Tema pouco discutido pela doutrina, a vistoria prévia realizada pelos licitantes no local de prestação de serviço ou execução de obras merece análise mais detida, haja vista poder ensejar impugnações ao edital e à futura contratação.
Prevista no artigo 30, III, da Lei nº 8666/93, a vistoria prévia das condições do local enquadra-se entre os requisitos exigidos para habilitação técnica dos licitantes. O referido inciso arrola como documento referente à qualificação técnica a "comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação". E, apesar de Marçal Justen Filho entender que esse inciso seria inútil, visto não se poder inferir que o conhecimento das peculiaridades do objeto autoriza alguma presunção acerca da qualificação técnica1, concordamos com Jessé Torres Pereira Júnior, quando aduz acerca da importância do dispositivo, demonstrando que este servirá ao propósito de vincular o licitante às condições locais para o cumprimento das obrigações contratuais, por mais adversas que possam revelar-se durante a execução, desde que corretamente indicadas. Continua o prestigiado autor, alegando que "sendo esta a hipótese, não se admitirá escusa para inexecução, fundada em alegadas dificuldades imprevistas no local em que se deva realizar a obra ou serviço"2. O TCU já teve oportunidade de refutar as afirmações de Marçal Justen Filho, no Processo nº TC-029.737/2007-4:
"Aqui não se considera inútil, também assim considerado por este Tribunal, o dispositivo que prevê a exigência de vistoria técnica. Não é incomum o fato de os interessados, após a adjudicação do objeto, pleitearem aditivos contratuais perante a Administração sob a alegação de desconhecimento de determinada peculiaridade ou condição da área na qual prestariam os serviços ou entregariam o objeto".
Nessa linha, retira-se que a grande preocupação dos administradores diz respeito ao fato de que, na ausência de vistoria prévia pelo licitante porventura vencedor da licitação, poderia este argumentar a falta de informações relevantes das condições do local para solicitar o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato ou a exigência de aditivos contratuais prejudiciais à Administração. A Comissão de Licitação do TJ/AP, em decisão de impugnação a edital, no Processo Administrativo nº 12.307/2005, bem exemplifica essa preocupação:
"O objetivo da vistoria é ter a Administração a certeza de que todos os licitantes conhecem os locais da execução dos serviços e, via de conseqüência, suas propostas de preços refletirem com exatidão os serviços a serem executados, evitando-se futuros pleitos de aditivos ao contrato".
Assim, nota-se claramente que a previsão de cláusulas editalícias exigindo a realização de vistoria prévia das condições do local de execução do objeto é muito relevante para a garantia dos interesses da Administração. No entanto, cumpre-nos indagar: seria essa exigência obrigatória aos administradores ou apenas uma faculdade?
Partindo de uma interpretação gramatical, encontramos dois fortes argumentos para entender que essa cláusula seria uma faculdade da Administração. Inicialmente, destacamos o verbo do caput do artigo 30 da Lei nº 8666/93, qual seja, limitar. O dicionário Houaiss da Língua Portuguesa ensina que entre os significados da palavra encontramos: determinar ou ser o limite; determinar o número, a quantidade de; determinar o limite que não se deve ultrapassar; restringir; dar-se por satisfeito; contentar-se; não ir além de; circunscrever-se. Assim, podemos entender que não é obrigatória a exigência de que os licitantes apresentem todos os documentos arrolados no artigo 30 supracitado, mas que podem os administradores escolher, limitados àquelas hipóteses descritas na lei, os que entenderem pertinentes. Some-se a isso o fato de que a oração "e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação", constante do inciso III do artigo 30, classifica-se como oração subordinada adverbial condicional, que é aquela que impõe uma condição para que o fato se realize. Não impõe a comprovação imediata da declaração de vistoria, mas a sua comprovação, desde que requisitada.
Portanto, a redação do inciso não condiz com obrigatoriedade, deixando à discricionariedade da Administração a escolha dos documentos de habilitação técnica que entender necessários, dentre aqueles arrolados no artigo. Esse é também o pensamento de Maria Luiza Machado Granziera, ao ensinar que "nessa comprovação, pode ser incluído o atestado de visita aos locais onde será realizado o objeto da licitação, se assim dispuser o edital"3.
Entrementes, outra indagação se faz presente: a vistoria técnica, quando requerida, seria um direito ou um dever do licitante? A jurisprudência dos tribunais de contas entendia em sua maioria não haver discricionariedade aos licitantes. Estes deveriam efetuar a visita técnica para não serem inabilitados do procedimento, como disposto pelo TCU no Processo nº TC-013.049/2005-0:
"No que concerne à vistoria prévia, forçoso destacar que tal exigência encontra amparo tanto na legislação (art. 30, inciso III, da Lei nº 8.666/1993) como na jurisprudência do TCU (v.g. Decisão nº 783/2000-Plenário)".
Entretanto, a jurisprudência evoluiu, temperando esse entendimento, e passou a defender que a exigência de vistoria prévia aos licitantes é dever, desde que nos limites da razoabilidade. A razoabilidade que, para José dos Santos Carvalho Filho, "é a qualidade do que é razoável, ou seja, aquilo que se situa dentro de limites aceitáveis", e que "tem que ser observado pela Administração à medida que sua conduta se apresente dentro dos padrões normais de aceitabilidade"4. O TCU, no Processo nº TC-001.842/2008-4 entendeu que:
"Com efeito, verifica-se que a comprovação indicada no item 1, acima, exigida tanto para a qualificação técnico-profissional (item 6.4.1.1 do edital, fl. 26), como para a capacitação técnico-operacional (item 6.4.1.2, fls. 27/28), além de conter outros serviços explicitados no item 4.2.2.7 da instrução, na mesma condição, representou, sim, restrição ao caráter competitivo do certame. Como visto, os serviços requeridos não possuem valor significativo relativamente ao objeto licitado e tampouco detêm relevância no contexto ora exposto, razão pela qual torna-se indevida a sua exigência para fins de comprovação de capacidade técnica.
De acordo com as inúmeras deliberações já adotadas a esse respeito (v.g. Acórdãos 697/2006 e 1.771/2007, ambos do Plenário), as exigências de qualificação técnica devem estar limitadas aos itens de maior relevância e em percentuais razoáveis, evitando, por conseguinte, a restrição indevida à competitividade do certame, nos termos do art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei n.º 8.666/1993, e ainda de acordo com o princípio de exigências mínimas para garantir a segurança para a Administração Pública, conforme o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, devendo ser indicadas no edital, com clareza e fundamentadamente, as parcelas de maior relevância e valor significativo".
Outrossim, relevante esclarecer que vem ganhando força corrente jurisprudencial que considera a vistoria prévia como um direito do licitante, baseada também na razoabilidade. Nesse sentido o Processo nº TC-006.059/2006-4 do TCU:
"LICITAÇÃO. EXIGÊNCIA DE VISTORIA NO LOCAL. MEDIDA CAUTELAR PARA SUSPENSÃO DE PREGÃO. CONCESSÃO.
– 1. Presentes a plausibilidade do direito invocado e a urgência, cabe a adoção de medida cautelar para sustar procedimento licitatório em curso.
- 2. Eventual direito dos licitantes não pode se transmudar em obrigação, em especial se dela decorrem ônus às interessadas e se existem meios alternativos que permitem obter o mesmo resultado, caso em que fica configurada a desnecessidade da exigência".
Assim se manifestou o Relator do Processo:
"as empresas que exercerem o direito de vistoria disporão de condições muito superiores para quantificação do valor do serviço, mas deve ficar à escolha da interessada decidir se prefere arcar com o ônus de tal operação ou assumir os riscos de uma avaliação menos acurada. O direito à opção é mais relevante no caso de empresas não localizadas em Brasília, para as quais os custos envolvidos em um vistoria in loco podem ser significativos em relação ao total do serviço. (...) Em todo caso, a empresa que decidir não realizar a vistoria e eventualmente, subestimar sua proposta estará incorrendo em risco típico do seu negócio, não podendo, futuramente, opô-lo contra a Administração para eximir-se de qualquer obrigação assumida ou para rever os termos do contrato que vier a firmar".
Ademais, exatamente por ser um direito é que poderia o licitante escolher entre não realizar a vistoria ou exigir que a Administração lhe permita a visita, para que possa absorver a maior quantidade de dados necessários para a elaboração de sua proposta, respeitando assim os princípios da isonomia e da competitividade. O TJ/SP, ao se manifestar acerca do tema no Processo n° 745 138 5/0-00, assim decidiu:
"Contudo, alega a apelante que depois de assinar o Termo de Permissão de Uso constatou que o número de vagas existentes na área reservada para estacionamento de veículos não correspondia ao número que constava no edital, quais sejam novecentas vagas. A apelante, como lhe foi facultado, realizou a visita técnica programada e pôde verificar a distribuição das vagas e o espaço disponível. Não impugnou o edital no momento oportuno, não sendo lícito contestar os critérios então fixados nesta fase, inexistindo, inclusive qualquer elemento nos autos que indique irregularidade no procedimento de licitação".
Comungamos com a terceira corrente jurisprudencial, que entende a vistoria técnica como um direito dos licitantes, visto que ao mesmo tempo em que transfere o ônus da escolha de realizar a vistoria prévia aos particulares, que não poderão posteriormente alegar desconhecimento das condições para a execução do serviço, continua a resguardar a Administração de possíveis inexecuções contratuais, desde que não deixe o administrador de requerer dos licitantes declaração de visita ao local do serviço objeto da licitação ou termo de compromisso assumindo a responsabilidade de eventual erro em sua proposta, decorrente da falta de visita ao local.
Devemos salientar que o administrador deve sempre ter em mente que os tribunais de contas ainda não são unânimes no entendimento quanto à natureza jurídica da vistoria prévia.
Questionamento também interessante diz respeito à qualificação do representante do licitante que será responsável pela vistoria. Há julgados que entendem que, a depender do objeto licitado, deve o representante pela vistoria ser profissional na área. Cabe salientar que esse entendimento pode configurar restrição ao caráter competitivo da licitação, e somente tem aplicação plena para a corrente que compreende a vistoria prévia como dever. A corrente que defende a tese da vistoria como dever mas a condiciona ao princípio da razoabilidade entende que há hipóteses em que se mostra razoável que a vistoria seja realizada por profissional técnico. Para a corrente que compreende a vistoria como um direito, a empresa licitante assumiria o risco de enviar funcionário não habilitado, o que poderia levar à elaboração de uma proposta técnica fora dos requisitos exigidos pelo edital. Nessa linha decidiu o TCU, no Processo nº TC-001.842/2008-4:
"evidencia-se que inexiste fundamento legal para se exigir, com vistas à habilitação da licitante, que tal visita seja realizada por um engenheiro responsável técnico da empresa participante (...) Ainda que a obra tenha um grau de complexidade suficiente para justificar a exigência de uma visita técnica, não pode a Administração Pública determinar quem estaria capacitado a realizar tal visita. Essa competência de escolha de quem realizaria a visita técnica cabe unicamente à empresa licitante".
Portanto, entendemos que das teorias esposadas pelo TCU, a que melhor realiza os princípios da Administração é a que entende a vistoria prévia como um direito dos licitantes em ter acesso ao local de execução do objeto.
Referência:
1 – JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11.ed. São Paulo: Dialética, 2005. p.338.
2 – PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei das Licitações e Contratações da Administração Pública. 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.345.
3 – GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos Administrativos: Gestão, Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2002. p.68.
4 – CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p.24.