4. OS PARQUES NACIONAIS
Na definição do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, artigo 11, o PARNA é entendido como um espaço próprio para a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica, cênica, científica, cultural, educativa e recreativa, onde é proibida qualquer interferência humana direta, com exceção das ações de manejo necessárias para sua administração.
Fica evidente, de antemão, que o setor turístico deveria, somente, promover a visitação sustentável nos parques nacionais, haja vista a fragilidade dos ecossistemas envolvidos e os interesses crescentes de aumento de visitantes por parte dos órgãos públicos. Aliás, as UCs de uso indireto são acusadas, grosso modo, de serem estabelecidas contra os interesses da população local ou marginalizando os benefícios advindos de sua criação.
É por isso que o planejamento e o desenvolvimento do turismo, em áreas protegidas, devem levar em consideração a disputa de interesses conflitantes. De um lado, o de prover oportunidade e acesso às experiências recreacionais ao maior número de pessoas possível, e de outro, o dever de proteção e o de evitar a descaracterização dos locais preservados e do patrimônio cultural das comunidades [33].
Tema recorrente, o ecoturismo vem angariando densas discussões, em torno da pretensão de trabalhar a visitação de um número cada vez maior de pessoas em áreas protegidas legalmente, tudo isso fomentado pelas políticas públicas nacionais voltadas ao incremento do setor [34].
Segundo o Instituto Brasileiro de Turismo (EMBRATUR) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o ecoturismo, além de utilizar de forma sustentável o patrimônio natural e cultural, seria responsável por promover o bem-estar das populações envolvidas [35]. Tal entendimento, com o qual corroboramos, parte da premissa de que os objetivos, logrados no ecoturismo, são voltados: ao aumento de receita gerada nas diversas áreas conservadas, possibilitando recursos para a manutenção e para as comunidades locais; fomento à visitação ordenada; preservação dos recursos naturais florísticos, faunísticos e das paisagens cênicas locais; e promoção da utilização racional dos bens naturais [36].
Destarte, nos PARNAS a visitação pública, não obstante ser permitida, sujeita-se às determinações estabelecidas em seu plano de manejo, às normas instituídas pelo órgão gestor e àquelas previstas no SNUC e no regulamento dos parques nacionais no Brasil [37].
Rocktaeschel acrescenta que a atividade ecoturística, em unidades de conservação, pode ser considerada uma alternativa econômica promissora, isso porque os recursos gerados na visitação, e.g., aos PARNAs, podem ser revestidos para apoiar o manejo da unidade, gerar empregos e a conseqüente participação na distribuição da renda da população residente em seu entorno, além de arrebatar mais adeptos à conservação, por meio da difusão de conhecimento e informações ambientais, culturais e históricas [38].
Reconhecida a importância dos PARNAs para a promoção do turismo preocupado com as questões socioambientais, insurge uma significativa problemática sobre a presença humana no interior dessas UCs. O SNUC, em seu artigo 11, § 1º, estabelece que o Parque Nacional, sendo uma Unidade de Proteção Integral, é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas. E, no art. 42, acrescenta que as populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida – como nos PARNAs, e.g. – deverão ser indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e reassentadas em locais e condições acordados com o Poder Público.
Ao permitir a visitação massiva dos "ecoturistas" aos PARNAS e abominar a permanência de qualquer comunidade na área preservada, mesmo quando seus hábitos logram contribuir para conservação da exuberância paisagística – como no caso do PNLM que motivou a produção deste ensaio – a legislação do SNUC estabelece uma odiosa diferenciação, a qual não pode persistir no ordenamento jurídico brasileiro. Senão, vejamos.
Um dos desafios da gestão de áreas protegidas é o de como convencer populações de que seus hábitos culturais e telúricos contrastam com os objetivos de proteção da natureza, carecendo de processos e diretrizes que determinem seu novo modo de vida. E, por exemplo, no caso dos PARNAs, os porquês dos espaços habitados por suas famílias, ao longo de gerações, não comportarem sua permanência, mas admitirem a visitação – muitas vezes em massa – de pessoas alheias ao processo histórico de convivência com a natureza dessas coletividades.
As comunidades locais, como no PNLM, evidenciam suas próprias práticas seculares de subsistência e contribuem significativamente para o incremento do turismo na região. É notável, no convívio com os moradores, a transposição de hábitos e saberes próprios os quais representam um sistema de vida organizado e enraizado na região dos Lençóis, baseado em um conhecimento empírico, todavia, lúcido dos limites naturais que lhes são impostos. Para os moradores locais, há o tempo do plantio, o momento da pesca, o instante da colheita, todos influenciados pela sazonalidade e alheios às altas e baixas estações definidas pelo turismo.
Nesta esteira, do ponto de vista econômico, ao ser efetivado o remanejamento das comunidades locais residentes no PNLM, extinguir-se-á uma rica oferta cultural, posto que os roteiros estabelecidos e, até mesmo, os que não são tradicionalmente comercializados, utilizam suas localidades e os seus estilos de vida como atração turística. É destacável a curiosidade que os turistas estrangeiros têm ao observar os traços culturais das populações ribeirinhas daquele Parque e do seu interior.
Destarte, o presente trabalho pauta-se também na argumentação em torno da importância das comunidades locais tanto para o enriquecimento do produto turístico dos PARNAs, como também da relevância desses grupos para as ações de preservação/conservação. Além disso, ressalta-se a permissividade da exploração turística em UCs, mesmo diante da impossibilidade do seu órgão gestor de controlar o fluxo massivo que atinge tais espaços [39].
5. DO TRATAMENTO INDIVIDUALIZADO ÀS COMUNIDADES LOCAIS
Uma vez apresentada a importância da permanência de comunidades locais em unidades de conservação sob os mais diversos aspectos (econômico, social, turístico, antropológico, entre outros), resta-nos justificar a proposta de solução para a problemática que permeou a presente exposição. Trata-se da inclusão, nos estudos técnicos e nas consultas públicas que antecedem o ato de criação da UC, da necessária investigação a respeito de temas como o importante conhecimento das populações que habitam a unidade, o nível de impacto que elas causam à área, a relação de interdependência existente entre a conservação do espaço e o modus vivendi da comunidade estudada e, por fim, a avaliação quanto à possibilidade da conservação in situ também da diversidade cultural. Explica-se.
Ao mesmo tempo que existe uma vasta legislação regulamentando o dever universal de manutenção de ambiente saudável e equilibrado, consubstanciado internamente nas disposições do art. 225 da Constituição Federal, não carece de proteção também o conhecimento e a cultura das comunidades locais. Com efeito, a Constituição Federal em seus artigos 215, §1º, 216, 231 e 232, indica expressamente a necessidade imperativa de valorização das mais diversas formas de manifestações culturais, em especial, das sociedades indígenas; a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de 05 de junho de 1992, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 2.519/98, reconhece que as comunidades locais e indígenas têm colaborado ativamente na conservação da diversidade biológica e, portanto, merecem ser internacionalmente reconhecidas e protegidas [40]; a Agenda 21, a qual estabelece metas e objetivos que deverão nortear as ações da comunidade internacional durante o século XXI, preconiza também a importância das comunidades locais e das sociedades indígenas, naquilo que pertine à produção de conhecimento tradicional [41]; o Decreto 4.339/02 que institui princípios e diretrizes para a implementação da Política Nacional da Biodiversidade (PNB), complementando a CDB, estabelece entre os princípios da PNB que a manutenção da diversidade cultural nacional é importante para pluralidade de valores na sociedade em relação à biodiversidade, sendo que os povos indígenas, os quilombolas e as outras comunidades locais desempenham um papel importante na conservação e na utilização sustentável da biodiversidade brasileira (art. 2º, XII); a própria lei 9.985/00 relaciona entre os seus objetivos o respeito e a valorização do conhecimento e da cultura das populações tradicionais e o dever de promovê-las social e economicamente (art. 4º, XIII), ademais, entre as diretrizes do SNUC, percebe-se a necessidade de assegurar a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação (art. 5º, III); e, mais recentemente, o Decreto 6.040/07, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, prevê que devam ser observadas as pluralidades socioambiental, econômica e cultural das comunidades e dos povos tradicionais que interagem nos diferentes biomas e ecossistemas, sejam em áreas rurais ou urbanas (art. 1º, VI); entre outros instrumentos que se propõem a defender os hábitos culturais daquelas comunidades.
Relembra-se, conforme argumentos acima expendidos, que nem o direito a proteção ambiental poderá excluir, previamente, o direito das comunidades de verem seu modus vivendi preservado, nem vice-versa, dado a natureza principiológica de ambos [42]. Deste modo, somente diante de um caso concreto, sob determinadas condições, é que se pode definir qual direito deverá preceder ao outro. Isso não significa que um excluíra totalmente o outro. Implicará sim, que, diante de uma determinada situação, um dos direitos sobressairá o outro. Trata-se da chamada relação de precedência condicionada, segundo a qual, no dizer de Robert Alexy, tomando em conta o caso concreto, indicam-se as condições sob as quais um direito (princípio) precede ao outro. Sobre outras condições, a questão da precedência pode ser solucionada inversamente [43].
Assim sendo, quando o SNUC preconiza que, no caso dos PARNAs – onde é permitida até a visitação turística – não é possível a permanência de qualquer atividade antrópica no interior das unidades, a não ser aquela essencial à sua conservação, determinando a imediata remoção das comunidades ali residentes, sem qualquer estudo prévio comprovando que sua permanência não contribua para a conservação da área, afastando antecipadamente toda e qualquer iniciativa de manutenção in situ destas comunidades, afronta veementemente a proteção constitucional dada a elas. Além disso, a legislação que se propõe a preservar a biodiversidade por meio da criação de unidade de conservação olvida-se, como bem observa Nurit Bensusan, que para se conservar a biodiversidade não é suficiente apenas escolher uma área e tentar preservar sua paisagem como se fosse uma fotografia, é preciso, muito mais, assegurar a integridade (totalidade) dos processos que geram e asseguram sua continuidade [44] – onde logicamente se incluem os hábitos telúricos de algumas comunidades locais.
Então, para respondermos à segunda de nossas indagações iniciais, temos de recorrer ao princípio da proporcionalidade a fim de conciliar as necessidades de preservação ambiental com os interesses das comunidades que há gerações residem em áreas selecionadas para compor uma UC. Pelo princípio da proporcionalidade (ou da proibição de excesso) será possível vislumbrar em quais situações é legítima, ou não, a retirada das comunidades que residem em PARNAs. Neste passo, segundo a doutrina de Martin Borowski, a proporcionalidade em sentido amplo se subsume em três subprincípios: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito [45].
Uma medida estatal pode ser considerada adequada ou idônea, segundo Martin Borowski, quando sua adoção conduz a uma relação perfeita entre o meio e o fim legitimamente perseguido pelo Estado, sendo que este é sempre um fim permitido constitucionalmente [46].
Por seu turno, a medida é considerada necessária quando a finalidade por ela visada é alcançável por outro meio igualmente eficaz, mas este é muito mais gravoso que aquele. A necessidade importaria, assim, em certificar a inexistência de meio menos gravoso para concretização dos objetivos visados.
Já a proporcionalidade em sentido estrito se caracteriza pelo sopesamento entre o ônus imposto e o benefício trazido para fins de constatar a legitimidade da medida. O subprincípio em questão exige que se efetue uma ponderação entre a gravidade e a intensidade da medida estatal, por uma parte, e, por outra, o peso dos motivos que a justificam [47].
Desse modo, no caso das populações residentes em PARNAS, antes de ser determinado a sua expulsão da área, deve-se proceder a estudos interdisciplinares aprofundados a respeito da sustentabilidade de seus hábitos para que, após as devidas discussões com a comunidade, possa-se definir se: é adequada a medida de remanejamento das populações residentes na unidade?; a retirada está apta a garantir a melhor preservação/conservação da área e do modo de vida da coletividade?; o remanejamento é realmente necessário?; não existe outro meio menos gravoso capaz de atingir o objetivos visados?; a realocação é proporcional em sentido estrito?; as vantagens do seu cometimento superam custos e constrições da sua realização?; os hábitos telúricos das comunidades não contribuem para a conservação da área?; não há como incluir as comunidades no manejo e na gestão da unidade? Nesta pisada, consideramos essa "ponderação de interesses" a melhor solução para compatibilizar as pretensões preservacionistas e sócio-ambientalistas.
Por tudo isso, na resposta almejada à derradeira indagação, quanto ao que deveria mudar na legislação do SNUC para que as populações residentes em PARNAs pudessem participar de seu manejo, sem a necessidade de serem retiradas de sua área, consoante os argumentos aqui expostos, tendo em vista que cada parque deve possuir estudos prévios e plano de manejo próprios, sugerimos a interpretação individualizada dos casos, chegando-se à conclusões particularizadas de (in)compatibilidade das práticas locais, em vez da generalização dos casos, como previsto na legislação do SNUC.