VI – Considerações finais
Resta consignar, conquanto possa parecer desnecessário, que a questão ora analisada não o pode o ser ao largo dos princípios constitucionais que, não bastassem serem os alicerces da República e do Estado Democrático de Direito, consubstanciam os pilares da própria ordem econômica constitucional. E os princípios são o cerne do sistema, as artérias irrigadoras do organismo constitucional. Mais precisa, substancial e irretorquível é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello [24]:
"Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo."
"Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra."
Em consonância com a exegese de Luís Roberto Barroso [25], que reputa os princípios constitucionais como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica, eles são
"a síntese dos valores mais relevantes da ordem jurídica. A Constituição (...) é um sistema de normas jurídicas. Ela não é um simples agrupamento de regras que se justapõem ou que se superpõem. A idéia de sistema funda-se na harmonia de partes que convivem sem atritos. Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que ‘costuram’ suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos" (destaquei).
Com estas observações, não há como deixar de concluir, em homenagem à interpretação conforme [26] que permite salvar da pecha de inconstitucionalidade o art. 54 da lei antitruste, que:
a) a Constituição não condena, nem combate ou repudia o poder econômico que, como outros (político, sindical, militar etc.) constitui uma realidade; ela, no entanto, repele, expressamente, o abuso do poder econômico, impondo à lei sua repressão;
b) o CADE somente pode negar aprovação a negócio jurídico submetido a sua apreciação se esse negócio caracterizar exercício abusivo de poder econômico e visar a dominação de mercado, eliminação de concorrente ou aumento arbitrário de lucros; sua decisão configura ato administrativo vinculado aos princípios e fins constitucionais;
c) qualquer decisão denegatória do CADE fundada em razões de diversa natureza constitui ato administrativo inconstitucional por ofensa, além de outros, ao § 4° do art. 173 da Constituição;
d) se, no curso de processo administrativo de controle, o CADE constatar o vício do negócio jurídico e a finalidade vedada pela Constituição, deve ser assegurado aos participantes o devido processo legal, sob pena de inconstitucionalidade por afronta aos incisos LIV e LV do art. 5° da Constituição.
NOTAS
- RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil, 2ª ed., 1964, Max Limonad, vol. I, p. 175. Com relação ao Código de 2002, ver TEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil, 2003, Forense, vol. VIII, tomo II, p. 2 e seguintes.
- Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., 2007, Malheiros, p. 189/190.
- Curso de Direito Administrativo, 18ª ed., 2005, Malheiros, p. 407.
- Direito Administrativo, 15ª ed., 2003, Atlas, p.218/221.
- Direito Administrativo, 9ª ed., 2004, Saraiva, p.83.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, Atlas, 1991, p. 41.
- OLIVEIRA, Amanda Flávia de. O Direito da Concorrência e o Poder Judiciário, Forense, 2002, p. 79. Em nota de rodapé, a autora remete a trabalho de Hely Lopes Meirelles (Natureza jurídica do CADE na administração federal) que, na vigência da antiga lei antitruste (Lei 4.137/62), asseverou que "as decisões do CADE são atos vinculados, e não discricionários como podem parecer a uma primeira vista."
- Modalidades de intervenção do Estado na ordem econômica. Regime jurídico das sociedades de economia mista. Inocorrência de abuso de poder econômico. Parecer in Temas de Direito Constitucional, Renovar, 2002, 2ª ed., p. 424.
- Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 2005, p. 720.
- Curso de Direito Constituição Positivo, Malheiros, 21ª ed., 2002, p. 771.
- Comentários à Constituição do Brasil (em conjunto com Ives Gandra Martins), Saraiva, 1990, 7º vol., p. 93.
- Comentários..., 7º vol., p. 94.
- Direito Administrativo..., 33ª ed., p. 643.
- Curso..., 18ª ed., p. 738.
- O Consumidor no Direito da Concorrência, Renovar, 2005, p. 86/87.
- O Poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício, apud BARROSO, Luíz Roberto, Modalidades..., p. 425.
- MC 2000.01.00.000454-3/DF, Juíza Selene Maria de Almeida, 5ª Turma, DJ 09/04/202, p. 265, apud CARPENA, Heloisa. O Consumidor..., p. 86/87.
- O Consumidor..., p. 85.
- Comentários..., 7° vol., p. 39.
- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., 18ª ed., p. 744.
- Curso..., 18ª ed., p. 732.
- Curso..., 18ª ed., p. 735.
- Curso..., 18ª ed., p. 736.
- Curso..., 18ª ed., p. 882/883.
- Interpretação e Aplicação da Constituição, Saraiva, 1996, p. 142.
- A interpretação conforme ocorre "quando, entre interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição". È a lição de BARROSO, Luís Roberto. Interpretação..., p. 174.