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Hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para o acontecimento (Ereignen) constitucional

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06/10/2008 às 00:00
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Sumário:1 INTRODUÇÃO; 2 O SENTIDO (SENSO) COMUM TEÓRICO BRASILEIRO; 3 O ESTADO BRASILEIRO NO TEMPO; 4 AS DIRETRIZES PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 88; 5 HERMENÊUTICA JURÍDICA; 5.1 HERMENÊUTICA TRADICIONAL/CLÁSSICA; 5.2 HERMENÊUTICA CRÍTICA; 6 HERMENÊUTICA FILOSÓFICA; 6.1 A VIRAGEM LINGÜÍSTICA: INTERPRETAR É COMPREENDER; 6.2 O CÍRCULO HERMENÊUTICO; 6.3 A APPLICATIO GADAMERIANA; 6.4 O ACONTECIMENTO CONSTITUCIONAL (EXISTÊNCIA E FATICIDADE); 7 CONCLUSÃO; 8 REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende discutir a Hermenêutica Filosófica como condição de possibilidade para superar paradigmas jurídicos advindos de nossa cultura individualista, ainda, calcada na metafísica e na razão pura. Deveras, há muito tempo o operador jurídico vive atrelado a velhos paradigmas, o que ocasiona um atraso interpretativo que impede a compreensão das mudanças geradas pela Constituição Federal de 1988.

Não se trata de mera retórica, a ineficiência estatal é patente em nossa sociedade, seja na saúde, na educação, no trabalho, enfim, em todos os principais direitos consagrados na Carta Magna de 1988.

Tal ineficiência pode ser combatida, ou ao menos minimizada, pelo operador jurídico que, se abandonar velhas práticas, com o uso da Hermenêutica Filosófica, pode superar paradigmas do Estado Liberal e, de fato, adentrar no Estado Democrático de Direito.


2. O SENTIDO (SENSO) COMUM TEÓRICO

Chamamos de senso comum o conjunto de idéias compartilhadas por uma comunidade, de forma unânime e sem prévia ponderação. São pré-juízos imutáveis, repetidos irrefletidamente, sem fundamentação racional, que consolidam conhecimentos padronizados.

Pode-se dizer que são "conhecimentos ingênuos", caracterizados pela espontaneidade e vulgaridade; manifestados, muitas vezes, pelos ditos populares e crenças que permeiam o imaginário do ser humano. O senso comum é uma espécie de recipiente intelectual onde são postas as experiências (conjunto de conhecimentos adquiridos entre gerações, sem base crítica) do indivíduo e do grupo social.

O senso comum atua em diversas áreas das ciências humanas, influenciando as práticas, coisificando o mundo com representações provenientes de conhecimentos teológicos, científicos, políticos, morais, entre outros. Tais representações ensejam a criação de entidades com aceitabilidade obrigatória.

Seu leque alcança, dessarte, a prática jurídica. O senso comum, no Direito, atua como um paradigma, uma entidade acima de qualquer questionamento. O operador jurídico age engessado a um sentido já atribuído, símbolos pré-moldados que são aceitos como verdades absolutas.

Luiz Alberto Warat cunhou a expressão "sentido (senso) comum teórico" para explicar tal "fenômeno". Aduziu que o senso designa condições implícitas de criação e aplicação das verdades produzidas pelos operadores jurídicos. Os juristas, segundo Warat:

encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças, ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação [01].

O sentido (senso) comum teórico dos juristas tem perspectiva unilateral e onipotente de interpretação aos diferentes casos concretos. Isso enseja a "reprodução" de postulados, caracterizando-os como verdades absolutas, de aceitabilidade obrigatória.

Esses postulados adquirem um caráter metafísico formado por signos prontos, sem a adequada verificação da realidade. São emaranhados de textos, "entidades" intertextuais formadas por enunciações jurídicas.

Com isso, forma-se uma para-linguagem que contribui para perpetuar "alguma realidade jurídica". Tal linguagem vem sendo usada pelo Estado como forma de dar continuidade a sua ideologia. Como criador do Direito, o Estado fica adstrito aos instrumentos lógicos e as representações ideológicas, sociais e funcionais que propiciam as fantasias da verdade e da realidade. Formam-se pré-noções que, teórica e praticamente, servem de instrumento para garantir a institucionalização da produção judicial a partir de um discurso jurídico dominante.

O senso comum teórico "estatal" não pretende produzir/construir conhecimentos sobre a realidade social, quer, por outro lado, proporcionar a subsistência da idéia de segurança jurídica, fechando o espaço crítico de maneira que a "produção" fique sob a exclusividade do "técnico legislador" que é, na verdade, um operador ideológico.

A formação do senso comum teórico, então, deve-se à tentativa de institucionalizar a produção normativa e, conseqüentemente, seus efeitos na sociedade. Dessa forma, o Estado - como detentor do poder de criar normas/linguagens – amputa a capacidade interpretativa dos operadores jurídicos, impondo, mascaradamente, sua ideologia.

Ao instituir institutos jurídicos, o poder dominante se utiliza de um conjunto de crenças, fetiches e hábitos para "administrar" as comunidades, estatizando o mundo, sufocando as possibilidades interpretativas através de uma racionalidade positivista que atua conforme os mandamentos políticos-econômicos-governamentais.

O controle da produção dos discursos jurídicos, como salienta Warat [02]: "fica preso em cofres de sete chaves". São discursos imprecisos e enigmáticos que guardam uma enorme carga ideológica mascarada pela letra da lei.

A lei é usada como forma de dominação, uma ilusão de igualdade num Estado de Direito garantidor. É uma utopia perfeita expressada por um sistema de significações.

O Estado de Direito, caracterizado pela neutralidade axiológica de Hans Kelsen, condiciona o "eu", ficando preso ao mundo das crenças sociais. Fixa-se um sentido totalitário que nega o novo com uma verdadeira aversão às mudanças sociais.

Essas vozes morais, impregnadas na lei, manipulam e padronizam desejos. O discurso jurídico é o dono da perfeição, atua no psicológico coletivo, não como instrumento de transformação social, mas para favorecer identidades fragmentadas de um saber instituído. Escamoteia-se, dessa forma, o processo de compreensão, criando a idéia de segurança coletiva no imaginário humano.

Esse domínio psíquico-coletivo obstaculiza a criação de novos sentidos. O saber jurídico fica inerte e mecânico, os paradigmas se tornam insuperáveis e impedem uma "reação social".

O modelo positivista de Kelsen - somado à metafísica Aristotélica e aos ideais iluministas da "razão pura" - gerou uma dependência do Direito, condicionando o mundo jurídico a entidades pré-constituídas (presentes na lei) que são encaradas como verdades perfeitas, puras.

Baseando-se num raciocínio silogístico, estabelecendo como uma de suas premissas o senso comum teórico, a dogmática jurídica aparece como uma das formas de interpretação/aplicação mais usadas no Direito. Os juristas – adeptos a tal escola – acreditam num Direito estático que não pode sofrer qualquer mudança senão pelas mãos do legislador.

As regras metodológicas e os instrumentos lógicos da dogmática – comumente utilizados pelos legisladores - escondem um (in)consciente que constitui verdadeira servidão às ideologias do poder de Estado. As razões são substituídas pela ordem ideológica de crenças que preservam a política do Estado e, por conseqüência, do Direito.

Dessarte, o poder dominante utiliza-se da dogmática como um instrumento de aplicação do Direito, trabalhando tão-somente com normas instituídas que, na verdade, são entidades/discursos planejados para a continuação do domínio-coletivo (inconsciente).

Streck [03] chama esse discurso dogmático de "fetichização do discurso jurídico", explicando que, por meio de tal discurso, "a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (de produção) que a engendraram, como se a sua condição-de-lei fosse uma propriedade natural".

O processo interpretativo/hermenêutico fica, assim, adstrito à reprodução de postulados metafísicos, fetiches inquestionáveis advindos do poder dominante, sem investigações.

O discurso jurídico atual, dessa forma, representa uma falta de investigação acerca das entidades jurídicas existentes, ocasionada pela combinação: senso comum teórico e dogmática.

Nesse diapasão, a Ciência do Direito, apoiada na referência/binômio "lei e ordem", participa da criação normativa e do controle coercitivo, como forma de "organização social". Ela ajuda a deslocar os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os quase invisíveis aos olhos da sociedade.

Angariada na herança iluminista a ciência jurídica (saber jurídico) apregoa a racionalidade, o "ser" metafísico, como forma de garantir o poder e governar a produção de entidades jurídicas.

Tal ciência se comunica através de signos, com significados ilusórios gerados por um senso comum que ignora a realidade. A função de tais significados é tão-somente o "fazer crer" social, ou seja, produzir a linguagem "segura" do direito.

Essa linguagem, definida por Warat como linguagem oficial,

se integra com significados tranqüilizadores, representações que têm como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiência sócio-política. Idéias dispersas e efeitos fabuladores que contêm omissões intencionais sobre o saber jurídico, a lei e o poder [04].

Destarte, o Estado como detentor do poder de "dizer o Direito" é, conseqüentemente, o produtor da linguagem acima referida. Trata-se de uma produção mística, indutora de pensamento, apoiada no discurso de disciplina social e vigilância, censurando o imaginário das pessoas para formar/constituir uma cultura oficial.

Isso é produzir senso comum, ambientes subjetivos, modelados pela instituição social que amputa as possibilidades interpretativas de justiça.

O pensamento jurídico, consoante Warat [05], "omite manifestar-se sobre os modos em que a gramática de produção, circulação e recepção de seus discursos desvincula as verdades que constrói de sua realidade política", visto que a racionalidade do saber jurídico e, por óbvio, da lei impõem interesses obscuros e discretos de desejos e submissões. Nesse ponto se localiza a "razão" do Estado, pois com o saber jurídico e com a lei positiva ele impõe interesses e desejos coletivos (agora legalizados).

Produzir e reproduzir linguagem oficial (discurso) é o objetivo estatal para vigiar e disciplinar as condutas humanas. O Estado é um "ente", integrado por relação de poder e espaço político, que opera mistificando discursos, censurando e manipulando o imaginário coletivo. Tem-se, assim, uma relação intertextual totalitária que estatiza a cultura e normatiza os indivíduos, definindo em lei valores e sistemas hierárquicos.

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O resultado disso é a vinculação a uma metafísica, vigorante no pensamento dogmático do Direito, que leva ao predomínio do método, da terceirização do Direito, entificando o ser.

Streck, em duras críticas a esse sistema, afirma que:

os operadores do Direito (professor, advogado, juiz, promotor, estudante de direito) se conforma(ra)m com aquilo que é (e, portanto, estava) pré-dito acerca do Direito na sociedade brasileira. Não ocorreu, pois, uma insurreição contra essa fala falada, submergindo o jurista no mundo de uma tradição inautêntica, onde os pré-juízos (inautênticos) provoca(ra)m um (enorme) prejuízo [06].

Essa fala falada, referida por Streck, vincula todo o ordenamento jurídico a mandamentos pré-constituídos. Impede-se, dessa forma, que o aplicador do Direito interprete a norma de acordo com o caso concreto posto em análise.

No Brasil, ainda vigora a (antiga) idéia do Estado de Direito, fruto da Revolução Francesa, ocorrida no séc. XIX, onde a burguesia insurgiu-se contra uma nobreza opressora e ilimitada. Àquela época, sentiu-se a necessidade de legalizar as condutas estatais, criando leis a partir dos conceitos advindos do período iluminista, quer dizer, o racionalismo deveria ser visto como a mola propulsora da natureza humana. Disso resultou a criação das entidades, do "ser" metafísico, estudado até meados do séc. XX pela filosofia da consciência.

O modo de fazer o direito no Brasil ainda é fruto da referida revolução. Não houve uma mudança de paradigma nas práticas jurídicas, o que resulta sérias conseqüências na sociedade, eis que indefesa frente à regulação estatal. Dito de outra forma, o Estado (ajudado pelo operador jurídico que ainda não saiu do séc. XIX) usa o Direito como instrumento de dominação (imposição) da sua linguagem. As entidades intertextuais (pode-se chamar de linguagens), proferidas pelo Estado, são criadas/aplicadas de forma que mantenham a regulação dos indivíduos.

Percebe-se que o senso comum teórico encontra conforto no cenário jurídico brasileiro, pois ele se dissemina em forma de entidades dotadas de essências próprias. Sempre atuante, ele compensa as chamadas lacunas do direito como se houvesse espaços a serem preenchidos por algum objeto. Nesse ponto, verifica-se a facilidade de regulação encontrada no Brasil, pois o Estado cria suas linguagens de dominação (locais secretos), gera senso comum teórico (dotado de ideologia) e "preenche" os espaços encontrados na sociedade (processos judiciais).

O processo judicial é tratado como um objeto, um "ser" incompleto que necessita de paradigmas metafísicos para se completar. Tais paradigmas são gerados sob a influência do senso comum teórico dos operadores jurídicos, que, (ainda) calcados na ficção da interpretação a partir da vontade do legislador ou espírito do legislador, monopolizam interpretações, fazendo justiça "à distância".

Seus discursos - entenda-se súmulas, ementas, acórdãos - são formulados e aplicados sem o conhecimento do caso concreto, sem viver o dia-a-dia da comunidade, suas crenças e seus costumes. Formam-se, apenas, idéias de "fidelidade à lei".

Tal fidelidade fica adstrita a aplicar leis criadas sem compreensão, e tão-pouco pré-compreensão, da atualidade. Como bem questiona Paulo de Tarso Brandão:

se é preciso contextualizar os institutos para uma perfeita compreensão sobre as causa que determinaram a sua existência, também é preciso que se renove sempre o olhar crítico para sua operação cotidiana, especialmente quando a realidade das Sociedades contemporâneas muda cada vez mais rapidamente.

Toda e qualquer mutação na concepção ou na realidade do Estado determina, necessariamente, a modificação, transformação, criação ou até extinção de institutos jurídicos [07].

Não se concebe (ou não se quer conceber) que a modernidade jurídica é latente no país. O modelo liberal-individualista entrou em crise e uma (nova) teoria jurídica pública faz-se necessária.

Sob uma perspectiva liberal-individualista-normativa os operadores jurídicos atuam influenciados pelos ideais pós-revolução francesa de legalidade e de segurança jurídica. Angariado nisso, o poder dominante transforma a linguagem, criando linguagens populares, ao alcance de seus dominados, moldando as aspirações sociais com leis. Quer dizer, as necessidades sociais são aquelas que o Estado quer e não as realmente necessárias. Tal instrumento ideológico (linguagem popular) aparece sob diversas roupagens: leis, decretos, programas sociais, programas televisivos, entre outros. Ingressa-se, assim, num universo silencioso, do discurso/linguagem que sabe tudo, que diz tudo.

Ainda não houve, mesmo após o advento do Estado Democrático de Direito, a necessária compreensão acerca da função social, da necessária viragem hermenêutica para combater paradigmas dominantes.

Streck [08] salienta que "presos às velhas práticas, mergulhados em um habitus (sentido comum teórico), os juristas continuaram seu labor cotidiano como se nada acontecera." É bem dizer que os juristas estão contaminados por tal senso comum, onde a tarefa interpretativa é simplesmente colocar no "mercado jurídico" um discurso já produzido, sem origens sociais e sem vinculação histórica.


3. O ESTADO BRASILEIRO NO TEMPO

A evolução do Estado brasileiro, hoje conhecido como Democrático de Direito, deu-se paralelamente ao desenvolvimento dos demais Estados do mundo. Desde o seu descobrimento o Brasil vem tentando acompanhar/adotar as estruturas e formas de governo dos países mais desenvolvidos.

Com efeito, as dificuldades foram (e são) enormes, eis que, além de ser um país novo (507 anos apenas), o Brasil ainda vive atrelado a velhos paradigmas que o levam à dependência das nações ricas. Essa regulação se deve a diversos motivos, alguns, de índole constitucional, serão aqui tratados.

A primeira Constituição do Brasil, de 1824, foi elaborada por um o Conselho de Estado, composto de dez membros, que tinha a finalidade de criar um texto constitucional para o "novo" país. Tal projeto foi apresentado a Dom Pedro I em dezembro de 1823. Seria a primeira Constituição Política do Império do Brasil.

A partir da Constituição Imperial até o ano de 1889 o Estado brasileiro esteve sob a forma de governo imperial. Tal Constituição estabeleceu um Estado centralizado, com grandes poderes nas mãos do imperador. A tripartição de poderes proposta por Montesquieu não foi inteiramente observada, eis que, além dos três poderes citados pelo filósofo (Executivo, Legislativo e Judiciário), a Constituição criou o poder Moderador. Por esta Constituição, o chefe do poder Executivo era também titular do dito poder, responsável, principalmente, pela manutenção da independência e equilíbrio harmônico dos demais poderes.

A monarquia constitucional do império, de cunho oligárquico, mas ainda com raízes absolutistas, durou cerca de 65 anos, caracterizando-se numa ausência de descentralização governamental e desintegração política. Foi um período marcado por fortes lutas dos liberais contra a centralização do poder e sufocamento das autonomias regionais. Ocorreram diversas rebeliões regionais como a Sabinada, Balaiada, entre outras que tentaram, por diversas vezes, implantar um regime federalista, com descentralização de poderes.

Em 1889 as forças descentralizadoras alcançam seus objetivos, tomam o poder e implantam o Federalismo como princípio constitucional de estruturação do Estado e a Democracia como regime político. As influências, nesse período, deixam de ser européias e passam a ser americanas. O pseudoparlamentarismo, de influência inglesa, do poder Moderador e Executivo passou a ser presidencialista americano.

A Constituição de 1891, segunda do Brasil, possuía os ideais liberais, com sistema republicano, forma de governo presidencial, forma federativa de Estado e, o mais importante, uma suprema corte que regulava a constitucionalidade dos atos do poder. Como salienta Bonavides:

Entrava o Brasil, por conseguinte, numa época constitucional em que pela vez primeira as instituições básicas do poder se conciliavam com a tradição continental hispânica, sobretudo com o modelo daquelas federações que, a exemplo da Argentina e do México, se haviam embebido na inspiração tutelar do constitucionalismo norte-americano [09].

Refere, ainda, o mesmo autor que "a ruptura com o modelo autocrático do absolutismo monárquico inspirou estabilidade jurídica vinculada ao conceito individualista de liberdade" [10].

A doutrina do Estado mínimo/negativo durou cerca de 40 anos, caracterizando-se, mormente, por haver uma separação entre Estado e Sociedade Civil - mediada pelo Direito -, por um controle de constitucionalidade de leis e atos do poder e por um Estado com papel reduzido, assegurando liberdade de atuação dos indivíduos.

Ocorre que o individualismo exacerbado gerou crise social, pois os ricos exploravam os pobres e não havia um Estado que regulasse esse comportamento. Foi uma época difícil para as classes pobres. Os coronéis – denominação dada aos ricos que exerciam poder em cada Estado-membro – atuavam com leis próprias, baseado na coerção da força. Os coronéis elegiam governadores, deputados e senadores, corrompendo eleições para se manterem no poder de seus Estados.

Por volta de 1930 a desmoralização dessas oligarquias somadas a necessidade de um Estado atuante, visto que as classes sociais se distanciavam cada vez mais, um líder civil (Getúlio Vargas) sobe ao poder voltado à questão social, ao Estado positivo, atuante ou, para alguns, providência. Há uma forte intervenção nos Estados-membros, limitando o poder dos governadores e desarmando os antigos coronéis.

No ano de 1934, inspirado na Constituição Mexicana de 1917 e na de Weimar de 1919, Getúlio promulga a primeira Constituição Social do Brasil. Ocorre uma nova ordem social, com novos princípios e direitos fundamentais, definindo a participação popular mediante o voto. Trata-se de um Estado Providência inclinado a garantir direitos individuais e sociais, principalmente os relativos à questão trabalhista, pois houve forte transformação da sociedade agrária em industrial após a Revolução Industrial do século XIX.

O período constitucional de 1934 foi transitório, de muitas desavenças ideológicas e políticas, principalmente no campo trabalhista, com greves e paralisações em transportes, comunicações e bancos. Surge o Partido Comunista, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), cujo Presidente de Honra era Luis Carlos Prestes, que reivindicavam, cada vez mais, a reforma agrária, a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização das empresas estrangeiras, dentre outros itens de caráter comunista.

O avanço popular foi grande, houve diversas manifestações, algumas sangrentas, o que acabou levando Getúlio a revogar a Constituição e outorgar outra em 1937, instituindo o chamado "Estado Novo". Esta nova Constituição (Polaca), de cunho ditatorial, reforçou o poder central com todo o Executivo e Legislativo em suas mãos. O Brasil atravessaria, assim, dois grandes momentos: uma ditadura baseada na força, em que a fonte de poder provém dos militares e atos de um governo alheio ao povo.

O Estado Novo decaiu com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, ao lado dos aliados, pois o país começou a lutar contra um regime militar (ditatorial) quando o próprio Brasil possuía tal regime. Assim, o Estado perdeu legitimidade, entrou em crise e teve seu fim em 1945.

Terminada a II grande Guerra o Brasil se redemocratizou, promulgando a Constituição de 1946. Foi um período de comoção mundial com os horrores praticados pelos nazistas, vendo-se, assim, a necessidade de uma nova ordem social. Essa Constituição foi baseada nas de 1891 e 1934, com maior conteúdo humano, valorizando os direitos naturais, da dignidade da pessoa humana. As atribuições do Poder Executivo foram drasticamente reduzidas, restabelecendo o equilíbrio dos três Poderes.

O homem reconciliou-se com o Estado, esquecendo o abstencionismo liberal do século XIX e dando ênfase ao Estado Providência. Como referem Streck e Bolzan:

A adjetivação pelo social pretende a correção do individualismo liberal por intermédio de garantias coletivas. Corrige-se o liberalismo clássico pela reunião do capitalismo com a busca do bem-estar social, fórmula geradora do welfare state neocapitalista no pós-Segunda Guerra Mundial [11].

Nesse período, sucedem crises políticas e conflitos de poderes que culminaram com uma reação militar. O golpe de 1964 não resultou, por logo, na elaboração de mais uma Constituição, eis que continuou valendo a Constituição de 1946, com as novas emendas. Até que em 1967 uma nova Constituição é promulgada (em tese), pois outorgada (na prática), com centralização no Executivo, legislando através de Decretos-lei e baseada na política da segurança nacional. Tal segurança era uma referência contra os governos de esquerda que avançavam no mundo amparados na extinta União Soviética. Com o mesmo viés ditatorial, em 17 de outubro de 1969, foi outorgada, por três ministros militares, uma nova carta, sob a aparência de emenda constitucional. A Constituição de 1969 apresentou um retrocesso político, se formos compará-la com a de 1967, pois cassou a autonomia administrativa das capitais e outros municípios, impôs restrições ao Poder Legislativo, validou o regime dos decretos-leis e ampliou as restrições em matéria de garantias individuais e sociais.

Finalmente, em 27 de novembro de 1985, pela emenda constitucional n.° 26, inserida na Constituição de 1967, foi convocada a ANC (Assembléia Nacional Constituinte), com a finalidade de criar um novo texto constitucional que refletisse a nova realidade social brasileira. Cuida-se de uma legitimação para que o Poder Constituinte Originário – sendo inicial, ilimitado e autônomo – exerça suas funções e constitua uma nova ordem constitucional.

Com efeito, após os horrores da Segunda Guerra Mundial houve a necessidade de rever o conceito de soberania estatal. Para tanto, foram retomadas as lições de Hans Kelsen, no sentido de encontrar um conceito mais relativo, opondo-se aos absolutistas de plantão nos regimes militares.

Separa-se, inicialmente, a ideologia da norma jurídica, formando um ordenamento jurídico apto a realizar as necessidades sociais através da simples lógica de aplicação, sem expressar nenhum conteúdo político-ideológico do poder dominante. O Estado passa a ser uma entidade eminentemente jurídica, com o fito de produzir e aplicar o Direito.

Foi criado, dessa forma, um sistema com escalonamento de normas, de forma que a Constituição Federal seja a expressão da norma fundamental, sendo fundamento último da validade das demais normas jurídicas. Quer dizer, a validade das demais normas jurídicas deve ser apurada pelo critério da subsunção Constitucional.

Tal subsunção cria uma relação de dependência onde uma norma anterior à Constituição só será aceita no ordenamento jurídico se for com ela compatível, hipótese em que será recepcionada. Por outro lado, todas as normas criadas após a promulgação da Constituição têm que passar pelo critério da subsunção, ou seja, o Direito regula a sua própria criação. Deveras, na dinamicidade jurídica, podemos dizer que uma norma só é válida porque foi produzida em conformidade com outra norma. Esse é o espírito do escalonamento, a norma que determina a produção é alta, enquanto que a produzida é baixa, e isso é condição de validade primeira. No ponto mais alto da escala coloca-se a Constituição, cuja função principal, para Kelsen [12]: "consiste em regular os órgãos e o procedimento da produção jurídica geral, ou seja, da legislação".

Com essa visão, no dia 05 de outubro de 1988 foi promulgada a Constituição da Republica Federativa do Brasil, trazendo consigo um sonho gerado em meio a crises sociais e governamentais. Seus pontos cruciais foram: a instituição do regime Democrático, antes banido pelo regime militar, e a declaração dos princípios fundamentais, dentre os quais, o da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III, CF).

O novo estado político trouxe, em sua substância, matéria pertinente aos direitos fundamentais e a estrutura de governo. Incorporou mandamentos tradicionais do início do século XX (direitos sociais) sem deixar de lado as necessidades prementes como proteção ao meio ambiente, possibilidade de intervenção econômica, entre outros.

A Constituição de 1988 assumiu um caráter nitidamente social, não só declarando como garantindo a proteção dos direitos, através dos chamados remédios constitucionais.

Além de social, a Constituição de 1988 é também liberal, assegurando direitos de expressão e reunião, de inviolabilidade do lar e da vida privada dos indivíduos. Na política, o poder Legislativo foi então valorizado, tendo suas funções ampliadas, podendo, inclusive, controlar algumas ações do Executivo.

O regime constitucional instaurado pela CF/88, ou seja, do moderno Estado Constitucional de Direito, preserva os mandamentos constitucionais frente a qualquer produto legislativo. Institui, baseada na doutrina Kelseniana, a perspectiva de validade e vigência das leis infraconstitucionais frente à Lei Maior.

Essa idéia de supremacia e rigidez constitucional salienta significativamente o trabalho dos Poderes Legislativo e Judiciário, pois não basta mais o aspecto formal de uma norma, mas, sim, sua eficácia substancial, eficácia no caso concreto. Trata-se de uma mudança de paradigma, do tradicional juspositivismo para uma espécie de garantismo, quando a relação de vinculação entre forma (validade) e substância (eficácia) deve ser de cortesia e cumplicidade. A produção legislativa deve observar a condição de possibilidade antes de emitir normas e o Judiciário assume o papel de efetivador de tais normas.

José Adércio Leite Sampaio bem salienta o crescimento do papel judiciário no Estado atual, dizendo que:

A existência de uma judicatura atuante, sobretudo na forma de tribunais especializados, decorreu, para alguns, da necessidade de equilibrar os incrementos de funções dos outros dois poderes, Legislativo e Executivo, com o crescimento do papel do Estado e, sobretudo, do welfare state [13].

Esse crescimento do papel do Judiciário ocorre nos Estados onde as necessidades sociais não foram atendidas em nenhum momento, a política do welfare state não aconteceu. No Brasil é assim, as promessas da modernidade não aconteceram e a desigualdade social aumenta a cada dia. Antonie Garapon conclui brilhantemente sobre a participação do Juiz na sociedade atual: "A justiça é responsável por realizar materialmente (substancialmente) a igualdade preconizada na Constituição e disfarçar o equilíbrio entre as partes" [14]. Para esse autor, o Juiz atua como um "Guardador de Promessas", eis que tudo passa pelas suas mãos num Estado desregulado internamente e regulado externamente.

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Sobre o autor
Vicente Oberto Rodrigues

Analista Processsual do Ministério Público Federal. Pós-graduando em Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Vicente Oberto. Hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para o acontecimento (Ereignen) constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1923, 6 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11802. Acesso em: 19 abr. 2024.

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