Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

O duplo recebimento da denúncia previsto na Lei nº 11.719/2008 e a interrupção do prazo prescricional

Agenda 11/10/2008 às 00:00

A prescrição, segundo afirma Mir Puig, influi no desaparecimento da necessidade da pena ao obscurecer ou apagar a lembrança do delito e o sentimento de alerta produzido no dia de seu cometimento, bem como ao considerar castigo o tempo em que o suposto autor do fato passa escondendo-se da Justiça [01].

A prescrição corre a favor do réu e contra o Estado, pois é este quem perde o Direito de punir, extinguindo a punibilidade daquele, fazendo a sentença que a reconhece coisa julgada material. Para Brandão, a prescrição possui natureza mista, convergindo tanto para o Direito material quanto para o Direito processual, pois tanto desaparecem as razões que justificam a pena quanto constituem um impedimento processual [02].

A prescrição pode ser da pretensão punitiva e da pretensão executória. Ambas reconhecem legalmente a desnecessidade da pena em razão do transcurso de determinado tempo. A primeira ocorre depois do cometimento do fato delituoso até o seu julgamento definitivo. A segunda depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Esse decurso do tempo possui causas interruptivas, ou seja, fazem o prazo estancar e iniciar novamente, desprezando-se o tempo anterior. No Direito brasileiro essas estão discriminadas no art. 117, do Código Penal. A primeira delas é o recebimento da denúncia ou queixa prevista no item I, do citado artigo.

No regime anterior do Código de Processo Penal não havia nenhuma dúvida quanto ao momento do recebimento, porque a antiga redação do art. 394 dispunha que o juiz, ao receber a queixa ou a denúncia, designava dia e hora para o interrogatório, ordenando a citação do réu.

Tourinho Filho, ao comentar a respeito do recebimento da denúncia antes da edição da Lei 11.719/08, dizia que no despacho de recebimento da denúncia ou queixa, o juiz deveria analisar a peça acusatória sob o aspecto formal e sob o prisma da viabilidade do direito de ação de uma única vez, cumprindo-lhe investigar a existência de pressupostos processuais para o desenvolvimento regular da ação [03].

Porém, com as alterações trazidas pela Lei 11.719/2008, que modificaram o procedimento comum de competência do juiz singular, a dúvida começou a se estabelecer quanto ao momento processual dessa causa de interrupção, porque foram criadas duas oportunidades para o recebimento da denúncia ou da queixa, cindindo a análise do aspecto formal e da viabilidade da ação penal proposta.

A primeira estabelecida no art. 396 diz que nos procedimentos ordinários e sumários, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente [04], recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

A segunda, após o oferecimento da resposta do acusado e não sendo o caso de absolvição sumária [05] prevista no art. 397 do CPP, o Código de Processo Penal reformado estabelece no art. 399:

Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.

Existindo, então, dois momentos para o recebimento da denúncia, surge a dúvida a respeito de em qual deles ocorreria a interrupção do prazo prescricional previsto no art. 117, I, do CP, se na ocasião do art. 396 ou na do art. 399.

Parece-me que, para a solução do problema, deve-se partir de uma outra reforma realizada pela lei 11.719/08: a da citação do acusado. É que durante a vigência da antiga redação do art. 394, o acusado era citado para interrogatório e não para se defender. O acusado não era um sujeito processual, mas objeto de investigação.

A reforma produzida pela lei 11.719/08 deu nova redação ao art. 363 [06], dando à citação do processo penal o mesmo prestígio da realizada no processo civil, em relação ao estabelecimento da relação processual. A partir de então, o processo penal somente se formará quando realizada a citação do acusado [07].

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ora, não existindo processo penal antes da citação do acusado, aquele primeiro recebimento não possui carga decisória capaz de interromper a prescrição, considerando que há apenas o juízo sobre os aspectos formais da denúncia ou queixa, não tendo ainda o juiz se manifestado sobre a possibilidade jurídica do pedido e a concreta instauração da ação penal.

Não tenho dúvidas de que a reforma trazida pela Lei 11.719/08 deu ao acusado a dignidade que não possuía na vigência do Código de 1941. A partir dessa nova concepção, o denunciado exerce um direito prévio de defesa antes da instauração do processo penal.

Carnelutti dizia ser o processo penal um terrível mecanismo, imperfeito e imperfectível, que expõe um pobre homem a ser pintado a largos traços perante o juiz, inquirido, muitas vezes preso, despojado de sua família e de suas ocupações, degradado perante a opinião pública, para depois não se ver nenhuma culpa de quem, seja também sem culpa, tenha turbado e desconcertado sua vida [08].

Assim é que, a citação para o acusado apresentar resposta preliminar visa a evitar a instauração da ação penal graciosa, vingativa ou sem condições de prosperar, daí se concluir que, enquanto não formado o processo penal com a citação válida, não se pode falar em interrupção da prescrição, posto que ainda não existe processo.


REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995.

MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5ª ed. Barcelona, 1998, p. 781.

TOURINHO FILHO, Fernando da Cosa. Processo penal. V. 1. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.


Notas

  1. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5ª ed. Barcelona, 1998, p. 781.
  2. BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 396.
  3. TOURINHO FILHO, Fernando da Cosa. Processo penal. V. 1. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 546.
  4. As hipóteses de rejeição liminar da denúncia ou da queixa estão previstas no artigo 395, do CPP: a denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou  III - faltar justa causa para o exercício da ação penal. 
  5. A possibilidade de absolvição sumária do acusado foi, também, novidade trazida pela Lei 11.719/08, que deu ao art. 397 do Código de Processo Penal a seguinte redação:  Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente.
  6. Art. 363.  O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
  7. No processo penal a citação não possui os mesmos efeitos do processo civil. No processo civil a citação válida previne a jurisdição, induz litispendência, torna a coisa litigiosa, constitui o devedor em mora e interrompe a prescrição, conforme o art. 219, do CPC.
  8. CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995, p. 63.
Sobre o autor
Roberto Carvalho Veloso

Juiz Federal no Maranhão. Professor Adjunto da UFMA. Mestre e Doutor em Direito Penal pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VELOSO, Roberto Carvalho. O duplo recebimento da denúncia previsto na Lei nº 11.719/2008 e a interrupção do prazo prescricional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1928, 11 out. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11860. Acesso em: 24 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!