ações afirmativas, inclusive citados ao longo deste artigo.

Sobre o autor
Eurípedes de Oliveira Emiliano

Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás. Especialista em Direito Público pela Universidade de Rio Verde (GO). Especializando em Direito Processual: Grandes Transformações pela UNAMA/LFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EMILIANO, Eurípedes Oliveira. As ações afirmativas e a concretização do valor constitucional da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1788, 24 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11296. Acesso em: 22 nov. 2024.

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