5. O direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
Não é por acaso que a Constituição Federal de 1988 é chamada de "Verde". De fato, o meio ambiente representa um dos direitos fundamentais mais bem protegidos pelo Constituinte de 1988, representando uma preocupação constante no âmbito de variados setores e micro-sistemas jurídicos por ela regulamentados [28]. "Toma consciência de que a ‘qualidade do meio ambiente se transformara num bem, num patrimônio, num valor mesmo, cuja preservação, recuperação e revitalização, se tornaram num imperativo do Poder Público, para assegurar a saúde, o bem-estar do homem e as condições de seu desenvolvimento. Em verdade, para assegurar o direito fundamental à vida" [29].
Porém, a definição de meio ambiente, em termos legais, já tinha contornos trazidos pela Lei nº 6.938/81, que definira a Política Nacional do Meio Ambiente, segundo a qual meio ambiente representa "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas".
A doutrina, por sua vez, consagra uma concepção mais ampla de meio ambiente, englobando o meio ambiente natural, o meio ambiente cultural, o meio ambiente artificial ou humano e o meio ambiente do trabalho.
Independentemente dessas nuanças, o fato é que a Constituição Federal prevê o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental de todos, por isso, intangível por eventual alteração em seu texto, um bem de uso comum do povo e pressuposto inelidível à sadia qualidade de vida, atribuindo aos cidadãos e ao Poder Público, de forma solidária e concorrente, o dever de protegê-lo e preservá-lo, dentro de um sistema de desenvolvimento sustentável (artigo 225).
Essa previsão advém de um processo histórico de afirmação, que se inicia nos anos 70, com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo (1972) e é ratificado em 1992, no Rio de Janeiro, na Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, diante de um contexto mundial extremamente preocupante, que coloca em xeque a própria sobrevivência da espécie humana no planeta Terra. "Se neste período de nossas vidas assistimos a surtos de progresso em vários setores da atividade humana, paralelamente, ou em decorrência, assustamo-nos com fenômenos preocupantes, tais, por exemplo, os riscos globais que ameaçam não somente a espécie humana, mas o ecossistema planetário" [30].
Portanto, a consagração ética e jurídica, bem como a efetivação da proteção ao meio ambiente, em nível nacional e internacional, representam condições à manutenção da vida humana na terra. De fato, "o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade de sua existência – a qualidade de vida-, que faz com que valha a pena viver" [31].
Por isso, o caráter difuso do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever da coletividade, em concorrência com o Poder Público, em protegê-lo e preservá-lo, instituindo, na verdade, um verdadeiro sistema de tutela participativa e não-excludente.
6. A Defensoria Pública como instrumento de defesa do meio ambiente
Portanto, diante desse sistema integrado de proteção, não há como excluir a legitimidade ativa da Defensoria Pública na defesa do direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.Ora, se a toda coletividade compete a defesa e a preservação do meio ambiente, não há razão para suprimir da Defensoria Pública, como autêntica instituição democrática e social, o poder-dever de participar ativamente dessa rede de proteção, mormente se levarmos em consideração a atual situação de degradação dos ecossistemas mundiais, regionais e locais. "De fato, a comunidade, através de suas instituições, movimentos populares e organizações intermediárias, envolve-se cada vez mais com a problemática ambiental. Isso decorre da tomada de consciência da situação, do amadurecimento político das instituições e das pessoas, assim como da estimulante solidariedade com a Terra, ‘nossa casa’" [32] (destaque nosso).
Portanto, como acima anotamos, existe uma forte tendência doutrinária e jurisprudencial no sentido de ampliar a legitimidade ativa nas ações coletivas, seja por meio de acréscimos ao rol legal de legitimados, seja pela flexibilização do juízo da pertinência temática. Com a Defensoria Pública o raciocínio não é diferente, possuindo tal instituição legitimidade ativa para tutelar, em âmbito coletivo, qualquer direito difuso, inclusive o meio ambiente pois, de qualquer forma, os "necessitados serão beneficiados com tal atuação, ainda que não exclusivamente. Realmente, como bem observam Fredie Didier e Hermes Zaneti, "a decisão poderá beneficiar a todos, indistintamente, necessitados ou não. Qualquer indivíduo poderá valer-se da sentença coletiva para promover sua a sua liquidação e execução individual. Não se pode confundir o critério para a aferição da capacidade de conduzir o processo coletivo, com a eficácia subjetiva da coisa julgada coletiva. A tutela coletiva é sempre coletiva: tutela-se o direito da coletividade, beneficiando-se, por conseqüência, todos os seus membros. Não se pode confundir a legitimação extraordinária para a tutela dos direitos coletivos (pertencente sempre a uma coletividade) com a legitimação extraordinária para a tutela dos direitos individuais" [33].
Em suma, suprimir da Defensoria Pública a legitimidade ativa para tutelar um direito difuso, como é o meio ambiente, significaria anular o acesso à justiça daquela coletividade de necessitados que se beneficiaria da sentença coletiva, hipótese atualmente odiosa e não mais admitida pelo atual sistema de ações coletivas no Brasil.
Porém, cumpre admitir que a Lei Estadual Paulista nº 988/06 dispõe que é atribuição institucional da Defensoria Pública do Estado promover a "tutela do meio ambiente, no âmbito de suas finalidades institucionais" (artigo 5º, inciso VI, "e"), das quais a principal é a tutela jurídica dos necessitados (artigo 2º).
Entretanto, como o meio ambiente é um interesse difuso e, por isso, indivisível, não se limita a determinado grupo ou coletividade, o que nos leva a concluir que o citado dispositivo legal merece uma interpretação sistemática e ampliativa. Mas, mesmo que assim não se entenda, a legitimidade ativa está garantida, pois, como acima dissemos, dentre os beneficiados, com certeza estarão os economicamente necessitados, o que atende ao pressuposto legal.
Outrossim, não podemos negar que a parcela da sociedade que carece de maiores recursos financeiros está mais vulnerável e exposta às conseqüências oriundas da degradação ambiental, qualquer que seja a espécie do meio ambiente destruído (natural, cultural, histórico ou artificial).
Imagine o desmatamento em uma encosta que causa, na época das águas, o deslizamento de várias casas, cujos proprietários variam entres pessoas pobres e ricas, no sentido legal dos termos. Os ricos poderão transferir seus domicílios para outros imóveis que eventualmente possuam. Os pobres ficarão desabrigados. É um exemplo simples, mas que reflete a realidade brasileira de extrema desigualdade social. Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado em outros casos trágicos, como nas enchentes decorrentes dos lixos lançados e acumulados nos rios, que atingem as populações ribeirinhas e acabam deixando os moradores desabrigados e despidos de seus pertences pessoais atingidos pelas águas.
Portanto, conclui-se que a tutela do meio ambiente beneficia a todos, mas principalmente os economicamente hipossuficientes.
Outro argumento que legitima a atuação da Defensoria Pública na defesa meio ambiente é o princípio do desenvolvimento sustentável que, por sua vez, representa o instrumento de adequação/compatibilização do processo de crescimento econômico com a proteção do meio ambiente, visando à sadia qualidade de vida das futuras gerações.
Consiste no equilíbrio entre crescimento econômico e proteção ambiental. É inegável que os sujeitos obrigados a atender a esse princípio sejam, em geral, aqueles que detêm capital para investimento econômico e que os "credores" são aqueles desprovidos desse capital, dos quais, a grande maioria, são "necessitados", marginalizados do sistema de industrialização e comercialização, cumprindo a Defensoria Pública o papel de exigir o cumprimento desse tão importante preceito constitucional (artigo 225).
Portanto, por todos esses motivos, não há como suprimir dessa Instituição Democrática a legitimidade ativa na tutela coletiva do meio ambiente.
7. Conclusão
A título de arremate, a pertinência temática é o liame substancial entre os fins institucionais e o objeto da tutela pretendida. Não se confunde com a representatividade adequada, tendo em vista a origem teleológica diversa desses institutos.
A pertinência temática, de raiz liberal-individualista, como espécie de limitação ao direito de ação coletiva, deve ter uma verificação flexível e ampla, sob pena de sacrificarmos o direito fundamental de acesso à Justiça.
Aliás, a legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ações coletivas, inclusive na tutela dos interesses difusos, segue a mesma tendência de ampliação, com a supressão gradativa dos obstáculos a ela impostos, num processo claro de democratização da Justiça, como forma de concretização dos direitos fundamentais e realização dos objetivos da República Federativa do Brasil.
O meio ambiente ecologicamente equilibrado, por sua vez, é um direito difuso, cuja proteção é dever da coletividade em concorrência com o Poder Público, dentro de um sistema integrado de proteção participativa e não excludente. Nesse contexto constitucional e legal, a Defensoria Pública tem legitimidade ativa para propor ações coletivas para a proteção do meio ambiente, uma vez que os necessitados serão inexoravelmente beneficiados, mormente se considerarmos que eles são mais vulneráveis às conseqüências decorrentes da degradação ambiental.
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