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As jornadas superiores a dez horas previstas em acordos coletivos, convenções coletivas e sentenças normativas e a afronta à Constituição da República

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Agenda 22/12/2008 às 00:00

Deve a Justiça do Trabalho, nos feitos que versem sobre duração diária do trabalho superior a 10 horas, declarar a nulidade das cláusulas insertas em quaisquer instrumentos.

O inciso XIII do art. 7º da CR determina que a jornada de trabalho será de 8 horas, observada a duração semanal do trabalho de 44 horas. Não obstante, permite a compensação de jornadas, instituto através do qual o empregado pode trabalhar mais horas em determinado dia com a finalidade de trabalhar menos ou mesmo não trabalhar em outros dias em determinado período.

Sem discussões, tivemos como recepcionado pela CR o art. 59 da CLT, que trata da prorrogação (caput) e da compensação de horários (§2º). O dispositivo tem, hoje, a seguinte redação:

Art. 59. A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.

………………………………………………………………………

§2º. Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano,à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.

Pois bem. Verificamos que a legislação infraconstitucional trata do regime de compensação permitido pelo inciso XIII do art. 7º da CR, estipulando que não haverá acréscimo superior a duas horas por dia.

Como que alheias a essa regra, instituída por norma cogente, de ordem pública, indisponível pela vontade dos particulares, algumas entidades sindicais representativas de categorias profissionais celebram acordos coletivos e convenções coletivas que trazem permissivo para adoção de regimes de compensação em que a jornada de trabalho ultrapassa 10 horas (não abordaremos aqui a controvérsia existente entre aqueles que somente admitem a compensação através de normas coletivas, aqueles que admitem-na por acordo entre empregado e empregador e mesmo aqueles que, minoritariamente, entendem possível o acordo tácito de compensação).

Embora alguns juízes e tribunais estejam posicionando-se contrariamente à possibilidade da adoção do regime de compensação nesses moldes através de normas coletivas, é certo que grande parte do Poder Judiciário trabalhista entende pela validade das cláusulas insertas nessas normas, permitindo a estipulação de jornadas superiores a 10 horas, sob fundamento de reconhecimento da validade dos acordos coletivos e das convenções coletivas de trabalho, imposto pelo inciso XXVI do art. 7º da CR.

Data venia, tal entendimento não pode prevalecer.

Aqueles que assim pensam fazem interpretação isolada do inciso XXVI do art. 7º da CR, afastando-o da ordem constitucional vigente e do próprio caput do referido dispositivo, em flagrante equívoco e tanto mais grave quando se trata de interpretação de normas constitucionais. Afastam-se, ainda, dos princípios que informam o Direito do Trabalho.

Com efeito, não são desconhecidos os motivos que levaram o legislador a limitar a duração do trabalho e conferir às normas que tratam do tema o caráter de ordem pública, cogente, indisponíveis e irrenunciáveis. Apenas lembramos os aspectos biológicos (prevenção contra os efeitos psicofisiológicos oriundos da fadiga, provocados pela excessiva racionalização do trabalho), econômicos (redução da capacidade produtiva do trabalhador quando submetido a extensas jornadas de trabalho e aumento no número de acidentes do trabalho e do desemprego) e sociais (tornar possível ao trabalhador o maior convívio familiar e social, aprimoramento profissional etc.) a que se refere Arnaldo Süssekind em obra clássica. [01]

Mais ainda, como bem assentado pelo magistrado catarinense Oscar Krost, o principal objetivo da limitação da duração do trabalho tem inúmeros aspectos, relacionados à consideração dos trabalhadores como seres complexos e dotados de dignidade e tendo como fim a preservação de seu bem-estar físico e mental, assim como das relações interpessoais [02], o que nos permite concluir que as normas coletivas, embora celebradas com a presença das entidades sindicais que representam a categoria profissional, não possuem aptidão para afastar a incidência de regras com tais características. É dizer, a tanto não chega a autonomia privada coletiva, que, em tais casos, acabaria por impor ao trabalhador jornadas extenuantes e, por conseqüência, seu sacrifício como gente, ao de sua família e ao da própria sociedade.

E como exposto pelo magistrado de Santa Catarina, foi com base em tais premissas que o legislador constituinte editou os arts. 6º, 7º, XIII, e 196 da CR, não havendo como esquecer que as Convenções 148, 155 e 161 da OIT, que cuidam da proteção contra riscos profissionais, normas gerais de segurança, saúde e meio ambiente de trabalho e serviços ligados à saúde no trabalho, foram ratificadas pelo Brasil – Decretos 93.416/86, 1.254/94 e 127/91.

Seguindo, não podemos esquecer que o caráter tuitivo do Direito do Trabalho tem em mira a proteção da parte hipossuficiente da relação de emprego, qual seja, o empregado. Essa peculiaridade não foi esquecida pelo legislador constituinte, que, no caput do art. 7º da CR, determinou a direção a ser seguida pelo legislador infraconstitucional, pelos atores sociais, pelos operadores do Direito e pelos intérpretes das normas da Lei Maior, qual seja, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Permitir, pois, que estes trabalhem por mais de 10 horas por dia importa em retrocesso ao período em que estavam sujeitos ao cumprimento de jornadas absurdamente extensas, contrariando frontalmente o princípio basilar do Direito do Trabalho. Não é demais lembrar que a Convenção nº.1 da OIT, de 1919, trata da limitação da duração do trabalho, o que destaca a preocupação do então recém criado organismo com as jornadas extenuantes impostas aos trabalhadores da época (não esqueçamos o lema "8 horas de trabalho, 8 de repouso e 8 de educação" entoado por trabalhadores em greve em Chicago).

Abrimos aqui pequeno parêntese para enriquecer o estudo com os ensinamentos do magistrado carioca José Nascimento Araújo Netto, ao tratar de questões históricas atinentes às lutas da classe trabalhadora pela limitação da duração do trabalho. Suas palavras nos ajudarão a entender melhor a necessidade de combater o entendimento de parte do Judiciário trabalhista, que tem por válida a previsão de jornadas superiores a 10 horas:

"No mesmo sentido, o que significa a enxurrada de ‘difs.’ que julgamos todos os dias? São, obviamente, diferenças de horas extras: mas o que representam estas, ou qual a sua história?

A luta pela redução da jornada de trabalho ocupou, historicamente, o epicentro do movimento operário sindical nos últimos 150 anos: discorrer sobre ela implicaria em escrever volumes sobre o assunto. Já em 1848, por exemplo, os franceses – sempre eles – pegavam em armas contra a tirania e inseriam, entre outras conquistas maiores daquela Revolução, a da jornada de 10 horas; a reação viria forte, mais tarde, e o limite retornaria às brutais 12 horas de antes.

Em 1886, a história registra o massacre dos trabalhadores de Chicago.

Qual a origem do 1º de maio? A luta pela jornada de 8 horas, através de manifestação convocada pelas sessões inaugurais daquela que viria a ser a Segunda Internacional.

Nascia, então, uma data hoje oficialmente cultuada em mais de 100 países (só perdendo em referencia para o 25 de dezembro e o 1º de janeiro), que, no dizer de Hobsbawn, ‘teria sido estabelecida não pelo poder de governos ou de conquistadores, mas por um movimento totalmente não-oficial de homens e mulheres pobres’.

Estes são, em síntese rapidíssima, alguns episódios do nosso Direito do Trabalho, relatados de forma concisa, considerando-se o espaço.

A curiosidade não é, no entanto, apenas arqueológica. Já disse alguém que A LUTA DO HOMEM PELO PODER É A LUTA DA MEMÓRIA CONTRA O ESQUECIMENTO.

E é justamente neste momento de opressão e exclusão social que o NÃO-ESQUECIMENTO faz-se urgente.

É neste momento em que se fala com tanta facilidade na necessidade de desconstitucionalidade dos direitos sociais, na desregulamentação total do direito do trabalho e na flexibilização das normas trabalhistas que torna-se fundamental que detemos um olhar ao passado: será através deste olhar que melhor poderemos aprender o presente e preparamo-nos para o futuro, compreendendo esta longa história de lutas (por ‘difs.’ e‘trezenos’) que foi o movimento dos trabalhadores brasileiros (e do mundo) nos últimos 2000 anos, teremos a chance de prevenir o desastre: o neoliberalismo sem freios que ameaça lançar os trabalhadores ao desemprego, miséria e exclusão, fazendo ressurgir condições sub-humanas de trabalho do período da Revolução Industrial". [03]

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Encerrada essa inserção histórica, continuamos a crítica com os princípios que devem presidir a interpretação da Constituição.

Ensina Guilherme Peña de Moraes que "A interpretação constitucional é conceituada como atividade intelectual de revelação do sentido, alcance e conteúdo de determinada norma constitucional, por meio de regras e princípios de hermenêutica jurídica, a fim de fazê-la incidir sobre o conceito de um fato, de acordo com a capacidade expressiva do texto da Constituição". [04]

Sobre o tema enfatiza Luís Roberto Barroso que "não é verdadeira a crença de que as normas jurídicas em geral – e as normas constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo pré-existente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização" [05]. E arremata:

"A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de tal proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido" [06].

Esses autores destacam os princípios de interpretação constitucional: supremacia da Constituição; unidade da Constituição; interpretação conforme a Constituição; presunção de constitucionalidade; máxima efetividade e razoabilidade ou proporcionalidade, de imediato ressaltando Luís Roberto Barroso que as normas constitucionais possuem superioridade jurídica, consistente em sua superioridade relativamente as demais normas que compõem o ordenamento jurídico, servindo-lhes de parâmetro de validade e de paradigma através do qual se afere a compatibilidade de uma norma com o sistema em sua unidade.

Destes, interessam-nos mais de perto os princípios da supremacia da Constituição, da unidade da Constituição, da máxima efetividade e da proporcionalidade ou da razoabilidade.

Conforme o princípio da supremacia da Constituição denota-se que esta veicula normas jurídicas de máxima hierarquia no sistema do Direito Positivo, figurando como fundamento de validade de todo o ordenamento normativo.

Para Luís Roberto Barroso, "As leis e atos normativos em geral não poderão existir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional. A Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas como também delimita o conteúdo que possam ter" [07].

Pelo princípio da unidade tem-se que a Constituição atribui caráter sistemático ao ordenamento jurídico, uma vez que as normas constitucionais, revestidas da natureza de princípios ou regras, com relação de fundamentação a partir daquelas até estas, consistem em fundamento de validade comum de todas as normas jurídicas que integram a mesma ordem constitucional.

Luís Roberto Barroso ensina que:

"A ordem jurídica é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e harmonia. Em um sistema, suas diversas partes devem conviver sem confrontos inarredáveis. Para solucionar eventuais conflitos entre normas jurídicas inconstitucionais utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da hierarquia, da norma posterior e o da especialização. Na colisão de normas constitucionais, especialmente de princípios – mas também, eventualmente, entre princípios e regras e entre regras e regras – emprega-se a técnica da ponderação. Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. Conceitos como o de ponderação e concordância prática são instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição" [08].

Calha, aqui, trecho da sentença proferida pela 23ª Junta de Conciliação e Julgamento do Rio de Janeiro em 26/10/1990, no processo RT 1.327/89, citada pelo Desembargador José Nascimento Araújo Netto [09]:

"Ainda abordando tal tópico, trecho do artigo publicado por Arion Romita no supracitado Jornal da LTr, p. 35:

‘Não se controverte que o processo sistemático de interpretação da lei recomenda o exame em conjunto de todos os dispositivos do mesmo diploma legal, de modo a evitar a antinomia entre eles e de modo que, em atenção à conexidade orgânica, a verdade resulte do contexto e não de cada parte considerada isoladamente.

INCIVILE EST. NISI TOTA LEGE PERESPECTA, UMA ALIQUA PARTICULA ELUS PROPOSITA, INDICARE VEL RESPONDERE – é contra o Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei, em conjunto, só uma parte dela (Celso)’" [10].

O princípio da máxima efetividade impõe que à norma constitucional, sujeita à atividade hermenêutica, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda, sendo vedada interpretação que lhe diminua ou suprima a finalidade.

Outro não é o ensinamento de Canotilho:

"a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê" [11].

O princípio da proporcionalidade, associado ao sistema jurídico alemão, ou da razoabilidade, que remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, pode "funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema", tal como nos apresenta Luís Roberto Barroso, que complementa:

"O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo justiça no caso concreto" [12].

Tecidas tais considerações, sabemos que o inciso XXVI do art. 7º da CR prevê o reconhecimento e o respeito aos acordos coletivos e às convenções coletivas de trabalho.

Considerando o acima exposto, temos que o dispositivo deve ser interpretado em harmonia com a diretriz que emana do caput. Vale dizer, as condições de trabalho previstas em acordos coletivos e convenções coletivas devem visar a melhoria das condições sociais dos trabalhadores.

E não se trata apenas de harmonizar o disposto no inciso XXVI do art. 7º da CR ao caput desse dispositivo, mas também com o constante dos incisos III e IV do art. 1º; dos incisos I, III e IV, início, do art. 3º; do caput e dos incisos I, II, III e XXIII do art. 5º; do inciso XXII do próprio art. 7º; do caput e inciso VIII do art. 170; do art. 196; do caput do art. 226; do caput do art. 227 e do art. 229, todos da CR e com a seguinte redação:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem, como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

VIII – busca do pleno emprego;

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Da leitura dos supratranscritos dispositivos constitucionais podemos inferir que jornadas demasiadamente longas, superiores a 10 horas, impostas aos trabalhadores:

- configuram evidente desrespeito à sua dignidade, não havendo como se falar em construir uma sociedade justa e solidária em tais condições (arts. 1º, III; 3º, I; 170, caput);

- não servem ao propósito de promover o bem de todos, impedindo a busca pelo pleno emprego e, conseqüentemente, a erradicação da pobreza (arts. 3º, III e IV, início; 170, VIII);

- colocam em risco a segurança dos trabalhadores, tolhendo, na prática, o direito à vida, ambos garantidos no caput do art. 5º da CR, além de submeter-lhes a tratamento desumano, o que é vedado pelo inciso III do mesmo artigo, e aumentar os riscos inerentes ai trabalho e de doença e outros agravos, descumprindo os comandos emergentes do inciso XXII do art. 7º e do art. 196 da CR;

- constitui afronta ao princípio da legalidade, acolhido pelo inciso II do art. 5º da CR, observado o limite previsto no art. 59 da CLT;

- desafia o princípio da igualdade (art. 5º, caput, I), uma vez que, se ao empregador é dado viver com dignidade e em boas condições e em segurança, por exemplo, o mesmo deve ser garantido aos empregados, o que não é possível com a prestação de serviços em jornadas demasiadamente extensas;

- caracteriza evidente abuso no exercício do direito de propriedade, uma vez que não verificada sua função social (art. 5º, XXIII), que, conforme Celso Ribeiro Bastos, é o "conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal" e tem como objetivo "coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica": ensina o jurista que, "À luz das concepções atuais não há por que fazer prevalecer o capricho e o egoísmo quando é perfeitamente possível compatibilizar a fruição individual da propriedade com o atingimento de fins sociais" [13].

Em outras palavras, conquanto seja garantida ao empregador a propriedade dos meios de produção que constituem seu empreendimento, é certo que no exercício desse direito não podem prevalecer "o capricho e o egoísmo" de seu titular que o tornem incompatível com outros direitos da mesma magnitude, previstos e garantidos na Constituição;

- por fim, importa em violação de preceitos ligados aos direitos humanos e à família, que deve receber especial proteção do Estado, eis que "reconhecida como base da sociedade" [14], inclusive impedindo que trabalhadores e trabalhadoras possam desincumbir-se de seus deveres enquanto maridos, mulheres, pais e mães (arts. 226, caput; 227, caput; e 229).

Em reforço ao que até aqui afirmamos, lembramos que o Pacto de São José da Costa Rica, integrado ao nosso ordenamento jurídico (e observado o §2º do art. 5º da CR), possui dispositivos que mantém estreita ligação com os supramencionados dispositivos constitucionais e, como estes, acabam desrespeitados pela imposição aos trabalhadores de jornadas prolongadas, superiores a 10 horas.

Portanto, o inciso XXVI do art. 7º da CR deve ser interpretado com respeito aos princípios acima mencionados. Em outras palavras, o operador do Direito, ao interpretar o dispositivo referido deve considerar os princípios da supremacia da Constituição, da unidade da Constituição, da máxima efetividade e da proporcionalidade ou da razoabilidade, além da natureza imperativa das normas que regulam a duração do trabalho e dos princípios que informam o Direito do Trabalho.

Isso nos permite concluir que os regimes de compensação previstos em acordos coletivos e convenções coletivas devem obedecer à limitação prevista no §2º do art.59 da CLT, bem como, e principalmente, proporcionar a melhoria das condições sociais dos trabalhadores, não lhes sendo possível restringir a eficácia de normas constitucionais.

Exigir do empregado a prestação de serviços em jornadas superiores a 10 horas viola a norma insculpida no §2º do art. 59 da CLT e, como bem registrado pelo Juízo da 64ª Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, "Tais jornadas têm efeitos nefastos para o trabalhador, tanto no que diz respeito à sua saúde quanto em relação à sua vida social e familiar. Ademais, tem efeito perverso no mercado de trabalho, encolhendo-o sobremaneira" [15], não podendo, pois, ser considerada apta a proporcionar melhorias nas condições sociais dos trabalhadores, além de influir negativamente no mercado de trabalho.

Voltando ao cerne da questão, merece registro decisão do Regional mineiro em ação civil pública intentada pelo Ministério Público do Trabalho. Vejamos trecho do acórdão da lavra do Desembargador Marcus Moura Ferreira, da Primeira Turma (processo 648-2006-028-03-00-9), com destaque para a crítica à previsão em normas coletivas de jornadas estupidamente elastecidas:

"De outra parte, não se pode dar validade às normas coletivas que permitem a ‘dobra de jornada’ dos empregados (§1º, item ‘b’, Cl. 13ª, f. 10), ou mesmo a previsão de horas extraordinárias além do legalmente previsto nos arts. 59 e 61 da CLT, visto que elas transacionam direitos trabalhistas indisponíveis. Assim, a possibilidade convencional de que o empregado trabalhe em dobra de jornada, perfazendo horas extras em número superior a 80% da jornada normal (ou seja: acima de 14h30m diárias), significa derrocar o limite inscrito no §2º do art. 61, de doze horas.

A este propósito, cumpre registrar que, embora a transação seja feita com o aval do sindicato da categoria, é de se observar que o trabalho em sobre jornada se torna aceitável – e até desejado pelo empregado -, em face da queda acentuada de sua remuneração nos últimos anos e das altas taxas de desemprego. Por outro lado, o trabalho em horas extras é fortemente atraente para o setor produtivo, visto que permite maior flexibilidade de ajuste da produção em função da flutuação da demanda. Ademais, a utilização permanente do sistema de horas extras permite a contratação de empregados com salários mais baixos, porque estes serão complementados pelo pagamento das horas extras.

Desta forma, as atuais práticas de flexibilização das normas trabalhistas – tão ardorosamente defendidas pela ré em seu recurso – costumam trazer em seu bojo uma nova forma de exploração do empregado e o conseqüente empobrecimento da população, acentuando as desigualdades e promovendo a exclusão social, pelo que é preciso desmistificar a falsa idéia de que é necessário flexibilizar ainda mais as relações trabalhistas para gerar ou manter empregos".

E finaliza o magistrado, reforçando o que dissemos quanto ao desrespeito às diretrizes constitucionais:

"Desta forma, as atuais práticas de flexibilização das normas trabalhistas – tão ardorosamente defendidas pela ré em seu recurso – costumam trazer em seu bojo uma nova forma de exploração do empregado e conseqüente empobrecimento da população, acentuando as desigualdades e promovendo a exclusão social, pelo que é preciso desmistificar a falsa idéia de que é necessário flexibilizar ainda mais as relações trabalhistas para gerar ou manter empregos".

Não é outro o entendimento da Desembargadora carioca Maria José Aguiar Teixeira Oliveira, para quem deve ser considerada inválida disposição contida em norma coletiva que imponha prejuízo ao trabalhador:

Ação

Anulatória. A invalidade da prevalência da negociação coletiva in pejus ao trabalhador decorre da conjugação do novo art. 618 da CLT com o art. 9º do mesmo diploma legal. Assim, qualquer cláusula convencional que suprimir os direitos mínimos previstos na Constituição da República ou na CLT incorrerá em nulidade. O princípio tutelar que norteia o Direito do Trabalho legitima o Judiciário Especial, inclusive, em face da fragilidade que, partindo dos trabalhadores, contamina a sua representação profissional em confronto com a avassaladora onda globalizante. Não pode, pois, o Judiciário Trabalhista chancelar avenças que derroguem direitos indisponíveis dos trabalhadores, posto que esses direitos têm espeque nos Direitos Humanos.

01179-2001-000-01-00-7, SEDIC, DORJ, P. III, S. II, Federal de 09-01-04. Relatora Juíza Maria José Aguiar Teixeira Oliveira. Revista do TRT/EMATRA – 1ª Região; nº. 43, volume 18, p. 181.

E como se posiciona o TST sobre o tema? Vejamos o pensamento do Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, exposto no acórdão do qual foi relator:

"O direito ao reconhecimento da validade das convenções e acordos coletivos de trabalho não é absoluto. Não pode, portanto, ser utilizado como mecanismo prejudicial àqueles que objetiva proteger" [16].

Nesse sentido, negando prevalência absoluta dos termos constantes de normas coletivas, pronunciou-se a Sexta Turma do TST no julgamento do RR-1591-2004-291-04-00-0, tendo destacado o Ministro Horácio de Senna Pires quanto ao surgimento do próprio Direito do Trabalho da jornada de trabalho: "Todo nosso ordenamento jurídico trabalhista surge dessa matéria que é fundamental: a luta pelas oito horas de serviço". Finalmente, a Ministra Rosa Maria Weber salientou que "há que se observar qual a norma que deve ser flexibilizada, porque qualquer dia, por norma coletiva, também não se terá que observar o salário mínimo" [17].

Merece destaque, também, o entendimento exposto pelo Ministro Lélio Bentes Corrêa, do TST, para quem o reconhecimento dos acordos coletivos e das convenções coletivas consagrado no inciso XXVI do art. 7º da CR não permite a conclusão de haver autorização para negociação de direitos indisponíveis dos trabalhadores, concernentes à proteção de sua saúde física e mental (RR-1.432-2000-001-03-00-6) [18].

No mesmo julgamento, embora tratando de hipótese assemelhada, manifestou-se o Ministro Luiz Phillipe Vieira de Mello Filho no sentido da importância do intervalo para alimentação e descanso, em especial para aquelas profissões com maiores índices de "doenças profissionais, hipertensão, problemas cardíacos, pelo estresse ocasionado pela atividade ...", concluindo: "Se não se preservar nem o intervalo, fica mais complicado ainda" [19].

Ratificando a tendência manifestada pela Corte, transcrevemos o seguinte aresto, da lavra do Ministro José Luciano de Castilho Pereira:

"HORAS EXTRAS – Jornada 12x36. Aplicação do art. 59, §2º, da CLT. O §2º do art. 59 da CLT, conquanto autorize a compensação de horário mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, veda a jornada superior a 10 horas. Essa particularidade já existia antes da atual Carta e por ela foi recepcionada, sucedendo-se legislação ordinária posterior no mesmo sentido. Logo, devido o adicional de hora extra incidente sobre as 11ª e 12ª horas trabalhadas no regime de 12x36. (...) (TST – RR 598.424/1999.1 – 2ª T. – DJU 24.10.2003)" [20].

Como podemos ver através da decisão supratranscrita, dos pronunciamentos dos Ministros da mais alta corte trabalhista do País e conforme o que escrevemos até o momento, o limite imposto pelo §2º do art. 59 da CLT deve ser respeitado, porquanto recepcionado pela nova ordem constitucional, sendo certo que a autonomia privada coletiva não tem aptidão para afastá-lo, não obstante a regra inscrita no inciso XXVI do art. 7º da CR.

Convém destacar, ainda, o entendimento consubstanciado na recente Orientação Jurisprudencial 372 da SDI-I do TST, que tem a seguinte redação:

MINUTOS QUE ANTECEDEM E SUCEDEM A JORNADA DE TRABALHO. LEI Nº 10.243, DE 27.06.2001. NORMA COLETIVA. FLEXIBILIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DJ de 03, 04 e 05.12.2008. A partir da vigência da Lei nº 10.243, de 27.06.2001, que acrescentou o § 1º ao art. 58 da CLT, não mais prevalece cláusula prevista em convenção ou acordo coletivo que elastece o limite de 5 minutos que antecedem e sucedem a jornada de trabalho para fins de apuração das horas extras.

Conforme a novíssima orientação, não é possível aos sindicatos que representam as categorias econômicas e profissionais permitir, em acordos coletivos e convenções coletivas, que o limite de 5 minutos que antecede e sucede a jornada de trabalho seja ultrapassado para efeito de apuração de horas extras.

Portanto, com maior razão podemos concluir que não pode ser admitida a extrapolação do limite de 10 horas previsto no §2º do art. 59 da CLT para fins de prorrogação e compensação de horário de trabalho.

Vale dizer, utilizando o raciocínio inverso do famoso adágio popular "quem pode o mais, pode o menos", quem não pode o menos, não pode o mais. Se não é permitido que através de negociação coletiva seja permitido ultrapassar o limite de 5 minutos, também não será possível a autorização para extrapolar 2 horas.

Corroborando o que foi dito até aqui, transcrevemos o ensinamento de Geraldo Bezerra de Menezes:

"A publicização do Direito do Trabalho, a nosso ver insuficiente para integrá-lo ao quadro geral do Direito Público, caracteriza-se pelas garantias ou direitos mínimos, imperativos, inderrogáveis, assegurados, em plano geral, aos trabalhadores. Esse mínimo legal não é de desprezar-se no exercício do poder normativo, pois o que lhe estiver acima é objeto da livre contratualidade, individual ou coletiva" [21].

Sob outro aspecto, não podemos esquecer que Manuel Alonso Olea classifica os direitos trabalhistas como direitos humanos fundamentais, citando entre seus exemplos a "limitação razoável das horas de trabalho" e "a segurança e higiene no trabalho" [22].

Esse entendimento é compartilhado por Noberto Bobbio, para quem os direitos sociais (também ditos de segunda geração) equiparam-se aos direitos fundamentais [23].

Tratando dos direitos fundamentais, Canotilho considera-os a "raiz antropológica" essencial da legitimidade da Constituição e do poder político, aduzindo: "esta dimensão de universalidade e de intersubjectividade reconduz-nos sempre a uma referência – os direitos do homem" [24].

Ainda sobre os direitos fundamentais ensina Gilmar Ferreira Mendes que a Constituição os consagrou com o que ele denomina "cláusula de imutabilidade" e "garantia de eternidade", porquanto veda qualquer emenda tendente a aboli-los e cuja inconstitucionalidade poderá ser aferida e declarada pelo Judiciário [25].

E vamos além.

Considerando ser o povo o titular do Poder Constituinte e que este somente pode ser tido por legítimo enquanto consentâneo com os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da justiça e da liberdade, trata-se hoje em dia da chamada "reserva de justiça" na Constituição.

Por esse motivo hoje a moderna teoria constitucional não mais aceita sem restrições a classificação do poder constituinte originário como autônomo, ilimitado e incondicionado, sem qualquer vínculo com princípios ou valores universalmente consagrados.

A razão para tanto é simples. Sendo a Constituição o instrumento pelo qual o poder estatal é organizado e limitado, forçoso reconhecer-se que a vontade do criador deverá pautar-se conforme modelos e padrões de conduta culturais, espirituais, éticos e sociais ínsitos à consciência jurídica geral da comunidade.

Portanto, o poder constituinte, mesmo originário, encontra limites em princípios de justiça tidos como supralegais, ressaltando Canotilho que os sistemas jurídicos internos devem zelar pelos princípios da autodeterminação, da independência e da observância dos direitos humanos [26].

Tudo quanto até aqui dito até o momento traduz a consagração da Constituição como sistema aberto de normas e princípios, conducente ao afastamento da visão unilateral das normas constitucionais desprovidas de princípios ou valores.

Aduzimos que há mesmo quem entenda que as chamadas cláusulas supraconstitucionais possuem aptidão e legitimidade para reformar, inclusive, as inicialmente intocáveis cláusulas pétreas. Para tanto, basta que estas não se encontrem em conformidade com a dignidade humana e com o conteúdo ético subjacente à ordem jurídica vigente. Assim o faz Oscar Vilhena Vieira, para quem "não é mais possível pensar a Constituição – e mais ainda as suas cláusulas constitucionais intangíveis – sem levar em conta suas qualidades intrínsecas, seu valor ético" [27].

Logo, se as normas infraconstitucionais elaboradas pelo Poder Legislativo e as decisões normativas proferidas pelo Poder Judiciário (vide o disposto no art. 5º da LICC e no art. 8º, caput, da CLT [28]) devem respeito aos ditames constitucionais, com maior razão será devido esse respeito por normas constantes de instrumentos pactuados por particulares, como o são os acordos coletivos e as convenções coletivas.

Sobre o autor
Paulo Cesar Rosso Firmo Júnior

advogado no Rio de Janeiro (RJ), formado pela Escola de Magistratura da Justiça do Trabalho no Estado do Rio de Janeiro, pós-graduando em Direito Processual Civil e Direito Processual do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIRMO JÚNIOR, Paulo Cesar Rosso. As jornadas superiores a dez horas previstas em acordos coletivos, convenções coletivas e sentenças normativas e a afronta à Constituição da República. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2000, 22 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12108. Acesso em: 23 dez. 2024.

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