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Tratamento individualizado.

Um caminho para solucionar a problemática da presença de populações residentes em parques nacionais

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No presente ensaio, propõe-se apresentar uma solução conciliadora entre as concepções preservacionista e sócio-ambientalista de proteção ambiental, no tocante à presença de comunidades locais em unidades de conservação. Utiliza-se como metodologia principal o estudo de caso do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Questiona-se a posição do SNUC quanto ao impedimento, a priori, das comunidades locais residirem em parques nacionais. Propõe-se a aplicação do postulado da proporcionalidade como forma de compatibilizar os interesses preservacionistas com a necessidade de proteção do modus vivendi das comunidades residentes em parques nacionais.


1. INTRODUÇÃO

O livro de Gênesis conta que, desde o início dos tempos, antes mesmo que o homem passasse a habitar o planeta, foi-lhe determinado que "cultivasse e guardasse o Éden" - comando divino que a humanidade, após comer do fruto da "árvore da ciência" [01], atendeu estritamente na ordem determinada.

Inicialmente, o homem dominou as técnicas de produção e passou a utilizar os recursos naturais como forma de garantir sua sobrevivência e, a posteriori, também para gerar riqueza. Entretanto, após séculos de "cultivo", os olhares se voltaram para a "guarda" do planeta. Neste passo, um dos principais desafios que se apresentam no século XXI é a necessidade de preservação/conservação [02] da biodiversidade e dos ecossistemas.

Diante da inquietação, despertou-se o interesse geral das nações na criação de áreas juridicamente protegidas e reservadas à manutenção da biodiversidade, principalmente, espaços que se propõe à conservação in situ [03]da natureza [04].

O Primeiro relatório nacional para a Convenção sobre Diversidade Biológica, divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente em 1998, afirma ser o Brasil a nação mais rica em biodiversidade [05], fato este que demanda preocupações quanto ao manejo e à utilização de mecanismos de proteção dos seus variados ecossistemas.

No Brasil, o primeiro Parque Nacional (PARNA) – Parque Nacional do Itatiaia/RJ – foi criado em 1937 e, desde então, a estratégia brasileira adotada é a da mundialmente difundida conservação in situ da biodiversidade, baseada na criação de Unidades de Conservação (UCs) [06], em que cada uma tem objetivos específicos, definidos em função das características dos ecossistemas e da destinação de seu uso.

Consoante relatório divulgado em 2007 pelo Ministério do Meio Ambiente [07], no Brasil, estão destinados às UCs cerca de cem milhões de hectares (sendo setenta milhões em unidades federais e trinta milhões em unidades estaduais), divididos em 288 (duzentos e oitenta e oito) UCs federais e 423 (quatrocentos e vinte e três) UCs estaduais. É sabido que em boa parte das UCs existem populações residentes, muitas delas há várias gerações. A presença de tais populações em unidades de conservação vem, desde o início das discussões do atual Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), dividindo opiniões [08].

O presente ensaio tem por mote principal apresentar contribuições à discussão sobre a possibilidade de integração das populações tradicionais no manejo das UCs de Proteção Integral, especialmente nos PARNAs, propondo uma possível solução para as divergências existentes entre a corrente "preservacionista" e a "sócio-ambientalista". Fruto do conhecimento interdisciplinar, aliando saberes das áreas de Antropologia, Sociologia, Turismo, Direito e Ecologia, este estudo objetiva levantar novas bases por onde devem trilhar os debates a respeito da situação das populações tradicionais residentes nas UCs brasileiras.

Como metodologia de pesquisa, utiliza-se o estudo de caso das comunidades tradicionais de "Queimada dos Britos" e "Baixa Grande" residentes na área do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM). Os resultados obtidos a partir da dissertação de mestrado em Desenvolvimento Sustentável de um dos autores, promovida pela UnB, transformaram-se na motivação necessária à produção do presente artigo.

Fundamentado na análise da situação das referidas comunidades no PNLM e das disposições atuais do SNUC, regido pela Lei nº 9.985/00, o presente estudo almeja a justificação suficiente para responder a duas indagações principais: há possibilidade de aliar a presença humana com a conservação ambiental nos PARNAs?; e, em sendo afirmativa a resposta à pergunta anterior, o que deve mudar na legislação do SNUC para que as populações residentes em PARNAs possam participar de seu manejo sem a necessidade de serem retiradas destas áreas?


2. A QUESTÃO DAS POPULAÇÕES RESIDENTES NO PARQUE NACIONAL DOS LENÇÓIS MARANHENSES

O PNLM abrange cerca de 155 mil hectares em um perímetro de 270 quilômetros, estendendo-se por 70 quilômetros no litoral oriental do Estado do Maranhão. Limita-se ao norte com o Oceano Atlântico, ao sul com os municípios de Santo Amaro do Maranhão e Barreirinhas, a leste com Paulino Neves e a oeste com Primeira Cruz e Santo Amaro do Maranhão.

A exuberância e singularidade paisagística representada por campos de dunas entrecortados por lagoas, é produto da atuação dos processos eólicos de transporte e acumulação de sedimentos, circunstâncias as quais justificam a criação da UC. Esses fatores somados aos modos de vida típicos das comunidades residentes no PNLM, constituem o produto turístico dos Lençóis Maranhenses.

Com efeito, conforme dantes salientado, a discussão sobre populações humanas, residindo em áreas protegidas, é bastante polêmica e controversa, podendo ser aplicada ao contexto dos Lençóis Maranhenses. De acordo com o plano de manejo do PNLM, foram consideradas tradicionais as comunidades residentes de Baixa Grande, Queimada dos Britos e Travosa [09].

No entanto, existem diversas outras pequenas comunidades vivendo ao longo do PNLM com estilos de vida moldados de acordo com a disponibilidade de recursos naturais. Essas populações, nas descrições do professor Antonio Castro [10], desenvolvem atividades pesqueiras e extrativas, agricultura de subsistência com baixa produtividade e técnicas rudimentares, especialmente empregadas nas plantações de mandioca. Tipicamente, as comunidades apresentam uma agricultura nômade e baseada na roça familiar.

Além das comunidades ribeirinhas de Barreirinhas, em localidades como Queimada dos Britos e Baixa Grande, percebe-se a simplicidade e rusticidade do cotidiano local, representadas pelo aproveitamento dos materiais in natura para garantir conforto e segurança contra as intempéries dos Lençóis, assim como pela reutilização de objetos que no meio urbano, possivelmente, conteriam outros sentidos [11].

O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/Barreirinhas, diante da presença de tais comunidades na área do PNLM, seguindo os comandos da Lei nº 9.985/00, almeja sua remoção conforme o preconizado pela lei do SNUC [12].

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Não obstante, a pressuposição inserta nas intenções preservacionistas do SNUC, quanto à impossibilidade de conciliar a presença humana e a conservação das Unidades de Proteção Integral, categoria em que se inclui o PARNA, corriqueiramente a ciência vem comprovando que em muitos casos a presença humana em UCs é condição sine qua non para que se concretize o ideário de preservação. Um exemplo é o encontrado no interior do PNLM, onde pequenas comunidades familiares residem há décadas e, ainda assim, fora reconhecido pelo meio acadêmico-científico que as localidades as quais habitam – especialmente "Queimada dos Britos" – foram consideradas as áreas mais bem conservadas/preservadas do PARNA em análise. Diz o Plano de Manejo do PNLM:

"A importância do PNLM como um refúgio ecológico pode ser evidenciada pelo fato da maior riqueza vegetal ter sido observada em Queimada dos Britos, localizada na região central do Parque que, em vista aérea, apresenta-se como uma "ilha" de vegetação. Queimada dos Britos destaca-se pela riqueza da sua composição florística que, estatisticamente, é completamente diferente das demais áreas estudadas [...]" [13].

Esse fato vai ao encontro dos estudos de Diegues, baseando-se em diversos indícios de que as técnicas utilizadas pelas comunidades tradicionais em vez de contribuírem para extinguir os recursos naturais, muitas vezes, garantem a qualidade do meio ambiente e justificam a contraditoriedade dos propósitos de criação das UCs [14].

Os fundamentos que evocam a necessidade de estudos mais aprofundados acerca das práticas telúrico-culturais das comunidades do PNLM, podem ser extraídos de outro caso da particularidade maranhense. Nos resultados obtidos em pesquisas sócio-antropológicas realizadas com as populações locais, sobretudo quilombolas, da cidade de Alcântara no Estado do Maranhão, constatou-se que a expropriação de comunidades alcantarenses conduzida pelo Ministério da Aeronáutica, a partir da implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), há mais de 20 anos, afetou negativamente mais de duas mil famílias as quais desenvolviam distintas atividades econômicas, notadamente agrícola, extrativas e de pesca, em um extenso território [15].

Na concepção de Souza Filho, Lôbo e Gaspar, a formação histórico-social dos povos em Alcântara engendrou formas particulares de apropriação dos recursos naturais existentes nesses territórios. Por gerações sucessivas, saberes específicos foram traçados, possibilitando o manejo racional dos diferentes ecossistemas encontrados os quais, por sua vez, permitiam e ainda permitem a sustentabilidade ecológica que assegura a reprodução material das famílias alcantarenses [16].

O CLA, ao exigir a transferência dessas comunidades para outros espaços distintos, acarretou o parcelamento de um campesinato usualmente comum e sua desastrosa reordenação forçada, comprometendo sobremodo a reprodução material de centenas de famílias [17]. Em outros termos, grupos familiares distintos foram obrigados a compartilhar um mesmo espaço natural – com características diferentes – e reorganizar o convívio coletivo. Por conseguinte, inúmeros alcantarenses não dispõem mais de áreas propícias ao desenvolvimento de suas diversas atividades de subsistência.

As desconfigurações socioculturais das comunidades remanejadas, por força do CLA, corroboram a necessidade de cuidados exigidos com os grupos sociais residentes em UCs, tais como os dos Lençóis Maranhenses. O insucesso dos remanejamentos realizados em Alcântara, serve de alerta aos gestores de PARNAs que devem primar pela qualidade de vida dos moradores da UC, consoante a Lei nº 9.985/00, artigo 5º, inciso X. Soma-se a isto, o fato de que a concepção de proteção dos ecossistemas, através da expulsão de comunidades que vivem harmonicamente com a natureza em PARNAs, é eticamente questionável e reflete os intentos de proporcionar entretenimento às populações urbanas, em detrimento aos direitos adquiridos pelos residentes antigos dessas UCs.

A questão de populações residindo nos locais considerados de maior conservação das espécies naturais, como "Queimada dos Britos" na área do PNLM, aponta para uma possível compatibilidade dos interesses culturais e ambientais.

Assim, diante da constatação empírica de casos como os das referidas populações residentes no PNLM, considera-se positiva a resposta à primeira das indagações que circundam este trabalho, considerando-se real a possibilidade de conciliação entre a presença humana e a conservação ambiental em parques nacionais, a exemplo do que já ocorre em outras UC, mesmo as de proteção integral, como os refúgios de vida silvestre (art. 12, §1º, da Lei 9.985/00), os monumentos naturais (art. 12, § 1º, da lei do SNUC) e as florestas nacionais (art. 17, § 2º, da Lei 9.985/00).


3. COMUNIDADES LOCAIS

O projeto de lei aprovado no Congresso Nacional, que deu origem a Lei nº 9.985/00, em seu art. 2º, XV, que foi objeto do veto presidencial, previa um conceito para populações tradicionais, pelo qual seriam "grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável" [18].

Atualmente, vige no país o conceito de população tradicional definido pelo Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, e na Instrução Normativa nº 02, de 18 de setembro de 2007, a qual Disciplina as diretrizes, normas e procedimentos para formação e funcionamento do Conselho Deliberativo de Reserva Extrativista e de Reserva de Desenvolvimento. Por eles, população tradicional seria um "grupo culturalmente diferenciado e que se reconhece como tal; que possui formas próprias de organização social, que ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição".

Destarte, resta claro que ao conceito de populações tradicionais [19], antes restrito a indígenas e quilombolas, foram inclusos grupos como pantaneiros, caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, pescadores artesanais, geraizeiros e ciganos, entre outros. Por isso, utilizamos indistintamente os termos "comunidade local" e "população tradicional" como sinônimos.

Não obstante a positivação e o reconhecimento da necessidade de proteção do especial modus vivendi das populações tradicionais, ainda é grande a divergência entre os ora denominados "preservacionistas" e os "sócio-ambientalistas". Analisemos, pois, resumidamente, o que defende cada uma destas correntes de pensamento quanto a presença de populações tradicionais em UCs.

3.1 A corrente preservacionista

Os preservacionistas, no geral, defendem que para conservar a natureza é necessário demarcar áreas naturais e mantê-las sem qualquer tipo de intervenção humana, salvo aquelas capitaneadas pelo conhecimento técnico e científico, no interesse da própria conservação. Nesta senda, as populações que vivem dentro e no entorno de áreas protegidas representariam uma ameaça à conservação, devendo ser removidas da área. Assim, a criação, o manejo e a gestão dos espaços protegidos ficariam a cargo quase que exclusivo do Estado [20].

A idéia que fundamenta este modelo é a de que, sendo inevitável a dominação e a alteração de toda a biosfera pelo homem, seria necessário conservar pedaços do mundo natural em seu estado originário. Lugares em que o ser humano possa reverenciar a natureza intocada, refazer suas energias materiais e espirituais e pesquisar a própria natureza [21].

Defende-se esta corrente da acusação de que seu modelo de conservação teria fundamento nas ações dos países desenvolvidos, sobretudo dos Estados Unidos, por meio da lei internacionalmente conhecida como "wilderness act", a qual possibilitaria a criação de áreas destinadas à conservação rigidamente controladas. Alega a seu favor que, em sua gênese, o modelo brasileiro já expressava, desde seu primeiro instrumento legal, o Código Florestal de 1934, a idéia de criação de espaços protegidos que atendessem não só aos objetivos de preservação dos recursos – tal como privilegiava o modelo norte americano – mas também vinculados à sua conservação, englobando já a perspectiva de uso sustentável [22], ganhando, pois, características próprias, podendo até ser considerado mais rígido que o modelo norte-americano [23].

Por fim, consideram necessária a defesa da natureza contra as atitudes humanas tidas como essencialmente destrutivas, porquanto os interesses humanos não seriam bons o suficiente para buscar a conservação do ambiente. Sobre esta perspectiva, criar uma unidade de conservação significaria, em suma, cercar uma determinada área, expulsar a população porventura residente e, em seguida, impedir ou controlar o acesso e a utilização da unidade criada. Isso porque a ciência, "imparcial e a verdadeira detentora do conhecimento", já teria concluído que a presença humana impede a conservação ambiental. Nesses termos, a preocupação, quase que exclusiva, com a preservação dos ecossistemas, justificar-se-ia por uma motivação ética, pelo simples fato de sermos habitantes do planeta [24].

3.2 A corrente sócio-ambientalista

Os sócio-ambientalistas, por seu turno, ainda que reconhecendo a imperativa necessidade de serem criadas áreas destinadas à conservação dos ecossistemas naturais, entendem que, além de serem socialmente mais justas, as políticas de conservação são mais efetivas e colhem melhores resultados quando trabalhadas junto às populações, sem expulsá-las das áreas protegidas ou impedir o acesso aos seus recursos. As áreas protegidas deveriam ter sua criação precedida de uma ampla consulta à sociedade e em sua gestão deveria ser facultado a participação popular. Tal concepção, mais flexível, facilitaria a solução de conflitos, a negociação de acordos e o apoio da comunidade local às propostas de proteção da natureza [25].

Segundo esta corrente, o modelo brasileiro de conservação ambiental teria fundamento na antiga concepção importada dos Estados Unidos e do modelo aplicado no parque de Yellowstone, o qual desconsideraria as condições específicas da realidade brasileira, posto que, na maior parte dos casos, as áreas protegidas estariam rodeadas de pobreza extrema. Com efeito, a transposição deste modelo para o Terceiro Mundo seria problemática, visto que mesmo as áreas consideradas isoladas ou selvagens abrigariam populações humanas [26], as quais, como decorrência do modelo adotado, deveriam ser retiradas de suas terras para o benefício das populações urbanas (turismo ecológico), das futuras gerações, do equilíbrio ecossistêmico necessário à humanidade em geral, da pesquisa científica, mas não dessas populações locais [27].

Neste passo, seria primordial a superação das idéias preconcebidas de que somente os especialistas, os cientistas, os técnicos do governo, estariam aptos e disporiam do conhecimento necessário para gerir uma unidade de conservação, e que o restante da população teria apenas interesses escusos e seria incompetente para tal mister. Outrossim, sem o respaldo da população, da consciência pública, nenhuma política de conservação teria êxito apenas com a implantação de áreas protegidas. Finalmente, a conservação da biodiversidade não poderia dar resultado, a não ser que as comunidades recebessem uma proporção justa dos benefícios e assumissem um papel mais destacado na gestão das áreas e na administração em conjunto de suas potencialidades naturais [28].

3.3 Posicionamento dos autores

Apesar de não se poder afirmar ao certo até que ponto as populações residentes em UCs contribuem para a qualidade dos ecossistemas, a constatação do grau de conservação das áreas habitadas, como as do PNLM, suscita novas reflexões sobre o papel dessas comunidades para a preservação ambiental.

Acredita-se, então, que os fundamentos de ambas as correntes acima expostas são relevantes, merecem ser sopesados e não se pode afastar qualquer deles a priori, isso porque a realidade empírica demonstra que ambas as formas de pensar a conservação ambiental podem ser legítimas. O que não pode acontecer é desprezar completamente o direito das comunidades locais residirem em áreas de proteção em favor do meio ambiente, considerando toda e qualquer interferência humana como negativa. Tampouco, pode-se considerar a priori, todas as comunidades residentes em UCs como "amigas da natureza", ou ainda, que seus hábitos sejam compatíveis ao manejo da unidade.

Desse modo, diante da aparente inconciliabilidade entre o direito das populações tradicionais de manterem os seus hábitos de vida sustentáveis nas áreas onde há gerações se encontram e o direito difuso à proteção ambiental, pugna-se pela ponderação de interesses pela aplicação do princípio da proporcionalidade, pelo qual apenas diante do caso concreto é que se pode dizer qual das correntes de pensamento deverá prevalecer – a preservacionista ou a sócio-ambientalista – e até que ponto é possível compatibilizar na prática a presença humana e a conservação de áreas protegidas.

Com efeito, o só fato do caráter difuso, universal, transgeracional e de essencialidade para a sobrevivência humana, legitima a preocupação da comunidade internacional quanto à instituição de espaços voltados à proteção ambiental [29]. Resta-nos, então, analisar os argumentos que justificariam a permanência humana em UCs, desde que seu modus vivendi represente efetiva contribuição à preservação ambiental.

Primeiramente, a União Internacional para a Conservação da Natureza (The World Conservation Unit)afirma que as comunidades tradicionais que habitam áreas protegidas em todo o mundo podem contribuir para a sua manutenção, lançando mão dos conhecimentos adquiridos ao longo das gerações. Por conseguinte, a UICN direcionou estratégias quanto ao controle do uso dos recursos naturais e condicionou a ocupação ao uso sustentável dos bens naturais locais, como forma de priorizar o fito maior de conservação, instituindo um novo paradigma para a preservação [30].

Segundo, independentemente dos seus moradores formarem ou não um grupo tradicional, a realocação dessas populações, mesmo mediante indenização, não garante a satisfação e o apego ao novo espaço que lhes foi destinado, também não é garantida a oferta de recursos que possibilite o seguimento do seu estilo de sobrevivência (como ocorreu no referido caso alcantarense). Este, aliás, é um dos motivos pelos quais as comunidades se opõem à criação das UCs, pois a administração limita e restringe o uso dos bens naturais e pouco estimula a compreensão da importância das áreas protegidas e os benefícios gerados.

Terceiro, aprioristicamente, a Lei 9.985/00 generaliza ao pregar o remanejamento das comunidades ditas tradicionais, sem que os casos sejam avaliados individualmente. Problema que conduz a um possível erro de interpretação e identificação das populações locais, normalmente intituladas tradicionais, sem que haja uma investigação mais detalhada e sistematizada que permita identificar peculiaridades das comunidades que possam realmente ter contribuído para a conservação dos processos ecológicos. E isso, conforme visto alhures, é uma posição que deve ser rechaçada, pugnando-se pela aplicação in concreto do princípio da proporcionalidade.

Quarto, a realocação das comunidades locais fere a justiça, a dignidade humana e a ética social, e compromete o mantenimento da sua identidade refletida em sua coletividade e padrões culturais típicos. Possivelmente, ao serem remanejadas, não serão completamente integradas à outras atividades propostas, como o turismo e atividades relacionadas à UC, podendo sofrer os mesmos danos das populações de Alcântara.

Quinto, a experiência de remanejamento e as condições dos novos espaços a serem habitados, por vezes, destroem a herança cultural e material e anulam a referência identificatória do morador local, dada pelo sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico e a não observância do que apregoa, e.g., a Constituição de 1988, artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias e a própria Política Nacional de Proteção às Comunidades Tradicionais.

Sexto, conforme destaca Rinaldo Arruda [31], é comum que as populações, ao resistirem e permanecerem, raramente tenham reconhecidas suas necessidades de exploração dos recursos naturais inerentes a seu modo de vida e sobrevivência. Passa a ocorrer, então, uma "criminalização" dos atos mais cotidianos e fundamentais para a reprodução sociocultural destas comunidades [32].

Por fim, para quem, senão para as próprias comunidades locais é maior o interesse de preservação/conservação da natureza? A sua acepção de valor é vinculada aos seus costumes e garantias de sobrevivência, fatores bem mais significativos que os ensejos do homem urbano-industrial de utilizar áreas protegidas apenas como instrumento de contemplação e entretenimento.

Sobre os autores
David Leonardo Bouças da Silva

Mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Licenciado em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

José Carlos Bastos Silva Filho

Advogado.Procurador do Estado do Piauí.Professor. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.Especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Labora/ Universidade Estácio de Sá-RJ. Especialista em Direito Processual do Trabalho pela OAB/ESA-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, David Leonardo Bouças; SILVA FILHO, José Carlos Bastos. Tratamento individualizado.: Um caminho para solucionar a problemática da presença de populações residentes em parques nacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1795, 31 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11339. Acesso em: 23 dez. 2024.

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