4. A ponderação de valores na revista pessoal
4.1 Direito à intimidade X direito à propriedade
Conforme foi visto na jurisprudência colacionada no presente trabalho, percebe-se quando da análise do art.373-A, inciso VI, CLT, a colisão entre direitos fundamentais. O legislador no dispositivo em questão optou por preservar o direito fundamental à intimidade e o princípio da dignidade da pessoa humana em detrimento do direito à propriedade do empregador e da autonomia de vontade dos particulares.
Em primeiro lugar, cumpre salientar que tanto o direito à propriedade quanto o direito à intimidade, revelam direitos fundamentais negativos, individuais e integrantes da denominada primeira dimensão. No entanto, essa classificação somente nos será útil no item seguinte. Por ora, vamos simplesmente afirmar que ambos incidem nas relações privadas travadas entre empregador e empregado.
Partindo dessa premissa, nota-se que, mais uma vez, as técnicas ordinárias de solução do conflito aparente de normas (hierarquia, especialidade e cronologia) não resolvem a hipótese exposta. Com efeito, os dois princípios são originariamente constitucionais (mesma hierarquia e cronologia) e nenhum deles traduz especialidade em relação ao outro. Assim, resta-nos, somente, a ponderação de valores.
Segundo o Prof. Alexandre de Moraes,
[...] intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo das pessoas, suas relações familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc. [11]
Sobre o direito à vida privada (intimidade), o Prof. José Afonso da Silva ensina que
A tutela constitucional visa proteger as pessoas de dois atentados particulares: a) ao segredo da vida privada; e b) à liberdade da vida privada. O segredo da vida privada é condição de expansão da personalidade. Para tanto, é indispensável que a pessoa tenha ampla liberdade de realizar sua vida privada, sem perturbação de terceiros. [12]
Destarte, ao ser realizada uma revista pessoal no trabalhador, o empregador está violando (ou pode vir a violar) o seu segredo da vida privada. Para exemplificar, imaginemos um empregado homossexual que nutre um amor platônico com seu chefe de departamento. Sob o pretexto de proteger o patrimônio do empregador, o superior realiza uma revista na mochila daquele e descobre uma carta a ele endereçada que expõe todo o sentimento em voga. Por óbvio, não era esse o objetivo da procura, mas, diante dos fatos, a conseqüência fora inevitável. Em um outro caso hipotético, seria constrangedor para uma empregada solteira que se diz extremamente religiosa (a ponto de afirmar que casaria virgem) que se encontrasse preservativos em sua bolsa, induzindo que ela mantém vida sexual ativa, a despeito de seu discurso.
Por esses exemplos, percebe-se não ser possível a revista pessoal no trabalhador sem que seja devassada sua vida privada. Nesse ponto, não há qualquer divergência aparente. No entanto, fato é que muitos funcionários se aproveitam de sua posição para furtar mercadorias, em especial aquelas de fácil locomoção, gerando uma diminuição ilícita no patrimônio alheio, violando o direito fundamental à propriedade. Surge, então, a necessidade de ponderar os valores em questão.
Com efeito, entendemos que sempre que se for balancear determinados princípios, o resultado deve se aproximar ao máximo da concretização da dignidade da pessoa humana. Nossa posição é corroborada por diversos autores, dentre os quais destacamos o Prof. Daniel Sarmento, em sua obra específica sobre o tema [13].
Portanto, se partirmos dessa premissa, obviamente se concluirá pela prevalência incondicionada do direito à vida privada. Ademais, não bastasse essa afirmativa, vale ressaltar que a simples vedação à revista pessoal não significa uma violação ao direito de propriedade. Isso porque, em especial com o avanço tecnológico, o empregador goza de outros meios de evitar o desvio de mercadorias. É o que se extrai do seguinte trecho do voto Juiz Convocado Samuel Corrêa Leite:
É de todos sabido que o contrato de trabalho envolve um mínimo de fidúcia entre ambas as partes. Se ao empregador remanesce dúvida sobre a integridade moral do candidato ao emprego, então deve recusar a contratação. Não há como conciliar uma confiança relativa com o contrato de trabalho, variável conforme a natureza da atividade da empresa. Se esta a direciona para a manipulação de drogas e substâncias psicotrópicas, deve, naturalmente, tomar as precauções necessárias à segurança, como por exemplo a instalação de câmeras, que em nada ofendem a dignidade do trabalhador. Mas não pode a pretexto disso investir-se dos poderes de polícia e submeter seus empregados a situações de extremo constrangimento, com total desprezo do direito do cidadão à preservação de sua intimidade. [14]
Além de instalação de câmeras, podemos citar como métodos de prevenção de furtos a utilização de sensores eletrônicos de mercadorias nas portas do estabelecimento, investimento em técnicas avançadas de controle de estoque, contratação de um setor de recursos humanos para recrutamento e seleção de funcionários, dentre tantos outros.
Logo, o que se percebe é que a revista pessoal não é imprescindível na proteção do patrimônio do empregador, mas, se realizada, viola, por si só, o direito à vida privada do trabalhador. Portanto, não temos dúvidas em afirmar que, na ponderação entre os valores em jogo – propriedade e vida privada – sempre prevalecerá o segundo, motivo pelo qual entendemos ser incabível tal atividade em qualquer hipótese. Ademais, não se pode olvidar que essa técnica de solução de conflito aparente de normas deve ser guiada pelo princípio da dignidade da pessoa humana que, invariavelmente, levará à mesma conclusão supra exposta.
3.3.2 Direito à intimidade X Autonomia de vontade dos particulares
Inobstante o que foi dito acima, há ainda quem argumente que a revista pessoal seria possível se houvesse cláusula contratual expressa nesse sentido. Nesses casos, a autonomia de vontade, em conjunto com o direito de propriedade, se sobreporiam ao direito à vida privada. Não concordamos com essa corrente, pelos motivos a seguir esposados.
Conforme mencionado no item anterior, o direito fundamental à intimidade(vida privada) é individual, eminentemente negativo e integrante da primeira dimensão. Com efeito, incide de forma direta nas relações privadas, de acordo com a teoria da eficácia horizontal imediata [15], desde que seja realizada, uma ponderação de valores entre este e o princípio da autonomia de vontade, com base em certos parâmetros hermenêuticos. É o que se passa a fazer.
O primeiro critério a ser utilizado é quanto ao grau de assimetria entre as partes envolvidas. Quanto a isso, não resta dúvidas de que estamos defronte do nível máximo de disparidade. Isso porque, quando se trata de revista pessoal, é óbvio que o empregado que sofre o constrangimento é sempre aquele subalterno, que pode ser facilmente substituído, até mesmo, pois o "superior" será encarregado de realizá-la. Ora, historicamente, o trabalhador vem sendo oprimido pelo seu empregador. Ainda que atualmente o poder deste seja limitado por diversos institutos jurídicos, não se pode negar que a relação instaurada entre eles é evidentemente assimétrica. Isso é ainda mais catalisado na sociedade brasileira, que, sabidamente, tem uma das piores distribuições de renda do mundo.
Por outro lado, um outro parâmetro a ser examinado se refere à efetiva autonomia de vontade do trabalhador ao firmar seu contrato laboral. Nesse ponto, ainda que se admitisse, ad argumentandum, que o empregado manifestasse sua livre vontade no sentido de permitir que nele fosse realizada revista pessoal, há de se lembrar que essa cláusula ainda assim seria inválida, pois ela implicaria em violação ao princípio da vida privada e, conseqüentemente, da dignidade da pessoa humana, caracterizados por sua indisponibilidade.
Por fim, cumpre salientar um último critério, qual seja, a essencialidade da relação jurídica na vida do indivíduo ou, em outras palavras, a imprescindibilidade da relação de trabalho em questão para a sobrevivência digna do empregado. Aqui, mais uma vez, é fácil vislumbrar que, ainda mais em um país assolado pelo fantasma do desemprego como o Brasil, também a essencialidade encontra-se em seu nível máximo. É evidente que o contratado abdicaria de diversos direitos fundamentais, dos quais não lhe cabe dispor, para não ser demitido, com medo de, posteriormente, ver-se em dificuldades financeiras extremadas pela falta do salário.
Esses três parâmetros demonstram a necessidade de se supervalorizar o princípio da vida privada em face da autonomia de vontade, aplicando diretamente o referido direito fundamental previsto na Carta Magna para proteger os empregados da conduta inconstitucional dos empregadores de praticar revista pessoal. Diante disso, podemos afirmar que qualquer previsão contratual nesse sentido seria nula de pleno direito.
Contudo, no que se refere às normas que autorizam a revista pessoal oriundas de acordo ou convenção coletiva, essa argumentação é relativamente falha. Isso porque, nesses casos, é possível perceber que os três critérios (pequeno grau de assimetria, livre manifestação de vontade do sindicato e não-essencialidade da relação jurídica) passam a indicar que a autonomia privada deve prevalecer, por se tratar de concessão de direitos ao empregador decorrente da liberdade plena e isonômica de negociação, constitucionalmente atribuída aos sindicatos.
No entanto, inclusive nessas hipóteses, entendemos não ser possível a prática de revista pessoal, pois o sindicato estaria dispondo do direito fundamental dos trabalhadores a uma vida privada, bem como à dignidade, que não podem ser dispostos nem mesmo pelos próprios. Corroborando essa conclusão, vale transcrever a seguinte ementa:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. O fato de haver instrumento normativo prevendo a revista de empregados revela-se marginal diante do cerne da controvérsia, que reside em aferir o prejuízo à honra e dignidade do empregado nos procedimentos adotados para a realização da aludida revista. Consoante o que ficou registrado no acórdão regional, a revista realizada pela reclamada denuncia excessiva fiscalização, expondo o empregado à vexatória situação de ter de se despir perante funcionários da empresa, com comprometimento da dignidade e intimidade do indivíduo. É sabido ainda que a indenização por dano moral deve observar o critério estimativo, diferentemente daquela por dano material, cujo cálculo deve observar o critério aritmético. Na fixação da indenização do dano moral, deve o juiz se nortear por dois vetores: a reparação do dano causado e a prevenção da reincidência patronal. Vale dizer que, além de estimar o valor indenizatório, tendo em conta a situação econômica do ofensor, esse deve servir como inibidor de futuras ações lesivas à honra e boa fama dos empregados.
Recurso provido. [16] (grifo nosso)
Diante da fundamentação exposta, nos cumpre assinalar o acerto do Enunciado nº 15 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, devendo ser tomado como norte para a extração da norma do caso concreto nas relações trabalhistas sub judice( controle repressivo) e também como conduta a ser imposta aos empregadores pelo Ministério do Trabalho, para que não pratiquem essa exame vexatório no dia-a-dia com seus empregados(controle preventivo).
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional – 8ª Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2000
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais - 1ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000
_________. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo – 9ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1993