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Maus-tratos: interpretação do Código Penal e confronto com o delito de tortura

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Agenda 18/06/2008 às 00:00

3. Maus-tratos contra idoso

Eis um novo delito de maus-tratos, introduzido pelo Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/2003), em seu art. 99:

Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado:

Pena — Detenção de 2 (dois) meses a um ano e multa.

§1° Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena — reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos

§ 2° Se resulta a morte:

Pena — reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos

Com exceção da multa, que é cumulativa, as penas são as mesmas do art. 136 do Código Penal em vigor. Não se menciona o abuso de meios de correção ou disciplina, e sim, a submissão a condições desumanas ou degradantes. Também não se fala em pessoa sob a autoridade, guarda ou vigilância — do sujeito ativo — para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, mas em alguém "obrigado a fazê-lo". Trata-se de agente ligado ao idoso por alguma obrigação, ou seja, dever jurídico de zelar por sua integridade e saúde, física ou psíquica, garantindo-lhe por isso mesmo condições de vida humana e digna, alimentação e cuidados adequados e, se for o caso, o desempenho de atividade laboral compatível com seu estado.

Idoso é a pessoa de idade igual ou superior a 60 anos, nos termos do próprio Estatuto (art. 1°).

Desta feita, não há dificuldade em se reconhecer que se trata de concurso aparente de normas. Ainda que presentes todos os elementos do art. 136 e parágrafos do Código Penal, não pode haver dúvida da preponderância e exclusividade do novo dispositivo de lei.


4. Paralelo e confronto com o delito de tortura

No final do item 2.4. lembrei que na apuração de certas violências interessa na prática o dolo de dano (lesões corporais), assim como interessa o abuso de autoridade a que se refere a Lei. n. 4.898/65, restando na penumbra o art. 136.

Com a vigência da Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, esse eclipse teria tudo para consolidar-se, mesmo em relação a outros agentes, no âmbito privado ou familiar. Dentre outras condutas, está sujeito a reclusão, de dois a oito anos, aquele que "submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (art. 1°, II). "Na mesma pena — reza o § 1° — incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". E nos termos do § 2°: "Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos". Foi revogado o art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), in verbis: "Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: Pena — reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos."

Dolo e resultado de dano; tortura como fio da meada; conseqüente punição mais grave: eis o que se percebe nos novos tipos, detalhe que os distancia (ou deveria distanciar) da série de condutas descritas no art. 136. Não é à toa que Silva Franco, ao confrontá-los com outros tipos, se atém aos delitos de ameaça, constrangimento ilegal e lesão corporal leve, concluindo que todos eles, por uma relação consuntiva —concurso aparente de normas — são absorvidos pelo crime de tortura (Tortura: breves anotações sobre a Lei 9.455/97, Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 19, cit., p. 65).

De minha parte, contudo, se acrescento para cotejo o art. 136, é porque me lembro da realidade jurisprudencial (opção majoritária, há pouco analisada) e mui particularmente do texto legal alusivo ao "intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo" (Lei 9.455/97, art.1°, II). Se o dano à integridade corporal é assimilado, como vimos, ao perigo à saúde, e se existe uma certa analogia semântica entre tortura (torturar) e maus-tratos (maltratar), diminui o distanciamento entre as duas figuras delituosas, a que me referi no parágrafo anterior.

Esclarece Luiz Flávio Gomes: "Aqui está a chamada tortura-pena (o castigo é a finalidade do agente). Difere da tortura-prova (quando o meio para a obtenção de uma prova). Esse crime absorve os delitos de maus-tratos e lesão leve" (Entrevista. Notas interpretativas. Revista Jurídica Consulex n. 8. Brasília: Ed. Consulex, ago/1997, p. 15. Igualmente em "Estudos de direito penal e processo penal", 1999, p. 123).

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Trata-se, porém, de um tipo mais ou menos aberto, seja quanto aos agentes, seja principalmente quanto à "intensidade" do sofrimento físico ou mental. Daí a indagação de Sérgio Salomão Shecaira: "A conduta do pai que, ao exceder-se em seu ius corrigendi, bate em seu filho, sobre quem tem a guarda, mesmo sem lhe causar lesão, como forma de castigo pessoal, praticaria a figura descrita no art. 1°, II?" (Algumas notas sobre a nova lei de tortura, Boletim do IBCCrim n. 54, São Paulo, mai/97, p. 2). Semelhante preocupação revela Miguel Reale Júnior, que não se conforma com a amplitude do texto acerca do sujeito ativo. O tipo não menciona o "agente público que tem pessoa sob sua guarda, como o faz o Código Penal português, no art. 143". Os pais e até a empregada doméstica, em relação à criança sob sua guarda, estariam incluídos no rol dos sujeitos ativos. E o próprio "jus corrigendi, de exercício regular de um direito, pode passar a ser, pela lei, crime de tortura, pois nada mais inseguro do que a remissão ao termo fluído ''intenso sofrimento mental'', possível de ocorrer na proibição da menor de 12 de se encontrar com o namorado" (Tipificação da tortura, Revista Jurídica Consulex n. 8. Brasília, Ed. Consulex, ago/1997, p. 14).

Está claro atualmente, do ponto de vista normativo, que os genitores — dentre outros — podem castigar "maltratando" (CP, art. 136) ou castigar "torturando"(Lei e artigo citados). Persiste no sistema uma terceira alternativa, a do crime do art. 129, mas distante do contexto corretivo-disciplinar, ao menos como regra geral. Afora esse detalhe, o operador jurídico vai ter que optar entre o art. 136 do CP e o art. 1°, II, da Lei 9.455/97. Como proceder? Desata-se o nó górdio pela quantidade de sofrimento físico ou mental, que há de ser "intenso". É este, no crime de tortura, o resultado material da conduta (CP, art. 13) e também objeto da vontade do agente (CP, art. 18, I), vontade essa que não se confunde com a respectiva motivação.

A motivação de ambos os delitos é que parece a mesma. Os "meios de correção" do art. 136 correspondem à "forma de aplicar castigo pessoal", enquanto os "meios de disciplina" não passam de "medida de caráter preventivo". E também inexiste diferença fundamental entre as estruturas normativas alusivas ao comportamento típico. Toda e qualquer vítima de "abuso de meios de correção ou disciplina", por seu vínculo de sujeição ou subordinação, é alguém que foi submetido a violência ou grave ameaça, com perigo à vida ou saúde. Nota-se uma relação de gênero a espécie. Não é sem razão que o delito de maus-tratos absorve, em tese, os crimes de ameaça (art. 147) e constrangimento ilegal (art. 146).

Resta, portanto, como diferencial técnico, o "intenso" sofrimento físico ou mental, resultado que o agente quer ou assume como objetivo de sua conduta (dolo de dano). Assim, por uma questão de lógica, não há tipicidade (crime de tortura consumada) no sofrimento que não chegue a ser "intenso", isto é, acentuado, forte, profundo. Matéria delicada, pois envolve duas subjetividades: da vítima e do juiz. Daí a reação crítica da doutrina, diante da necessidade de se garantir aos acusados a certeza de condutas delituosas descritas com suficiente clareza objetiva.

No art. 136 não se fala em sofrimento físico ou mental, que é o resultado de dano visado pelo agente do crime de tortura. O núcleo genérico da conduta (e resultado) é a simples exposição a perigo da vida ou da saúde. Mesmo assim, não é absurdo imaginar-se, nas entrelinhas, um certo grau de sofrimento vivenciado pela vítima, por força do excesso de correção ou disciplina. Não sendo "intenso", pode evidenciar a gravidade mínima de perigo à saúde, nos termos da lei, ou seja, desde que afastado o dolo de dano, que levaria o fato para a tentativa do crime de tortura. O operador jurídico vai precisar de muita sorte e competência para cumprir, com rigor, as instruções cada vez mais confusas e complexas das novas instruções legislativas...

Por fim, para os efeitos de outra espécie de tortura (§1° do art.1°), basta o sofrimento físico ou mental (intenso ou menos intenso) que se imponha ("submeter") contra "pessoa presa ou sujeita a medida de segurança", desde que "por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". Neste caso, qualquer que seja a motivação do agente, o que importa é a ilegalidade da conduta e o dolo de dano. Já os maus-tratos, como vimos até agora, têm um sentido mais restrito e se distinguem da tortura pela natureza do dolo, que é sempre de perigo (em tese).

De um lado, pois, o crime de tortura. De outro, em escala de menor gravidade, o delito de maus-tratos. Bem próxima, persiste a tipicidade de lesões corporais. Como quer que seja, ficou mais difícil lecionar e praticar o direito penal, em face da fome legiferante dos novos tempos. É que a prática depende do aprendizado (ensino). E o ensino (aprendizado) não pode ignorar a prática, que envolve os ingredientes de sempre, incertos e fugidios, ligados às circunstâncias históricas, à clareza textual do sistema e à personalidade do intérprete com poder decisório.


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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Maus-tratos: interpretação do Código Penal e confronto com o delito de tortura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1813, 18 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11397. Acesso em: 17 nov. 2024.

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