A prescrição, segundo afirma Mir Puig, influi no desaparecimento da necessidade da pena ao obscurecer ou apagar a lembrança do delito e o sentimento de alerta produzido no dia de seu cometimento, bem como ao considerar castigo o tempo em que o suposto autor do fato passa escondendo-se da Justiça [01].
A prescrição corre a favor do réu e contra o Estado, pois é este quem perde o Direito de punir, extinguindo a punibilidade daquele, fazendo a sentença que a reconhece coisa julgada material. Para Brandão, a prescrição possui natureza mista, convergindo tanto para o Direito material quanto para o Direito processual, pois tanto desaparecem as razões que justificam a pena quanto constituem um impedimento processual [02].
A prescrição pode ser da pretensão punitiva e da pretensão executória. Ambas reconhecem legalmente a desnecessidade da pena em razão do transcurso de determinado tempo. A primeira ocorre depois do cometimento do fato delituoso até o seu julgamento definitivo. A segunda depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Esse decurso do tempo possui causas interruptivas, ou seja, fazem o prazo estancar e iniciar novamente, desprezando-se o tempo anterior. No Direito brasileiro essas estão discriminadas no art. 117, do Código Penal. A primeira delas é o recebimento da denúncia ou queixa prevista no item I, do citado artigo.
No regime anterior do Código de Processo Penal não havia nenhuma dúvida quanto ao momento do recebimento, porque a antiga redação do art. 394 dispunha que o juiz, ao receber a queixa ou a denúncia, designava dia e hora para o interrogatório, ordenando a citação do réu.
Tourinho Filho, ao comentar a respeito do recebimento da denúncia antes da edição da Lei 11.719/08, dizia que no despacho de recebimento da denúncia ou queixa, o juiz deveria analisar a peça acusatória sob o aspecto formal e sob o prisma da viabilidade do direito de ação de uma única vez, cumprindo-lhe investigar a existência de pressupostos processuais para o desenvolvimento regular da ação [03].
Porém, com as alterações trazidas pela Lei 11.719/2008, que modificaram o procedimento comum de competência do juiz singular, a dúvida começou a se estabelecer quanto ao momento processual dessa causa de interrupção, porque foram criadas duas oportunidades para o recebimento da denúncia ou da queixa, cindindo a análise do aspecto formal e da viabilidade da ação penal proposta.
A primeira estabelecida no art. 396 diz que nos procedimentos ordinários e sumários, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente [04], recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
A segunda, após o oferecimento da resposta do acusado e não sendo o caso de absolvição sumária [05] prevista no art. 397 do CPP, o Código de Processo Penal reformado estabelece no art. 399:
Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.
Existindo, então, dois momentos para o recebimento da denúncia, surge a dúvida a respeito de em qual deles ocorreria a interrupção do prazo prescricional previsto no art. 117, I, do CP, se na ocasião do art. 396 ou na do art. 399.
Parece-me que, para a solução do problema, deve-se partir de uma outra reforma realizada pela lei 11.719/08: a da citação do acusado. É que durante a vigência da antiga redação do art. 394, o acusado era citado para interrogatório e não para se defender. O acusado não era um sujeito processual, mas objeto de investigação.
A reforma produzida pela lei 11.719/08 deu nova redação ao art. 363 [06], dando à citação do processo penal o mesmo prestígio da realizada no processo civil, em relação ao estabelecimento da relação processual. A partir de então, o processo penal somente se formará quando realizada a citação do acusado [07].
Ora, não existindo processo penal antes da citação do acusado, aquele primeiro recebimento não possui carga decisória capaz de interromper a prescrição, considerando que há apenas o juízo sobre os aspectos formais da denúncia ou queixa, não tendo ainda o juiz se manifestado sobre a possibilidade jurídica do pedido e a concreta instauração da ação penal.
Não tenho dúvidas de que a reforma trazida pela Lei 11.719/08 deu ao acusado a dignidade que não possuía na vigência do Código de 1941. A partir dessa nova concepção, o denunciado exerce um direito prévio de defesa antes da instauração do processo penal.
Carnelutti dizia ser o processo penal um terrível mecanismo, imperfeito e imperfectível, que expõe um pobre homem a ser pintado a largos traços perante o juiz, inquirido, muitas vezes preso, despojado de sua família e de suas ocupações, degradado perante a opinião pública, para depois não se ver nenhuma culpa de quem, seja também sem culpa, tenha turbado e desconcertado sua vida [08].
Assim é que, a citação para o acusado apresentar resposta preliminar visa a evitar a instauração da ação penal graciosa, vingativa ou sem condições de prosperar, daí se concluir que, enquanto não formado o processo penal com a citação válida, não se pode falar em interrupção da prescrição, posto que ainda não existe processo.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995.
MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5ª ed. Barcelona, 1998, p. 781.
TOURINHO FILHO, Fernando da Cosa. Processo penal. V. 1. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Notas
- MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 5ª ed. Barcelona, 1998, p. 781.
- BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 396.
- TOURINHO FILHO, Fernando da Cosa. Processo penal. V. 1. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 546.
- As hipóteses de rejeição liminar da denúncia ou da queixa estão previstas no artigo 395, do CPP: a denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal.
- A possibilidade de absolvição sumária do acusado foi, também, novidade trazida pela Lei 11.719/08, que deu ao art. 397 do Código de Processo Penal a seguinte redação: Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV - extinta a punibilidade do agente.
- Art. 363. O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).
- No processo penal a citação não possui os mesmos efeitos do processo civil. No processo civil a citação válida previne a jurisdição, induz litispendência, torna a coisa litigiosa, constitui o devedor em mora e interrompe a prescrição, conforme o art. 219, do CPC.
- CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Conan, 1995, p. 63.