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Reflexões sobre a Lei nº 9.714/98

Agenda 24/05/2008 às 00:00

Tem ganhado força, sobretudo nas últimas décadas, a afirmação de que a pena privativa de liberdade está em crise. Tal assertiva decorre da constatação de que o cárcere produz efeitos devastadores nos reclusos, e, mesmo nos países desenvolvidos, mostrou-se contraproducente para promover a ressocialização dos condenados [01]. No Brasil, a situação é ainda pior, pois os presídios abarrotados, aliados à ineficiência do Estado para fiscalizar as atividades dos detentos, tornaram-se celeiro para a criminalidade [02].

Superada a utopia de que prisão é o santo remédio para todos os males, questiona-se: o que colocar no seu lugar? A verdade é que, para os criminosos mais perigosos – cuja segregação da sociedade é necessária – não existe substitutivo conhecido para o cárcere, e a prisão continua sendo um mal necessário [03]. Em relação aos demais casos, contudo, deve ser evitada sempre que possível.

Nesse contexto, as penas restritivas de direitos surgem como alternativas penais à pena privativa de liberdade, de modo a se evitar os males do encarceramento, através da restrição de direitos do condenado.

No ordenamento pátrio, tais penas foram introduzidas na reforma da parte geral do Código Penal, através da Lei 7.209/84, que somente permitia a substituição para condenações de período inferior a um ano. Havia, à época, um sistema punitivo coerente, que disciplinava a severidade das punições de forma proporcional à gravidade dos delitos: para os crimes mais leves, em que a pena privativa de liberdade aplicada não fosse superior a seis meses, admitia-se a possibilidade de substituição pela pena de multa; diante de infrações um pouco mais graves, cuja pena fosse inferior a um ano, podia o magistrado substituir a pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos; em se tratando de delitos cuja pena não fosse superior a dois anos, era cabível a suspensão condicional da pena; infrações cujo montante da pena fosse superior a dois anos e inferior a quatro deveriam ser cumpridas em regime aberto; penas superiores a quatro anos e inferiores a oito, em regime semi-aberto; e condenação superiores a oito anos, em regime fechado.

Com o advento da Lei 9.714 de 1998, houve uma ampliação no âmbito de incidência das penas restritivas de direitos, passando a ser aplicáveis até mesmo para infrações mais graves, cuja condenação seja por prazo inferior a quatro anos. Essa modificação quebrou a harmonia sistemática da legislação anterior, vulnerando a proporcionalidade da resposta jurídica e causando a paradoxal situação de termos, no nosso sistema, reprimendas mais graves para crimes mais leves e vice-versa [04]. Veja-se o caso do sursis, por exemplo: como é sanção menos benéfica ao condenado que a restritiva de direitos, deve ser preterido em favor desta, sempre que possível. E, como o sursis é aplicável somente em se tratando de penas não superiores a dois anos – ou quatro, no caso do sursis especial – chega-se à conclusão que tal instituto perdeu força no ordenamento, sendo utilizado apenas nos casos em que há violência ou grave ameaça contra a pessoa.

E a idéia que se pode ter num primeiro momento, de que a elevação do teto de substituição para quatro anos trouxe o benéfico resultado de esvaziar os presídios, também não merece guarida. Conforme ficou demonstrado por pesquisa realizada entre 2004 e 2006 pelo ILANUD, o perfil do indivíduo apenado com restritiva de direitos, principalmente quanto ao delito praticado, não é o mesmo da população carcerária. Isto porque, na maioria dos casos, as penas restritivas de direitos são aplicadas para delitos patrimoniais menos graves, sendo o furto a infração que mais enseja a aplicação de pena alternativa. No Estado de São Paulo, em 2007, conforme dados estatísticos da Secretaria da Administração Penitenciária, os crimes de maior incidência cometidos pelos prestadores de serviços à comunidade cadastrados foram, em primeiro lugar, aqueles relativos à consumo pessoal de drogas (art. 16, da Lei 6.368/76 e art. 28, da Lei 11.343/06) e, em seguida, o furto (art. 155 do CP) [05].

Referida pesquisa concluiu que os indivíduos que tiveram a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos já não a cumpririam na prisão, dada a existência de outros substitutivos penais, como o sursis. Também ficou evidenciado que os magistrados, de forma geral, efetuam a substituição apenas em se tratando de condenação com duração de até um ano, alcançando percentuais significativos somente até dois anos, tempo que de pena que exclui as modalidades de infração mais frequentes no sistema penal. Ademais, a impossibilidade de concessão de restritivas de direitos nos casos em que há violência ou grave ameaça à pessoa constitui uma das principais causas que as tornam ineficientes para diminuir a superpopulação carcerária. [06].

Muito mais importante do que a ampliação do âmbito de incidência das restritivas de direitos e da criação de novas modalidades, é dar efetividade àquelas já existentes. Nessa esteira, há várias medidas que podem ser tomadas.

A pesquisa do ILANUD assinalou a importância da criação de varas especializadas na execução de penas alternativas, demonstrando que, nas Capitais em que existem, há melhor controle por parte do Judiciário sobre o desenvolvimento do cumprimento destas sanções.

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Outra medida relevante é a implementação de mecanismos de ampla defesa no processo criminal e em todos os atos da execução penal, notadamente com o fortalecimento da Defensoria Pública, que pode fazer com que criminosos primários recebam penas alternativas, e não tenham o convívio deletério com líderes de quadrilha e de facções criminosas, tornando-se massa de manobra do crime organizado [07].

Embora a pena privativa de liberdade venha representando, nos últimos séculos, a forma de punição por excelência, há uma tendência de mudança deste paradigma. Nesse contexto, as discussões envolvendo as penas restritivas de direitos têm ganhado destaque, ante a busca por um direito penal humanitário e utilitário, que respeita a dignidade da pessoa humana e busca a ressocialização do condenado. Há que se ter em mente, contudo, que tal aspiração não deve suplantar o bom senso, nem subverter a coerência do sistema punitivo brasileiro. Além disso, medidas que propugnam o esvaziamento dos presídios a todo custo são perigosas, uma vez que deixam em segundo plano as finalidades da pena e colocam em risco a proteção da sociedade.


Notas

01 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Alternativas da pena privativa de liberdade. Revista de direito penal, Rio de Janeiro, n. 29, p. 6-7, jan./jun. 1981.

02 Em setembro de 2007, no Estado de São Paulo, das 146 unidades do sistema penitenciário, pelo menos 105 tinham mais detentos do que poderiam comportar, encontrando-se estas superlotadas em até 163%, ou seja, mais que o dobro da capacidade normal. Abarrotadas, prisões de SP têm 42 mil a mais. Folha de São Paulo. Cotidiano. São Paulo. 27 set. 2007. p. 1.

03 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 22. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000. p. 196.

04 ARAÚJO, David Teixeira de. Atualidades no direito e processo penal. São Paulo: Editora Método, 2001. p. 172-173.

05 Dos 10.978 indivíduos cadastrados no programa de prestação de serviços à comunidade, 2258 (20,56%) haviam praticado os crimes do art. 16 da Lei 6.368/76 (hoje revogada) e do art. 28 da Lei 11.343/06, e 1391 (12,67%) foram condenados pelo crime de furto.

06 O relatório da pesquisa do ILANUD menciona o censo penitenciário estadual, realizado pela Secretaria de Administração Penitenciária, que constatou que 46,5% da população carcerária cumpria pena pela prática do crime de roubo.

07 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Só polícia não resolve. Folha de São Paulo. São Paulo. p. A3. 30 de out. de 2007.

Sobre o autor
Jamil Chaim Alves

Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Jamil Chaim. Reflexões sobre a Lei nº 9.714/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1788, 24 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11308. Acesso em: 23 dez. 2024.

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