7. CONCLUSÃO
Inicialmente, cumpre frisar que o presente artigo não pretende ser um objeto de soluções ou respostas, mas, sim, ser um auxílio na investigação e compreensão dos atuais problemas jurídicos. A questão filosófica que se impõe aqui busca novos sentidos, de forma que os pré-juízos não permaneçam vagando pelo mundo e impedindo o avanço Democrático. Por isso a importância da Hermenêutica Filosófica que, após a viragem lingüística, passou a ser condição de possibilidade para superarmos velhos paradigmas e descobrirmos, na realidade, o verdadeiro sentido dos acontecimentos diários. Dessa forma, liberta-se do senso comum, inibidor de um Estado Democrático de Direito, para adentrar num mundo de sentidos, formado por pré-compreensões, compreensões, interpretações e aplicações, numa constante circular.
Com efeito, há muito tempo o ser humano vem sendo impregnado por conceitos impostos por sua própria sociedade que, por serem repetidos exaustivamente, acabam se tornando verdades absolutas. Tais postulados adquirem um caráter metafísico, pois são formados por signos prontos, numa linguagem pré-moldada que apenas contribui para a perpetuação de alguma realidade jurídica.
O maior problema disso tudo é que essa linguagem acaba sendo usada pelo Estado (criador e, de certa forma, aplicador do Direito) como forma de dar continuidade a sua ideologia política. Quer dizer, como criador do Direito ele fica adstrito aos instrumentos lógicos e às representações ideológicas, sociais e funcionais que propiciam as fantasias da verdade e da realidade e, como aplicador, ele induz, em caráter obrigacional, a aplicação de postulados já criados para solucionar os casos concretos. Dessa forma, fica fácil criar pré-noções que, teórica e praticamente, servem de instrumento para garantir a institucionalização da produção judicial a partir de um discurso jurídico dominante.
Tal prática reguladora é visível no Brasil, país onde permanece vigorando a idéia do Estado de Direito, oriundo da Revolução Francesa, pois, ainda, criam-se leis a partir dos conceitos absolutos advindos do período iluminista. Disso resulta a criação das entidades, de seres metafísicos que não podem ser alterados.
Ainda não houve uma mudança de paradigma nas práticas jurídicas, nosso Estado usa o Direito como instrumento de dominação (imposição) da sua linguagem. É bem dizer que, atualmente, os juristas brasileiros estão contaminados por um senso comum teórico onde a tarefa interpretativa é simplesmente colocar no "mercado jurídico" um discurso já produzido, sem origens sociais e sem vinculação histórica.
Deveras, não é isso o que prega nosso Estado Democrático de Direito. A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova forma estatal que preza pela emancipação e pela autonomia democrática das pessoas e das entidades. Ademais, a Constituição assumiu um caráter nitidamente social que precisa da atuação estatal para realizar as promessas da modernidade, até então não cumpridas no país.
O problema é que preso ao senso comum teórico o jurista não consegue de fato efetivar os direitos constitucionais, ou melhor, efetiva somente os direitos que o poder dominante quer que sejam efetivados. Eis o grande problema metafísico aqui combatido. O Estado como criador e aplicador do Direito regula todo o povo através do postulados normativos insuperáveis, de aplicação obrigatória pelo jurista, obstaculizando que o povo consiga, ainda que por meio do Poder Judiciário, a efetivação de direitos garantidos constitucionalmente. Ora, dentro da teoria de Kelsen, que foi usada na elaboração da Constituição de 88, temos que ter uma norma fundamental com eficácia formal e, também, material. Entretanto, percebe-se que a materialização dos direitos fica a mercê das idéias dos Governos, pois eles dão e retiram direitos na medida que querem, em flagrante desrespeito à Lei Maior.
Mas não é isso que nossa Constituição quer. Ela é de fato principiológica, contendo inúmeras normas que definem a ação imediata e a orientação a ser seguida pelo Estado em prol do bem-estar social coletivo e não da perpetuação de idéias governistas.
Por certo que essa ineficácia de direitos acarreta um crescimento de demandas judiciais, pois, onde as necessidades sociais não foram atendidas, a política do welfare state não aconteceu. Dessa forma, o povo não encontra outra alternativa que não ajuizar demandas, apenas pedindo que a Constituição seja materialmente efetivada. Por certo que, nos dias atuais, a relação dos direitos não permite mais um ordenamento absoluto, como nos Estados Liberal e Social, visto que existe relatividade nas suas manifestações, ou seja, eles acontecem todos os dias, sem dar tempo ao Legislativo positivar. Com efeito, é patente que o absolutismo legal não atende mais as necessidades humanas. É preciso ver o mundo com outros olhos, dando liberdade à linguagem para que a efetivação dos direitos constitucionais aconteça.
O jurista está esquecendo da separação do ser e do ente, o que ocasiona prejuízos à atividade interpretativa mediante a justificativa da extração do "melhor" sentido do ser. Ou seja, o método lógico, técnico, que estatiza o Direito e não o deixa acontecer, acredita que o melhor Direito surgirá da relação lógica da: premissa maior (lei) – premissa menor (caso concreto) – conclusão (sentença).
Pois bem, para combater as idéias paradigmáticas exaradas por um Estado que efetiva apenas os direitos que acha conveniente, podemos buscar as lições de Heidegger e Gadamer, quando elaboraram a chamada Hermenêutica Filosófica que conseguiu superar, através da linguagem, os paradigmas até então vigentes.
Rompendo com a hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey que sempre encontrava guarida em princípios e regras sólidas, permitindo um discurso convincente, Gadamer propôs uma hermenêutica que privilegia os acontecimentos diários, com a convicção que eles não se repetem. Cuida-se de uma hermenêutica de cunho lingüístico que observa, interpreta e aplica usando linguagem, numa relação circular, com os elementos: pré-compreensão, compreensão, interpretação e aplicação.
Não se trata de uma crítica ferrenha aos pré-juízos, a pré-compreensões, até porque é totalmente impossível desvencilhar-se delas como seres no mundo que somos. Porém, o que se quer é que o jurista entenda que as pré-compreensões são só o início de um processo interpretativo que pode culminar numa sentença. Aquela pré-compreensão que o jurista traz dos livros, da jurisprudência, do mundo, pode e deve ser usada, todavia, como início de um processo e não como fim. Aqui entra o círculo hermenêutico criado por Heidegger e aperfeiçoado por Gadamer, onde a pré-compreensão inicia o processo interpretativo, passando pela compreensão do caso concreto, indo à interpretação e aplicação (applicatio) do melhor sentido.
O hermeneuta do pós-constituição de 88 também busca na lei o subsídio mínimo para aplicar o Direito. De fato, vivemos num país Constitucional, com um texto principiológico e normativo que representa a síntese do pacto social. Contudo, o intérprete atual deve estar preocupado, também, com o que a sociedade deseja, como pode contribuir para o progresso social, sem ficar preso a ideologias. Isso pode levar, inclusive, a formação de novos direitos, até então não conhecidos pela sociedade, superando a visão romanista do direito privado, dando ênfase ao coletivo.
O jurista e o Poder Judiciário devem observar que sua prática deve estar voltada/guiada pela Constituição, pela lei fundamental, digna de um Estado Democrático de Direito. Todo esse processo de (re)adaptação do Direito pode ser feito pela hermenêutica onde podemos "dar" sentido a cada instante sem, contudo, "reproduzir" sentido.
A hermenêutica filosófica, portanto, proposta por Gadamer pode resolver o problema enfrentado pelo Direito e pelo operador jurídico brasileiro. Se na produção e na aplicação do Direito, o operador tiver consciência das questões postas por Gadamer poderá (re)adequar o Direito brasileiro de forma que os direitos e garantias constitucionais possam, de fato, serem efetivados.
Dessa forma, o acontecer constitucional será desvelado, superando o paradigma do sentido comum teórico dos juristas e efetivando todos os direitos constitucionais. Porém, para superar essa crise de adequação é preciso saber que de fato há uma crise jurídica. O operador jurídico pode quebrar o paradigma da regulação interpretativa. Para tanto, é fundamental um processo de re(construção) das condições de possibilidade para o amplo acesso à jurisdição constitucional, de modo que as ferramentas jurídicas sejam eficazes na efetivação os direitos constitucionais.
8. REFERÊNCIAS
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WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.
______. ______. Vol. II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.
Notas
- WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 13.
- WARAT, Luiz Alberto. Op. cit., p. 19.
- STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 95.
- WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. II. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 59.
- WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. II, p. 60.
- STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 43.
- BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações Constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 19.
- STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. p. 25.
- BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 365.
- Idem, ibidem, p. 366.
- STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência política e teoria geral do estado. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 91.
- KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3 ed. São Paulo: RT, 2003, p. 103.
- SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada – pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 62.
- GARAPON, Antonie. O guardador de promessas – justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 241.
- BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 69-71.
- ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Hermenêutica jurídica: as possibilidades atuais da teoria da argumentação. Porto Alegre: UNISINOS, 2002. Dissertação (Mestrado em Direito), Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2002.
- GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I – traços de uma hermenêutica filosófica. 7 ed. São Paulo: Vozes, 2005, p. 297.
- REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 279.
- Art. 4°, LICC: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
- ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Op. cit., p. 90.
- GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., pp. 328-329.
- STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise – Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. p. 178.
- GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 351.
- STEIN, Ernildo. Aproximações sobre Hermenêutica. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 66.
- ALSTON, Wiliam P. Filosofia da linguagem. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 160.
- Artigo 5°, inciso III, CFRB: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei."
- ARISTOTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2005.
- O Círculo de Viena foi um grupo de filósofos e cientistas, organizado informalmente em Viena, entre os anos de 1922 e finais de 1936, para discutir a filosofia idealista presente nas Universidades Alemãs da época. O seu sistema filosófico ficou conhecido como o "Positivismo lógico".
- GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 503.
- GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 504.
- ALLEGRETTI, Carlos Artidorio. Op. cit., p. 164.
- STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 66.
- GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p. 509.
- Idem, ibidem, p 511.
- STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. p. 197.
- STRECK, Lenio Luiz. Op. cit., p. 849.