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Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana.

Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira

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Agenda 29/06/2008 às 00:00

Mesmo que não se reconheça a possibilidade jurídica do casamento civil e da união estável entre pessoas do mesmo sexo, a adoção por casais homoafetivos será possível por analogia, ante a igual capacidade destes em criar um menor em comparação a um casal heteroafetivo. Por fim, igualmente não há nada que proíba que duas pessoas do mesmo sexo constem no registro civil como pais ou mães de um menor.

1. Introdução.

Em 05/06/2008, foi publicado o artigo "Dois pais e uma mãe. Contrato de união estável entre homossexuais. Impossibilidades jurídicas" (http://jus.com.br/artigos/11348), no qual o autor reiterou seu posicionamento sobre a suposta impossibilidade do registro de dois pais e uma mãe no registro civil de uma pessoa e, ainda, a suposta impossibilidade jurídica de realização de um contrato de união estável entre homossexuais, mas apenas um contrato de convivência, por entender que o ordenamento jurídico brasileiro não admitiria a união estável entre casais homoafetivos.

Primeiramente, cumpre-me dizer que o autor realmente não demonstrou nenhum preconceito contra homossexuais em seu artigo, mas apenas uma interpretação do ordenamento jurídico pela qual não vislumbrou a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva. Uma interpretação, todavia, equivocada, como se passa a demonstrar neste artigo.

Embora este artigo não seja propriamente "curto", nele não faço as longas ilações que o tema merece, mesmo porque este é objeto de meu livro nominado Manual da Homoafetividade: Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da adoção por Casais Homoafetivos, atualmente no prelo (em vias de ser publicado). Este artigo constitui uma síntese de meu posicionamento a respeito do tema (tanto que aqui nada falo acerca dos princípios instrumentais da proporcionalidade e da interpretação conforme a Constituição), pensamento este amplamente trabalhado em meu livro (inclusive com os princípios mencionados e jurisprudência constitucional estrangeira, além do enfrentamento dos argumentos apresentados pela doutrina que nega ditas possibilidades jurídicas, demonstrando seu descabimento, análise do Direito Comparado, análise do tratamento histórico conferido pelas sociedades humanas à homossexualidade e apresentação pormenorizada dos conteúdos jurídicos dos princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da interpretação conforme a Constituição e da proporcionalidade). Contudo, pretendo trazer aqui o entendimento doutrinário-jurisprudencial já notório na atualidade que reconhece a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia, e ainda tecer breves considerações sobre a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo e da adoção por casais homoafetivos.

Uma nota para finalizar esta introdução: o debate é sempre saudável e ajuda a uma melhor compreensão do tema. O leitor só tende a ganhar do confronto dialético entre duas visões opostas, por analisar ambas as compreensões sobre o tema e poder chegar, enfim, à sua conclusão. Salvo engano, fui o primeiro a apresentar uma resposta a um artigo publicado neste site, o que ensejou alguns outros artigos-resposta sobre outros temas. Fico satisfeito por ter incentivado tal postura, pois, como dito, o leitor só tende a ganhar do saudável confronto de idéias.


2. Da Possibilidade Jurídica da União Estável Homoafetiva e do Casamento Civil Homoafetivo.

O argumento central de Rafael D’Ávila Barros Pereira consiste em que a Constituição Federal e o Código Civil não reconheceriam a união estável homoafetiva por mencionarem a expressão "o homem e a mulher" em suas redações (arts. 226, §3º da CF/88 e art. 1.723 do CC/02). Aduz, ainda, que a Constituição afirma que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento e que, como não seria possível o casamento civil homoafetivo, não poderia ser reconhecida a união estável homoafetiva – porque ela não poderia ser convertida em casamento. Considera que a diversidade de sexos seria essencial ao casamento civil, fundamentando sua premissa com uma nota de rodapé que menciona o artigo 1.514 do Código Civil, que também utiliza a expressão "o homem e a mulher". Contudo, os argumentos são equivocados.

Com efeito, muito embora a redação dos textos normativos em questão efetivamente mencionem que é reconhecida a união estável "entre o homem e a mulher" e que o casamento civil é o ato realizado quando "o homem e a mulher" comparecem perante o juiz de paz, isso não significa que deva necessariamente ser adotado um raciocínio a contrario sensu para não reconhecer a união estável homoafetiva e o casamento civil homoafetivo. Entendimento neste sentido implicaria em adotar um positivismo legalista de há muito ultrapassado pela ciência jurídica.

Considerando que a interpretação extensiva e a analogia são técnicas de interpretação jurídica que visam colmatar lacunas na legislação, deve-se fazer uma análise para se saber se a situação não-citada pelo texto normativo é idêntica ou idêntica no essencial àquela citada pelo texto normativo, de forma que, se a resposta for positiva, estender o regime jurídico da situação expressamente citada àquela que não o foi pela interpretação extensiva ou pela analogia, respectivamente. Ou seja, se as situações forem idênticas, aplicar-se-á a interpretação extensiva; se as situações forem distintas mas tiverem o mesmo elemento essencial, aplicar-se-á a analogia. Em ambos os casos, o resultado será o mesmo: a extensão do regime jurídico da situação expressamente citada à situação não-citada pelo texto normativo.

Como se vê, a teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale assume grande relevância, porque ela explicita com perfeição que a norma é a conjunção de fatos e valores (as três dimensões do Direito), donde pode-se concluir que norma = fato + valor, do que se percebe que é o valor que justifica a regulamentação de determinado fato, sendo ele, assim, o elemento relevante da análise da finalidade normativa, não o mero fato [01].

Assim, quando se analisa a questão da união estável e do casamento civil sob a ótica da possibilidade de casais homoafetivos serem abarcados por ditos regimes jurídicos, deve-se proceder a uma interpretação teleológica dos mesmos para se saber qual é o valor protegido pelos mesmos e se verificar se os casais homoafetivos se enquadram nesta finalidade normativa (na ratio legis, no telos do texto normativo).

A própria legislação traz as respostas, através de sua interpretação teleológica. O art. 1.511 do CC/02 afirma que o casamento civil estabelece uma "comunhão plena de vida" entre os cônjuges. O art. 1.723 do CC/02 afirma que a união estável é aquela pautada por uma "convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Constituir família não significa "ter filhos", "pretender ter filhos" ou mesmo "poder ter filhos", pois, se fosse este o caso, casais heteroafetivos estéreis não poderiam ter sua união estável reconhecida e não poderiam se casar, o que evidentemente não é o caso. Constituir família é justamente a manutenção de uma união pública, contínua e duradoura, em uma comunhão plena de vida, com todas as conseqüências que esta plenitude acarreta (fidelidade recíproca, mútua assistência, vida em comum, respeito e consideração mútuos – art. 1.566, incs. I a III e V do Código Civil).

Vê-se, assim, que não é qualquer amor que forma a família contemporânea, mas apenas o amor ligado a outros elementos necessários para tanto. Este é o amor familiar de que fala Sérgio Rezende de Barros (através da expressão "afeto familiar"). Em conceito próprio, afirmo que o amor familiar é aquele que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Este é o elemento formador da família contemporânea, que é (a família) o objeto de proteção (a ratio) dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável. Afinal, a família é a base da sociedade (art. 226, caput da CF/88).

Note-se um importante detalhe: não se diz aqui que o afeto puro e simples (o afeto isoladamente considerado) seja o elemento formador da família contemporânea, mas, nas palavras de Sérgio Rezende de Barros, "um afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam" [02]. Isso é importante de ser destacado porque há uma corrente doutrinária que, quando enfrenta o argumento do afeto existente na união homoafetiva diz que o afeto seria irrelevante para o deslinde da causa – mas, como não é o mero afeto que se defende como o elemento formador da família contemporânea, mas o citado amor familiar, o argumento improcede.

É curioso notar que muitos críticos do status jurídico-familiar das uniões homoafetivas não se dignam a dizer qual seria o elemento formador da família contemporânea. Dizem que a união homoafetiva não seria uma entidade familiar, mas não dizem o que formaria dita entidade familiar. Claramente presumem que a união heteroafetiva a formaria, mas não dizem o porquê, em atitude arbitrária (imotivada) que, portanto, não merece ser considerada. Quanto ao tema, é evidente que o amor familiar é o que forma a família contemporânea: a família é a base da sociedade justamente porque seus membros são ligados por este "afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmo quando estejam distantes no tempo e no espaço, por uma solidariedade íntima e fundamental de suas vidas – de vivência, convivência e sobrevivência – quanto aos fins e meios de existência, subsistência e persistência de cada um e do todo que formam" [03]. Isso é o que justifica a proteção da família pelo Direito: essa é a finalidade (telos) da proteção conferida pelo Direito às uniões amorosas pelos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, donde, a partir do momento em que se constata que as uniões homoafetivas são pautadas por este mesmo amor familiar existente nas uniões heteroafetivas, então é inafastável a aplicação de uma interpretação extensiva ou de uma analogia para estender ditos regimes jurídicos a elas, por força do imperativo da isonomia.

Pode-se indagar porque se fala em interpretação extensiva ou analogia. Como mencionado, as duas versam sobre uma situação citada pelo texto normativo e outra não citada, embora a interpretação extensiva refira-se a duas situações idênticas e a analogia refira-se a duas situações que, embora diferentes em algum aspecto, são idênticas no essencial, naquilo que justifica a normatização do fato regulamentado. Nesse sentido, considero que as uniões homoafetivas são idênticas às uniões heteroafetivas tendo em vista que ambas são pautadas pelo mesmo amor familiar, sendo absolutamente irrelevante o fato de termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos diversos em outro, o que não configura nenhuma diferença – não mais do que a existente entre um casal heteroafetivo formado por brancos e um casal heteroafetivo formado por negros. Mas, caso se considere que isso configuraria uma "diferença" entre as situações, então só se pode concluir que não se trata de uma diferença relevante na medida em que ambas as uniões são pautadas pelo mesmo elemento essencial, a saber: o amor familiar, que é o elemento formador da família contemporânea.

Dessa forma, a interpretação teleológica dos regimes jurídicos do casamento civil e da união estável demonstra que eles visam proteger a família oriunda de uma união amorosa, entendida ela como aquela pautada pelo amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura. Não que outras formas de amor não configurem o amor familiar: o amor fraterno que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura também deve ser visto como caracterizador de uma entidade familiar, embora sem caráter romântico-sexual. Mas o casamento civil e a união estável são regimes jurídicos que abarcam as uniões amorosas pautadas pelo amor romântico, não pelo amor fraterno, donde correta a definição aqui adotada.

Nesse sentido, casais homoafetivos possuem o mesmo amor familiar existente em casais heteroafetivos, razão pela qual encontram-se em situação idêntica ou, no mínimo, análoga à destes, donde merecem receber a mesma proteção jurídica que estes recebem. Vale citar, neste ponto, a lição de Maria Helena Diniz, segundo a qual a analogia é decorrente da isonomia (e, com ainda mais razão, também a interpretação extensiva), na medida em que o princípio da igualdade visa garantir o mesmo tratamento jurídico aos iguais (interpretação extensiva) ou fundamentalmente iguais (analogia) [04], donde seria mesmo desnecessária qualquer menção expressa da legislação à interpretação extensiva ou à analogia para que elas pudessem ser usadas para colmatar lacunas na legislação, pois elas estão implícitas à própria isonomia.

Aponte-se, ainda, que existe uma efetiva discriminação jurídica cometida contra homossexuais ao não se reconhecer o casamento civil e a união estável a eles, pois estes são os únicos regimes jurídicos que conferem a proteção do Direito de Família às uniões amorosas. A Revista SuperInteressante de Julho/2004 elencou mais de trinta direitos negados a homossexuais pelo não-reconhecimento de seu status jurídico-familiar [05]. Afinal, nas palavras da Suprema Corte de Massachussetz/EUA (ao declarar a inconstitucionalidade do não-reconhecimento do casamento civil homoafetivo por afronta à isonomia e à dignidade da pessoa humana), "O casamento também confere uma enormidade de vantagens na esfera privada e social àqueles que decidem se casar" [06].

Nesse ponto, quanto à isonomia, para parafrasear Celso Antônio Bandeira de Mello em seu clássico Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, a discriminação juridicamente válida é aquela que vise a pessoas indeterminadas e indetermináveis no momento de sua escolha (na elaboração do projeto legislativo), que seja uma decorrência lógico-racional do critério diferenciador erigido (ou seja, cabe a quem defende a diferenciação provar sua necessidade e pertinência lógico-racional [07]) e, por fim, que esteja em consonância com os valores constitucionalmente consagrados. Faço apenas uma ressalva ao pensamento do célebre doutrinador: penso que o terceiro critério não faz parte da isonomia, mas da constitucionalidade em geral. Isso porque, se é certo (como é) que a discriminação juridicamente válida é aquela que, além de visar pessoas indeterminadas e indetermináveis e seja pautada por uma motivação lógico-racional, deva ser coerente com os valores constitucionalmente consagrados, a isonomia encontra-se satisfeita com a presença dos dois primeiros aspectos, donde eventual incoerência da diferenciação com outros valores constitucionais ensejará inconstitucionalidade por afronta a eles, não à isonomia – o que significa que a discriminação juridicamente válida necessariamente tem que respeitar a isonomia, embora o respeito à isonomia nem sempre gere uma discriminação juridicamente válida.

Por outro lado, é de se notar que a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello deve ser complementada com a ponderação de Canotilho no sentido de que o princípio da isonomia não se resume à proibição do arbítrio (tão bem explicitada pelo primeiro), mas também à função social da igualdade, no sentido de ser a isonomia uma imposição constitucional relativa que, por isso, a caracteriza como uma forma de eliminação das desigualdades fáticas. Em outras palavras, ainda que a isonomia genericamente considerada não fundamente um dever absoluto de legislação, fundamenta um dever de legislação relativo, uma imposição constitucional acessória, uma exigência de atuação relativa, no sentido de que quando existirem pessoas essencialmente iguais àquelas que foram objeto de regulamentação legal [e, com muito mais razão, absolutamente iguais], o princípio da igualdade exige para estes uma disciplina legal igual à estabelecida para os casos já regulados, fundamentando um dever legislativo de atuação nesse sentido. Dessa forma, aponta o autor que quando a disciplina legiferante favorecer certos indivíduos esquecendo de outros, impõe-se à Jurisdição e à Administração que supram a lacuna legal por intermédio da analogia [ou pela interpretação extensiva, na hipótese de situações idênticas], só devendo ser dita lei ser declarada nula quando as vantagens legais não possam ser estendidas através de aplicação analógica aos casos ou grupos reconhecidos como portadores dos mesmos pressupostos daqueles já contemplados pela disciplina legal [08].

Por outro lado, o princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos a mesma dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, só admitindo a relativização da dignidade de uns em relação à de outros por força do aspecto material da isonomia. Isso porque a dignidade humana constitucionalmente consagrada garante a todos o direito à felicidade [09], na medida em que a realidade empírica demonstra que a própria existência humana destina-se a evitar o sofrimento e a buscar aquilo que acreditamos nos trará a felicidade. Parafraseando Luiz Alberto David Araújo, a própria noção de contrato social implica na noção de que este pacto coletivo só é aceito pelas pessoas em geral por estas acreditarem que, mediante a vida em sociedade, com todos os seus ônus e benefícios, terão condições de alcançarem a felicidade [10].

Dessa forma, considerando a inexistência de uma motivação lógico-racional que justifique a discriminação de casais homoafetivos em relação a casais heteroafetivos por conta unicamente da orientação sexual e do sexo de um dos membros do casal (pois, se um dos membros do casal fosse de sexo oposto ao seu, não se obstaria seu casamento civil ou união estável, donde comprovada a discriminação por sexo também neste caso [11]), assim como pela inexistência de coerência de dita discriminação com os demais valores constitucionais (em especial da promoção do bem estar de todos, da justiça e da pluralidade), então afigura-se inconstitucional o não-reconhecimento do casamento civil e da união estável entre casais homoafetivos – pelos direitos negados (isonomia) e pelo arbitrário menosprezo aos casais homoafetivos que só serão verdadeiramente felizes se puderem consagrar sua união pelo casamento civil, por toda a simbologia que ele traz (dignidade da pessoa humana).

Essas considerações fizeram-se necessárias para se chegar à conclusão constitucionalmente adequada sobre o tema, a saber: ante a incoerência do não-reconhecimento da união estável homoafetiva com os valores constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana (e também: da promoção do bem estar de todos, da justiça e da pluralidade), afigura-se indispensável a aplicação da interpretação extensiva ou da analogia para reconhecer a união estável homoafetiva, ante a identidade de situações entre a união estável heteroafetiva e a união estável homoafetiva. É a aplicação da função social da isonomia, supra citada por Canotilho.

Vale lembrar que a doutrina constitucionalista majoritária não admite, em hipótese alguma, a existência de conflitos reais entre normas constitucionais originárias (como as do presente caso), afirmando que tratar-se-iam de meros conflitos aparentes, solucionáveis pelos princípios gerais de hermenêutica. Nesse sentido, os princípios da unidade da Constituição, da máxima efetividade das normas constitucionais e da concordância prática (notórios princípios de interpretação constitucional) demandam pela aplicação de interpretação extensiva ou analogia para reconhecer a união estável homoafetiva – pois, do contrário, não haverá unidade entre as normas constitucionais em conflito, não terão elas uma máxima efetividade (pois a dignidade humana e a isonomia terão sido arbitrariamente afastadas ante a irracionalidade da discriminação das uniões homoafetivas na hipótese) e inexistirá a concordância prática almejada (ante o sacrifício dos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia no presente caso). A se entender de forma contrária ao aqui entendido, teremos um conflito real (uma antinomia real) entre a norma da união estável e as normas da isonomia e da dignidade da pessoa humana, o que exigirá que se realize uma interpretação corretiva do Direito mencionada por Maria Helena Diniz [12] e Jorge Miranda [13], no sentido de que os valores fundamentais da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da promoção do bem-estar de todos, da justiça e da pluralidade demandarão por uma interpretação corretiva que reconheça a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva (e, conseqüentemente, do casamento civil homoafetivo).

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Assim, afigura-se possível juridicamente a união estável homoafetiva e, pelo mesmo motivo, o casamento civil homoafetivo por força da interpretação extensiva ou da analogia, como decorrência da isonomia.

2.1. Doutrina sobre União Estável Homoafetiva.

A doutrina moderna tem, cada vez mais, reconhecido a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva.

Maria Berenice Dias merece amplo destaque sobre o tema. Pioneira, a Desembargadora [14] foi a primeira a defender a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva por força da analogia.

Rafael D’Ávila Barros Pereira citou um trecho da obra de Berenice no qual ela afirmou que a união estável é gênero do qual devem ser obtidas duas espécies, a união estável homoafetiva e a união estável heteroafetiva, mas dela discordou por não vislumbrar no ordenamento jurídico respaldo normativo para tal conclusão. Contudo, o trecho que ele transcreveu não trouxe o cerne da tese de Berenice: justamente a menção à analogia. A analogia é expressamente prevista na legislação: arts. 4º da LICC e 126 do CPC (além de decorrer diretamente da isonomia), donde, considerando que as uniões homoafetivas são idênticas ou, no mínimo, análogas às heteroafetivas no que tange ao amor familiar nelas existente, elas merecem o mesmo tratamento jurídico destas e, portanto, terem reconhecida sua união estável, pela interpretação extensiva ou pela analogia. A crítica do autor, portanto, improcede.

Como o autor citou um trecho incompleto da doutrina de Berenice, cumpre trazer o trecho fundamental (da mesma obra da qual o autor retirou o trecho transcrito em seu artigo), que demonstra à saciedade de Maria Berenice Dias [15] o fundamento normativo a possibilitar a união estável homoafetiva – a analogia:

O silêncio constitucional e a omissão legiferante não podem levar à negativa de se extraírem efeitos jurídicos de tais vínculos, devendo o juiz atender à determinação do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e fazer uso da analogia, fos costumes e princípios gerais de direito. Não há como fugir da analogia com as demais relações que têm o afeto por causa e, assim, reconhecer a existência de uma entidade familiar à semelhança do casamento e da união estável. O óbice constitucional, estabelecendo a distinção de sexos ao definir a união estável, não impede o uso dessa forma integrativa de um fato existente e não regulamentado no sistema jurídico. A identidade sexual não serve de justificativa para se buscar qualquer outro ramo do Direito que não o Direito das Famílias. Não há dúvida de que a analogia tem o mérito de reconhecer o caráter familiar das uniões homossexuais que satisfazem os pressupostos hoje valorizados pelo direito de família e consagrados na Constituição.

(...)

Buscando a aproximação reclamada por Maximilano, entre os institutos que se encontram normatizados, as uniões homoafetivas, desamparadas pela lei, mais se identificam com a união estável e o casamento. Abstraindo-se o sexo dos conviventes, nenhuma diferença há entre as relações homo e heterossexuais, pois existe uma semelhança no essencial, a identidade de motivos entre os dois casos. Ambos são vínculos que têm sua origem no afeto, havendo identidade de propósitos, qual seja a concretização do ideal de felicidade de cada um. A lacuna legal é de ser colmatada por meio da legislação que regulamenta os relacionamentos interpessoais com idênticas características, isto é, com os institutos que regulam as relações familiares, sem que se esteja afrontando a norma constitucional que tutela as relações de pessoas de sexos opostos.

A omissão legal não pode ensejar a negativa de direitos a vínculos afetivos que não têm a diferença de sexos como pressuposto. A dimensão metajurídica de respeito à dignidade humana impõe que se tenham como protegidos pela Constituição os relacionamentos afetivos independentemente da identificação de sexo do par: se formados por homens e mulheres ou só por mulheres ou só por homens. Atendidos os requisitos legais para a configuração da união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes. (grifo e destaques nossos)

Nesse mesmo sentido, leciona Taísa Ribeiro Fernandes [16], no sentido de que há identidade de situações entre as uniões homoafetivas e heteroafetivas, visto que ambas são pautadas pela vida em comum, respeito, afeto, solidariedade, mutua assistência e tantos outros, donde, superada a letra fria do texto normativo e tendo em conta a sua substância, seu fim social (em suma, digo eu, sua interpretação teleológica) percebe-se que as uniões homoafetivas representam efetivas entidades familiares e têm, portanto, que receber o mesmo tratamento jurídico dispensado às uniões heteroafetivas, razão pela qual é cabível o recurso analógico para isto possibilitar.

Destaque-se, ainda, a posição de Luís Roberto Barroso [17]. Em parecer monográfico sobre o tema, o constitucionalista demonstrou categoricamente como restam afrontados os princípios da isonomia [18], da liberdade pessoal [19], da dignidade da pessoa humana [20] e da segurança jurídica [21] quando se interpreta o art. 226, §3º da CF/88 de forma proibitiva da união estável homoafetiva, concluindo no sentido da possibilidade jurídica do reconhecimento da união estável homoafetiva, (i) pelo fato do texto normativo da união estável ser uma norma de inclusão, criada com o intuito de se acabar com a discriminação antes ocorrida em relação às uniões extramatrimoniais, donde uma norma de inclusão não pode ser interpretada de forma discriminatória, sob pena de se contrariar os princípios constitucionais e os fins que a justificaram, além do que os citados princípios impõem o reconhecimento da possibilidade jurídica da união estável homoafetiva [22]; ou, não aceita esta tese e admitindo-se a existência de lacuna no referido texto normativo, (ii) pelo inequívoco cabimento da analogia, visto que presentes na união homoafetiva os mesmos elementos essenciais configuradores da união estável, a saber a convivência pacífica e duradoura, caracterizada pela afetividade, comunhão de vida e asistência mútua, emocional e prática, com o intuito de constituir família [23].

No mesmo sentido do parecer de Luís Roberto Barroso, a Representação assinada por Daniel Sarmento e outros juristas visando a impetração de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental para o reconhecimento da união estável homoafetiva [24], com desenvolvimentos próprios também alega afronta aos princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da segurança jurídica para, em seguida, defender uma interpretação teleológica do art. 226, §3º da CF/88, norma de inclusão que é, de forma a se reconhecer a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva – seja pela aplicação direta das referidas normas constitucionais, seja pela aplicação da analogia.

Ainda nesse sentido, é de se destacar que, em 27/02/2008, o Governador do Estado do Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) a impetrou Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132, visando o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal (cuja íntegra encontra-se disponível no site do Supremo Tribunal Federal [25]), na qual se utilizou de argumentos similares (ou, quem sabe, baseados) no parecer de Luís Roberto Barroso e na Representação assinada por Daniel Sarmento e outros, na qual demonstrou a afronta aos princípios da isonomia, da liberdade/autonomia privada, da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica no não-reconhecimento da união estável homoafetiva (argumentos amplamente analisados em meu livro).

Maria Celina Bodin de Moraes [26] esmiuçou com maestria a tese da norma geral de inclusão. A autora demonstrou à saciedade que o art. 226, §3º da CF/88 foi criado como uma norma geral de inclusão, de forma a incluir a concubina no Direito de Família para superar a discriminação histórica por ela sofrida, donde demonstrou a autora que uma norma geral de inclusão não pode ser interpretada de modo arbitrariamente excludente. Vale citar a íntegra de sua lição a respeito do tema:

O argumento jurídico mais consistente, contrário à natureza familiar da união civil entre pessoas do mesmo sexo, provém da interpretação do Texto Constitucional. Nele encontram-se previstas expressamente três formas de configurações familiares: aquela fundada no casamento, a união estável entre um homem e uma mulher com ânimo de constituir família (art. 226, §3º), além da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Alguns autores, em respeito à literalidade da dicção constitucional e com argumentação que guarda certa coerência lógica, entendem que ‘qualquer outro tipo de entidade familiar que se queira criar, terá que ser feito via emenda constitucional e não por projeto de lei’.

O raciocínio jurídico implícito a este posicionamento pode ser inserido entre aqueles que compõem a chamada teoria da ‘norma geral exclusiva’ segundo a qual, resumidamente, uma norma, ao regular um comportamento, ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os demais comportamentos [27]. Como se salientou em doutrina, a teoria da norma geral exclusiva tem o seu ponto fraco no fato de que, nos ordenamentos jurídicos, há uma outra norma geral (denominada inclusiva), cuja característica é regular os casos não previstos na norma, desde que semelhantes a ele, de maneira idêntica [28]. De modo que, frente a uma lacuna, cabe ao intérprete decidir se deve aplicar a norma geral exclusiva, usando o argumento a contrario sensu, ou se deve aplicar a norma geral inclusiva, através do argumento a simili ou analógico.

Sem abandonar os métodos clássicos de interpretação, verificou-se que outras dimensões, de ordem social, econômica, política, cultural etc., mereceriam ser consideradas, muito especialmente para interpretação dos textos das longas Constituições democráticas que se forjaram a partir da segunda metade deste século. Sustenta a melhor doutrina, modernamente, com efeito, a necessidade de se utilizar métodos de interpretação que levem em conta trata-se de dispositivo constante da Lei Maior e, portanto, métodos específicos de interpretação constitucional devem vir à baila.

Daí ser imprescindível enfatizar, no momento interpretativo, a especificidade da normativa constitucional – composta de regras e princípios –, e considerar que os preceitos constitucionais são, essencialmente, muito mais indeterminados e elásticos do que as demais normas e, portanto, ‘não predeterminam, de modo completo, em nenhum caso, o ato de aplicação, mas este se produz ao amparo de um sistema normativo que abrange diversas possibilidades’ [29]. Assim é que as normas constitucionais estabelecem, através de formulações concisas, ‘apenas os princípios e os valores fundamentais do estatuto das pessoas na comunidade, que hão de ser concretizados no momento de sua aplicação’ [30].

Por outro lado, é preciso não esquecer que segundo a perspectiva metodológica de aplicação direta da Constituição às relações intersubjetivas, no que se convencionou denominar de ‘direito civil-constitucional’, a normativa constitucional, mediante aplicação direta dos princípios e valores antes referidos, determina o iter interpretativo das normas de direito privado – bem como a colmatação de suas lacunas –, tendo em vista o princípio de solidariedade que transformou, completamente, o direito privado vigente anteriormente, de cunho marcadamente individualístico. No Estado democrático e social de Direito, as relações jurídicas privadas ‘perderam o caráter estritamente privatista e inserem-se no contexto mais abrangente de relações a serem dirimidas, tendo-se em vista, em última instância, no ordenamento constitucional.

Seguindo-se estes raciocínios hermenêuticos, o da especificidade da interpretação normativa civil à luz da Constituição, cumpre verificar se por que a norma constitucional não previu outras formas de entidades familiares, estariam elas automaticamente excluídas do ordenamento jurídico, sendo imprescindível, neste caso, a via emendacional para garantir proteção jurídica às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, ou se, ao contrário, tendo-se em vista a similitude das situações, estariam essas uniões abrangidas pela expressão constitucional ‘entidade familiar’.

Ressalte-se que a Constituição Federal de 1988, além dos dispositivos enunciados em tema de família, consagrou, no art. 1º, III, entre os seus princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, ‘impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família’ [31]. Assim sendo, embora tenha ampliado seu prestígio constitucional, a família, como qualquer outra comunidade de pessoas, ‘deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na media em que se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade de seus integrantes’ [32]. É o fenômeno da ‘funcionalização’ das comunidades intermediárias – em especial da família – com relação aos membros que as compõem [33].

A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à ‘forma’ familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes.

Se a família, através de adequada interpretação dos dispositivos constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’, não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que, embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmo fundamentos e com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras formas de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera seja a proibição de qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas, especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se configura como direito personalíssimo –, seja a razão maior de que o legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), tutelando-a onde quer que sua personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição brasileira, assim como a italiana, inspirou-se no princípio solidarista, sobre o qual funda a estrutura da República, significando dizer que a dignidade da pessoa é preexistente e a antecedente a qualquer outra forma de organização social.

O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união estável’ o legislador constitucional impôs o requisito da diversidade de sexo parece insuficiente para fazer concluir que onde vínculo semelhante se estabeleça, entre pessoas do mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre entre heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser tutelados de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos semelhantes e, portanto, também, os deveres correspondentes. A prescindir da veste formal, a ser dada pelo legislador ordinário, a jurisprudência – que, em geral, espelha a sensibilidade e as convenções da sociedade civil –, vem respondendo afirmativamente.

A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou tendência não configura doença de qualquer espécie – a ser, portanto, curada e destinada a desaparecer –, mas uma manifestação particular do ser humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio fundamental da dignidade da pessoa, ao qual está definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação sexual, parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo devem merecer status semelhante às demais comunidade de afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar.

Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, §8º). (grifos e destaques nossos)

Em suma, a teoria da norma geral de exclusão é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, que reconhece a possibilidade de supressão de lacunas por intermédio da interpretação extensiva ou da analogia, o que é incompatível com tal teoria.

Como se percebe, um mínimo conhecimento de hermenêutica jurídica é capaz de superar o inócuo argumento de que a lei teria sido "clara" ao dispor que a união estável (e, pelos mesmos fundamentos, o casamento civil) seria a união entre o homem e a mulher, pois o simplismo dessa posição é de um legalismo positivista de há muito ultrapassado pela ciência jurídica. Constatando-se a identidade de situações ou, ainda que se as considere diferentes, a identidade naquilo que é essencial à situação regulamentada (o amor familiar nelas existente), é de se estender o regime jurídico da união estável (e do casamento civil) às uniões homoafetivas por força da interpretação extensiva ou da analogia (respectivamente), decorrentes que são da isonomia e, ainda, como imposição do princípio da dignidade da pessoa humana.

2.1.1. A Jurisprudência dos Tribunais de 2º Grau.

A Jurisprudência de 2ª Instância encontra-se dividida sobre o tema, embora ainda pareça ser minoritária a tese de reconhecimento da união estável homoafetiva. Mas valem citar alguns precedentes nesse sentido, dada a precisão de seus argumentos:

UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. MEAÇÃO. PARADIGMA. Não se permite mais o farsaismo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros.

(TJ/RS, Apelação Cível No. 70001388982, 7ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, por maioria – sem grifos e destaques no original)

HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possível o processamento e o reconhecimento de união estável entre homossexuais, ante os princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao sexo. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso país, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades, possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito.

(TJ/RS, Apelação Cível No. 598362655, 8ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Trindade, em 01/03/00, v.u. – sem grifos e destaques no original)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE DISSUOLUÇÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO CUMULADA COM PARTILHA. DEMANDA JULGADA PROCEDENTE. RECURSO IMPRIOVIDO. Aplicando-se analogicamente a Lei 9.278/96, a recorrente e sua companheira têm direito assegurado de partilhar os bens adquiridos durante a convivência, ainda que tratando-se de pessoas do mesmo sexo, desde que dissolvida a união estável. O Judiciário não deve distanciar-se de questões pulsantes, revestidas de preconceitos só porque desprovidas de norma legal. A relação homossexual deve ter a mesma atenção dispensada às outras relações. Comprovado o esforço comum para a ampliação ao patrimônio das conviventes, os bens devem ser partilhados. Recurso Improvido.

(TJ/BA, Apelação Cível No. 16313-9/99, 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Mário Albiani, v.u., julgado em 04/04/01 – sem grifos e destaques no original)

Constitucional. Civil. Família. União estável. Pessoas do mesmo sexo. Relação homoafetiva. Artigo 3º inciso IV, da Constituição Federal. A Constituição Federal é expressa no sentido de que constitui objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, tornando defeso qualquer tipo de preconceito ou discriminação ligada a condições que sejam inerentes à pessoa humana.

(TJ/RJ, Apelação Cível No. 2006.001.06195, Relator Desembargador Marco Antonio Ibrahim, julgado em 04/07/06 – sem grifos e destaques no original)

UNIÃO HOMOAFETIVA. PENSÃO. SOBREVIVENTE. PROVA DA RELAÇÃO. POSSIBILIDADE - À união homo afetiva que irradia pressupostos de união estável deve ser conferido o caráter de entidade familiar, impondo reconhecer os direitos decorrentes deste vínculo, pena de ofensa aos princípios constitucionais da liberdade, da proibição de preconceitos, da igualdade e dignidade da pessoa humana.

(TJ/MG, Apelação Cível No. 1.0024.05.750258-5/002(1), Relator Dezembargador Belizário de Lacerda, v.u., julgado em 04/09/07 – sem grifos no original)

Veja-se, ademais: TJ/RJ, Apelação Cível No. 2005.001.22849, Relator Desembargador Ferdinaldo Nascimento, v.u., julgado em 11/04/06. A ementa nada diz sobre a tese, razão pela qual se extrai do inteiro teor o seguinte trecho: "(...) não obstante respeitáveis os posicionamentos em sentido contrário, entendo perfeitamente cabível o processamento e o reconhecimento de uma união estável entre homossexuais. / É certo que a Constituição Federal, consagrando princípios democráticos de direito, proíbe qualquer espécie de discriminação, principalmente quanto a sexo, sendo incabível, pois, discriminação quanto à união homossexual. / Com efeito, a Carta Magna traz como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). / Como direito e garantia fundamental, dispõe a Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). / Conforme ensinamento mais básico do Direito Constitucional, tais regras, por retratarem princípios, direitos e garantias fundamentais, se sobrepõem a quaisquer outras, inclusive àquela esculpida no art. 226, §3o., CF/88, que prevê o reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher" (...) / Não é preciso esperar a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei n.º 1.151/95, que disciplina a ‘parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo’, para reconhecer-se a possibilidade de reconhecimento de uma união estável entre homossexuais, porque, além dos dispositivos legais elencados, nossa legislação permite que o juiz decida o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito (art. 4º da LICC). / O direito tem caminhado com segurança ao retrataro descabimento de preconceitos e discriminações" (sem grifos no original).

Os arestos citados demonstram cabalmente a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por analogia e com base nos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Como se vê, um mínimo conhecimento de hermenêutica jurídica supera a lacuna legal para tanto, configurando um legalismo positivista totalmente ultrapassado o entendimento de que a ausência de lei expressa impossibilitaria tal conclusão.

2.1.2. A Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Equívocos, avanços e o resultado parcial do REsp 820.475.

Analisem-se os julgados do Superior Tribunal de Justiça a respeito do tema.

No REsp 148.897/MG, o STJ afirmou pela primeira vez a união homoafetiva como uma "sociedade de fato" regida pelo Direito das Obrigações. Em que pese ter sido um avanço, pois na época mesmo a aplicação da teoria das sociedades de fato [34] às uniões homoafetivas era questionada, os Ministros aduziram que entendiam que a situação não era idêntica à da união estável constitucionalizada, mas não explicitaram os motivos para tanto. Neste caso não houve polêmica, pois os pedidos da ação originária requeriam apenas a aplicação do Direito Obrigacional, mas os Ministros espontaneamente manifestaram-se nesse sentido, embora não tenham cumprido a obrigação de apresentarem o motivo que justificaria essa diferença de tratamento jurídico às uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas, como determina a isonomia (que exige que aquele que pretende um tratamento diferenciado justifica de maneira lógico-racional a pertinência dessa diferenciação).

No REsp 323.370/RS, o Ministro Barros Monteiro afirmou que a lei e a Constituição seriam "claras" ao dispor a união estável como a relação entre um homem e uma mulher e, portanto, não haveria que se falar em lacuna na legislação. Ao que parece, foi uma forma de evitar enfrentar a questão sob o enfoque da analogia. Contudo, o equívoco do Ministro foi gigantesco, pois o fato de um texto normativo citar uma situação fática (no caso, a união entre o homem e a mulher) não leva à conclusão de inexistência de lacuna – a lacuna existe justamente porque não há nenhum texto normativo que trate da união homoafetiva, seja para regulamenta-la ou para proibi-la. Para se acolher o raciocínio do Ministro ter-se-ia que se reconhecer a inexistência de lacunas na legislação como um todo, negando-se a possibilidade de uso da analogia – afinal, todo texto normativo cita uma situação fática, donde, pelo raciocínio do Ministro, isso faria com que se extinguisse a possibilidade de existência de lacunas na legislação, o que evidentemente não é o caso. A aplicação da analogia em decisões judiciais comprova o descabimento da posição exarada neste acórdão. A única forma de se acolher o raciocínio do Ministro Barros Monteiro seria pela recepção da teoria da norma geral exclusiva, mas já se demonstrou o completo descabimento desta teoria, já que o ordenamento jurídico pátrio acolheu a teoria da norma geral inclusiva em seu lugar justamente por legitimar o uso da interpretação extensiva e da analogia para supressão de lacunas, o que é incompatível com aquela outra teoria.

No REsp 502.995/RN, o Ministro Jorge Scartezzini citou a lição de Rainer Czajkowski, para quem a união homoafetiva não poderia formar uma entidade familiar por não ter capacidade procriativa, assim como um artigo de Thiago Hauptmann Borelli Thomaz. Sobre a capacidade procriativa, ela tanto não é requisito para a configuração de uma família e, assim, para o casamento civil e à união estável que casais heteroafetivos estéreis, que não a possuem, são reconhecidos como entidades familiares e, portanto, a eles são reconhecidos os regimes jurídicos do casamento civil e da união estável, donde percebe-se o equívoco do argumento. Mas o curioso deste julgado encontra-se na citação do artigo de Thiago Hauptmann Borelli Thomaz, pois este autor, apesar de reconhecer que, no plano fático, as uniões homoafetivas formam famílias, pensa que no plano jurídico elas não o configurariam, embora ele não apresente a justificação para tanto. Ora, se uma união amorosa forma uma família no plano fático (como a união homoafetiva forma, ante o já explicitado neste artigo), então ela deve ser protegida pelo Direito de Família e, portanto, ter a si reconhecido o direito ao casamento civil e à união estável quando não incluída nos taxativos impedimentos matrimoniais (atualmente no artigo 1.521 do Código Civil), o que não é o caso das uniões homoafetivas. Percebe-se, assim, o equívoco das premissas.

No REsp 773.136/RJ, a Ministra Nancy Andrighy relatou o posicionamento do STJ no REsp 148.897/MG e, posteriormente, afirmou que o acórdão do TJ/RJ que aplicou a analogia para reconhecer a união estável à união homoafetiva daquele caso (tendo invocado, para tanto, os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana) teria violado o art. 1º da Lei 9.278/1996 (que trata da união estável, mencionando a expressão "o homem e a mulher") ao conceder os efeitos jurídicos da união estável a situação jurídica supostamente "dessemelhante" (sic), razão pela qual deu provimento ao recurso para negar o regime jurídico da união estável à união homoafetiva. Contudo, a Ministra não se dignou a dizer porque ela considera a união homoafetiva uma situação jurídica supostamente "dessemelhante" à união heteroafetiva. Como mencionado, a isonomia exige que aquele que pretenda um tratamento diferenciado apresente uma fundamentação lógico-racional para justificar essa diferença de tratamento, ônus este não cumprido pela Ministra. O simples fato de termos duas pessoas do mesmo sexo em um caso e duas pessoas de sexos diversos em outro não justifica que se neguem os direitos da união estável àquela primeira situação, ante a ausência de motivação lógico-racional a isso justificar, donde cabível a interpretação extensiva ou a analogia para suprir dita lacuna. Assim, considerando que a Ministra não se dignou a explicitar uma motivação lógico-racional a justificar a discriminação jurídica perpetrada por sua decisão (ante os direitos negados à união homoafetiva em razão da negativa de aplicação do regime jurídico da união estável à hipótese), a referida decisão demonstrou-se inconstitucional e, portanto, inválida.

No REsp 648.763/RS, muito embora tenha o relator trazido a fundamentação do Tribunal de 2º grau no sentido de que "em face de lacuna normativa sobre o tema, dever-se-ia dispensar à situação, por analogia, o mesmo tratamento dado à união estável, vale dizer, a divisão igualitária do acervo adquirido durante a constância da sociedade, presumindo-se tê-lo sido amealhado com o esforço comum das partes", o Ministro César Asfor Rocha se limitou a citar os precedentes supra enfrentados [35], sem enfrentar o cerne da questão (cabimento ou não da analogia neste caso), o que não foi enfrentado, ao menos adequadamente, nos precedentes anteriores (diz-se "adequadamente" porque no REsp 773.136/RJ a Ministra Nancy Andrighy afastou a analogia ao afirmar que as situações seriam "dessemelhantes" mas não demonstrou em que elas seriam "dessemelhantes", donde inadequada a fundamentação). Assim, as mesmas críticas feitas àqueles arestos cabem a este, donde não se pode aceitar também a sua conclusão quanto ao tema (note-se, apenas, que neste caso houve uma divisão de 50% do patrimônio porque o companheiro homoafetivo provou ter contribuído com 50% do patrimônio, o que foi suficiente à "teoria das sociedades de fato", efetivamente aplicada).

Após estes julgados, apareceram outros que demonstraram posicionamento diverso.

Com efeito, no REsp 238.715/RS, o Ministro Humberto Gomes de Barros aduziu que é grande a celeuma em torno da regulamentação da união homoafetiva, pois nada em nosso ordenamento jurídico disciplina os direitos oriundos dessa relação tão corriqueira e notória nos dias atuais, e que, para casos tais, o art. 4º da LICC impõe ao juiz exercer a analogia quando da lacuna da lei, donde, por ser a relação homoafetiva análoga à união estável (embora dela diferente) em virtude do seu caráter estável, duradouro e afetivo, é cabível a aplicação da analogia para estender o regime jurídico da união estável às uniões homoafetivas.

O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito ressalvou que seguia o relator apenas por se tratar de caso de dependência econômica em planos de saúde, já que o Tribunal inferior desqualificou a aplicação do art. 226, §3º da CF/88 – posição esta aparentemente contraditória, já que o Ministro superou a letra fria da lei para aplicar a analogia no caso de dependência econômica para planos de saúde, mas deixou claro que não o faria para o caso da união estável. Penso que faltou ao Ministro explicitar o motivo dessa diferença de posturas (aplicação da analogia em um caso, mas não-aplicação dela em outro), que se afigura amplamente contraditória por se tratarem de casos idênticos (superação de lacuna na lei, que cita apenas a união heteroafetiva mas não a união homoafetiva, que são idênticas ou, no mínimo, análogas, o que justifica o posicionamento do Ministro relator).

Já o Ministro Castro Filho afirmou que o caso era de verificar a afronta aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana e, a seu ver, não poderia o STJ fazê-lo, por ser a interpretação da Constituição supostamente excluída da competência do STJ. Contudo, esse posicionamento (de parte da doutrina) é equivocado, já que em nosso sistema misto de controle de constitucionalidade todo e qualquer tribunal (donde, portanto, também o STJ) tem competência para analisar incidentalmente (no caso concreto) a constitucionalidade das leis – como diversos julgados do STJ já comprovaram (ao analisar a constitucionalidade de leis), donde é este tribunal competente para tanto.

No REsp 395.904/RS, que versou sobre caso previdenciário, manifestou-se o Ministro Hélio Quaglia Barbosa no sentido de que não merece prosperar a tese no sentido de suposta impossibilidade de concessão de pensão por morte a companheiro homossexual em razão da ausência de previsão legal, na medida em que a matéria versa exclusivamente sobre Direito Previdenciário e não sobre Direito de Família, donde não é apenas o art. 226, §3º da CF/88 que deve ser analisado, mas também o princípio da igualdade, que jamais pode estar dissociado do princípio da justiça, em seu sentido mais puro. Ademais, apontou o Ministro que não há igualdade jurídica no não-direito, donde, a negativa de direitos fundamentais, entre eles o de sobrevivência, mediante percebimento de benefícios previdenciários a pessoas que, se fossem de sexos diferentes, lograriam êxito em auferi-los, implica o surgimento de um não-direito, situação que fere a isonomia constitucional. Apontou, ainda, que o teor do art. 226, §3º da CF/88 conceituou a união estável sem, contudo, excluir a relação homoafetiva, assim como inexiste tal espécie de exclusão no campo do Direito Previdenciário, que não se identifica com o Direito de Família. Assim, reconheceu a existência de uma lacuna que deve ser preenchida mediante acesso a outras fontes do Direito, nos termos do art. 4º da LICC, incumbindo ao Judiciário, através dos princípios hermenêuticos, preencher as lacunas existentes na lei, adequando-as às necessidades sociais. Apontou que pretender, com esteio em regras estratificadas, alijar parte da sociedade – inserida nas relações homoafetivas, da tutela do Poder Judiciário, por falta de previsão legal expressa, constituirá ato discriminatório, inaceitável à luz do princípio insculpido no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Afirmou que, apesar do Direito não regular sentimentos, dispõe ele sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas interessando no Direito de Família, como o matrimônio civil e, hoje, a união estável, outras ficando a margem dele, lembrando que a própria mulher, por séculos a fio, era tratada pelo sistema jurídico como relativamente incapaz. Dessa forma, reconheceu como suficientemente preenchidas as exigências da Lei n. 8.213/91, comprovadas a qualidade de segurado do de cujus e a convivência afetiva e duradoura entre o segurado e o autor, donde, por analogia, negou provimento ao recurso.

Em voto-vista, o Ministro Paulo Medina iniciou seu voto apontando que o recorrente apontou violação ao conceito de companheiro(a) disposto pelo artigo 16, §3º da Lei 8.213/91 que, por sua vez, se reporta ao artigo 226, §3º da Constituição Federal. Ato contínuo, seguindo a lição de Luís Roberto Barroso, apontou que toda interpretação é produto de sua época, donde entendeu que não se trata o conceito de companheiro de um conceito jurídico hermético, que não possa se interpretar de maneira extensiva para melhor atender a uma realidade que não foge aos olhos (a realidade homoafetiva), apontando ainda para a necessidade das normas infraconstitucionais serem interpretadas tendo em vista a Constituição Federal como uma unidade, ao passo que não se pode negar que se está diante de uma tensão e contradição com a negativa do reconhecimento da pensão por morte ao companheiro homoafetivo. Mas aponta que, de um lado, a Lei 8.213/91 adotou como conceito de entidade familiar o modelo da união estável entre homem e mulher, sem, entretanto excluir expressamente a união homoafetiva e, de outro, que há uma realidade em que o segurado contribuiu uma vida toda para a Previdência Social e tinha como seu dependente um companheiro do mesmo sexo, constituindo assim, de acordo com as provas carreadas aos autos, uma verdadeira entidade familiar. Assim, destacou que o princípio da igualdade impõe igual tratamento, além de ressaltar que onde o legislador não determinou uma exclusão expressa, não cabe ao intérprete do Direito fazê-la, sob pena de se descumprir preceito fundamental da Constituição, que é a igualdade entre homens e mulheres. Assim, concluiu que a Lei 8.213/91, deve ser interpretada conforme a Constituição, empregando-se uma interpretação extensiva, onde há uma verdadeira lacuna pelo legislador, razão pela qual também negou provimento ao recurso do INSS.

Mas a grande viragem na jurisprudência do STJ pode se consagrar quando terminar o julgamento de outro recurso especial (pois, sem deixar de louvar os precisos argumentos dos REsps 238.715 e 395.904, eles enfrentaram casos de Direito Previdenciário, não propriamente de Direito de Família, como o que aqui se passa a relatar). Afinal, no REsp 820.475 destacou o Relator, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro [36], que os precedentes do STJ que classificam a união homoafetiva como mera"sociedade de fato" devem evoluir para alcançar novas possibilidades, tendo em vista que "Não há norma no ordenamento jurídico que regule o direto na relação homossexual, mas não é por isso que este caso ficará sem resposta" [37], tendo em vista que somente há impossibilidade jurídica do pedido quando há texto normativo que isto afirme expressamente [38]. Assim, concluiu no sentido de que inexiste dita proibição no que tange à união homoafetiva e, dado o caráter análogo desta em relação à união estável constitucionalmente consagrada, aplicou a analogia para estender à união homoafetiva em questão os benefícios da legislação da união estável.

Após este voto, os Ministros Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Neto não conheceram do recurso especial sob o fundamento de que a Constituição Federal (leia-se o artigo 226, §3º da CF/88) teria sido "bem clara" ao tratar do assunto quando se refere ao reconhecimento da união estável apenas entre homem e mulher como entidade familiar, mas que, por se tratar de questão constitucional, não seria o Superior Tribunal de Justiça competente para apreciá-la, mas apenas o Supremo Tribunal Federal (argumento este já superado neste artigo).

Por sua vez, o Ministro Massami Uyeda acompanhou o Relator, acrescentando ainda que os fatos da vida são dinâmicos e muitas vezes não previstos em lei, afirmando ainda que quando a lei for omissa o juiz pode decidir por analogia a regras já estabelecidas, donde reconheceu o cabimento da união estável homoafetiva, por analogia [39].

Em razão do falecimento do Ministro Hélio Quaglia Barbosa (presidente da seção, que apresentaria o voto de desempate), o julgamento deste recurso especial encontra-se suspenso até que tome posse o Ministro Luís Felipe Salomão, recentemente nomeado pelo Presidente da República para o lugar do falecido Ministro. Torço para que este Ministro vote pelo reconhecimento da união estável homoafetiva não apenas por ser defensor desta tese, mas especialmente porque isto poderá ensejar a interposição de recurso de embargos de divergência e, assim, obrigar o Órgão Pleno do STJ a manifestar-se sobre o tema, fazendo com que este Tribunal apresente sua posição definitiva a esse respeito. Muito embora seja efetivamente o Supremo Tribunal Federal quem dará a palavra final sobre a possibilidade jurídica da união estável homoafetiva, por ser a união estável oriunda de norma constitucional, assim como a tese pela possibilidade jurídica da mesma pauta-se nas cláusulas constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana (dentre outras), a definição do STJ sobre o tema não deixa de ser interessante e importante, na medida em que uma análise técnico-jurídica do tema tem que necessariamente analisar a questão sobre o prisma da analogia, que está expressamente prevista em legislação infraconstitucional (arts 4º da LICC e 126 do CPC) que são, inequivocamente, da competência do STJ para apreciação.

2.1.2. Posicionamentos Monocráticos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Na análise do RE 406.837/SP, o Ministro Eros Roberto Grau afirmou que a norma da união estável não abarcaria a união homoafetiva, mas deliberadamente deixou de apreciar o mérito de alegação de afronta à isonomia por tal posicionamento por não ter considerado a questão devidamente prequestionada. A impressão que fica é a de que o Ministro adiantou sua pré-compreensão a respeito do tema, mas, como não se justificou perante a isonomia (trazendo a motivação lógico-racional que afastaria o "conflito aparente" oriundo desta sua posição), não pode ser sua tese seguida.

No REsp Eleitoral 24.564, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes afirmou que "Em que pese o ordenamento jurídico brasileiro ainda não ter admitido a comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, acredito que esse relacionamento tenha reflexo na esfera eleitoral". Este caso realizou interpretação teleológica de dispositivo constitucional para reconhecer a inelegibilidade de companheiros homoafetivos a despeito do silêncio da literalidade do art. 14, §7º da CF/88. A doutrina tem apontado que, se são reconhecidas obrigações às uniões homoafetivas em razão de sua união, não se podem negar os direitos conferidos às uniões heteroafetivas também em razão de sua união, com o que concordo. Contudo, afigura-se contraditório fazer-se uma interpretação teleológica que supere a literalidade normativa para se reconhecer esta inelegibilidade e não se fazer a mesma interpretação teleológica para se reconhecer o status jurídico-familiar das uniões homoafetivas e, portanto, reconhecer-lhes a possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção conjunta. Devem-se reconhecer todos os efeitos familiares às uniões homoafetivas e não apenas as obrigações daí decorrentes, pois esta segunda hipótese implica na aplicação de dois pesos e duas medidas para o mesmo caso (de interpretação jurídica em hipótese de lacuna na legislação), o que é inadmissível.

Já na análise monocrática da ADIN 3.300, muito embora tenha extinto o processo por questão puramente formal (a ação foi movida contra o art. 1º da Lei 9.278/1996, que o Ministro considerou revogado pelo art. 1.723 do CC/02), o Ministro Celso de Mello entrou no mérito da discussão, prestigiando as lições de Maria Berenice Dias e outros doutrinadores, assim como de jurisprudência correlata, para considerar que a união estável homoafetiva é possível por força da analogia, ponderando, ainda, que a questão poderia ser ao Supremo Tribunal Federal através de ADPF.

O raciocínio do Ministro Celso de Mello foi preciso, sendo aqui aplaudido.

2.2. Sobre o Casamento Civil Homoafetivo.

A mesma justificação que faz com que seja reconhecida a união estável homoafetiva faz com que seja possível juridicamente o casamento civil homoafetivo: a interpretação extensiva ou a analogia.

Muito embora mesmo a doutrina que defende a união estável homoafetiva, em geral, continue acriticamente dizendo que o casamento civil homoafetivo seria "inexistente", essa postura não se afigura correta. Afinal, considerando que a ratio legis do regime jurídico do casamento civil é a proteção da família, que se forma, nas uniões amorosas, a partir do amor romântico que vise a uma comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradoura, então o casamento civil homoafetivo é possível por força da interpretação extensiva ou, no mínimo, pela analogia.

É de se lembrar que o casamento civil é, como o nome mesmo diz, civil, secular, não religioso. Casamento civil e casamento religioso não se confundem, são completamente distintos. O casamento civil é um direito, um regime jurídico aplicável a todos que não se enquadrem nas hipóteses dos taxativos impedimentos matrimoniais se os mesmos forem tidos como constitucionais (o que não ocorreria caso houvesse tal impedimento legal ao casamento civil homoafetivo, conforme supra exposto); já o casamento religioso é um dogma, algo sujeito à fé religiosa. Isso significa que não é porque o casamento religioso não seria possível a casais homoafetivos que o casamento civil também não o seria. Ditos casamentos não tem nenhuma ligação na atualidade. Aliás, o casamento puramente religioso, sem efeitos civis, é um nada jurídico. Não significa nada por si: é, apenas, uma prova de união estável (esta sim possuindo relevância jurídica autônoma). Atualmente não há absolutamente nada que justifique uma ligação entre casamento civil e casamento religioso. O fato daquele ter se originado deste não tem nenhuma importância, porque atualmente eles têm requisitos distintos: afinal, um é pautado pelo Direito Laico, Secular (casamento civil) e outro pelo Direito Canônico (casamento religioso). Como não há absolutamente nada na legislação pátria que proíba o casamento civil homoafetivo, mas mera lacuna na legislação suprível pela interpretação extensiva ou pela analogia, é de se reconhecer a possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo.

É inacreditável que praticamente ninguém na doutrina veja isso, limitando-se a maioria a repetir acriticamente a absurda "teoria da inexistência" do ato jurídico, que nada mais é do que uma tentativa de burlar a regra segundo a qual não há nulidade sem texto – pois o ato tachado de "inexistente" tem a si atribuída a mesma conseqüência do ato nulo, já que a doutrina afirma que se o ato tachado de inexistente, que existiu no mundo fático, vier a produzir efeitos jurídicos, deverá ser proferida uma sentença que expurgue ditos efeitos, de ofício inclusive (razão pela qual creio que ela é melhor denominada como "teoria da inexistência de atos que existiram no mundo fático"). Mais inacreditável ainda é a doutrina reconhecer que a teoria da inexistência foi criada para se proibir o casamento homoafetivo na época do Código Napoleônico, que consagrou a regra segundo a qual não há nulidade sem texto, e, mesmo assim, não reconhecer este caráter puramente fraudulento da mesma – isso porque as afirmações aqui formuladas são referendadas indiretamente pela própria doutrina, que curiosamente não tem o menor pudor em reconhecer que a "teoria da inexistência" de atos que existiram no mundo fático surgiu como forma de se contornar a teoria segundo a qual não há nulidade sem texto para se proibir o casamento civil homoafetivo [40]. Esse caráter fraudulento de dita teoria já depõe, por si, contra ela. Considero absolutamente inacreditável que a maioria dos juristas tenha adotado esta fraudulenta doutrina, que viola de morte o princípio da legalidade (segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei – art.. 5º, inc. II da CF/88 – lei esta que inexiste a justificar dita "teoria da inexistência"), assim como o princípio da separação dos poderes, ao permitir que o intérprete atue como legislador positivo para proibir e não-reconhecer direitos que a lei não proíbe ou implicitamente reconhece (lei aqui em sentido amplo: lei constitucional e infraconstitucional).

Ou seja, a teoria da inexistência é um absurdo jurídico, algo que a própria doutrina reconhece que foi criado com o intuito de não permitir que determinados atos não produzam efeitos jurídicos mesmo quando a lei não os declara nulos. Este propósito fraudulento já demonstra o quão descabida e inaceitável é esta pseudo-teoria, inacreditavelmente aceita pela maioria da doutrina.

Mas deve ser aplaudida uma luz no fim do túnel: o magistrado Roberto Lorea Arriada. Já em 2005 o mesmo proferiu sentença que, além de reconhecer a união estável homoafetiva, afirmou que o próprio casamento civil é possível de ser contraído por homossexuais, por força do princípio da igualdade. O autor é peremptório: "...à luz do artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal, conforme fundamentação supra, tenho que (não apenas a união estável, mas também) o casamento, nos moldes como atualmente regulado pelo legislador, é um instituto passível de ser acessado por todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual..." [41]. Em decisão mais recente, afirmou o magistrado com perfeição que "O casamento civil é um direito humano - não um privilégio heterossexual" [42].

Nesse sentido, cumpre citar as decisões proferidas pela Suprema Corte da África do Sul [43], pela Suprema Corte de Massachussets/EUA [44] e pela Suprema Corte de Ontário/CAN [45], que declararam a inconstitucionalidade do não-reconhecimento do casamento civil homoafetivo por afronta à isonomia e à dignidade da pessoa humana – basicamente ante a efetiva discriminação jurídica sofrida por homossexuais pelo não-reconhecimento de seu direito ao casamento civil (isonomia) e, ainda, ao fato de que dito não-reconhecimento implica em menosprezo às uniões homoafetivas, como se de segunda classe fossem, o que afronta a dignidade de homossexuais (dignidade humana), chegando-se a mencionar (corretamente) que a criação de uma união civil específica para homossexuais implicaria referendar a nefasta política do separados mas iguais (separate but equal) que tanto assolou a convivência entre negros e brancos mundo afora.

Vale citar, ainda, a posição de Roberto Lorea Arriada no sentido de que "Essa discussão adquire novos contornos quando a Lei nº 11.340, de 2006 [Lei Maria da Penha], traz uma nova definição do que seja a família, que passa a ser juridicamente compreendida como a ‘comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; independentemente de orientação sexual’ (art. 5º, inciso II, e parágrafo único)", donde afirma com precisão que "A nova definição legal da família brasileira se harmoniza com o conceito de casamento ‘entre cônjuges’ do art. 1.511 do Código Civil, não apenas deixando de fazer qualquer alusão à oposição de sexos, mas explicitando que a heterossexualidade não é condição para o casamento", razão pela qual "Derruba-se, enfim, a última barreira – meramente formal – para a democratização do acesso ao casamento no Brasil" [46].

Em suma, o casamento civil homoafetivo também é possível juridicamente por força dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, ante a ausência de motivação lógico-racional a justificar a concessão de menos direitos aos casais homoafetivos em relação aos direitos conferidos aos casais heteroafetivos (isonomia) e o arbitrário menosprezo das uniões homoafetivas em relação às heteroafetivas decorrente de tal postura (dignidade humana).

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Homoafetividade e família. Casamento civil, união estável e adoção por casais homoafetivos à luz da isonomia e da dignidade humana.: Uma resposta a Rafael D’Ávila Barros Pereira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1824, 29 jun. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11441. Acesso em: 23 dez. 2024.

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