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Execução da pena privativa de liberdade e ressocialização.

Utopia?

Agenda 31/12/2008 às 00:00

A execução da pena talvez represente o limite do desrespeito aos direitos fundamentais. Tal desrespeito, além de afrontar o Estado Democrático e Social de Direito, brutaliza o ser humano.

INTRODUÇÃO

Fazer valer a "vontade da constituição" (Wille zur Verfassung), ensina Konrad Hesse [1], passa por uma interpretação que privilegia a "ótima concretização da norma", e requer que esteja presente, na consciência geral, a necessidade de respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que "sua observância revela-se incômoda".

E todas as dificuldades por que passamos para fazer valer aquele conjunto primordial de postulados que constituem o coração das constituições, e com isso o cerne de todo o Direito, estende-se, sobremaneira, à execução da pena privativa de liberdade.

A execução da pena talvez represente o limite do desrespeito aos direitos fundamentais. Nos cárceres, as constituições não entram.

Tal desrespeito, além de afrontar a própria existência do Estado Democrático e Social de Direito, acaba por brutalizar o ser humano que, ao deixar a prisão, reincide na prática criminosa.


1. GENERALIDADES

Nietzsche escreveu que, por vezes, Justiça talvez não represente outra coisa senão uma modificação de nosso ressentimento, isto é, uma forma de vingança com nome diverso [2].

É provável que a sociedade se valha, ao segregar cada vez mais seus co-cidadãos, de dois mecanismos muito conhecidos em psicologia: cisão e projeção [3].

A parte ruim da sociedade é como que separada da parte boa, isto é, isolando-se esta parte doente, essa mesma sociedade almeja não ver suas próprias deficiências, que são projetadas, isto é, lançadas na parte mais débil:

Isolamento e projeção são dois mecanismos, poderosos e primitivos, pelos quais nosso ego se defende das coisas ruins que existem dentro de nós, mecanismos porém precários, que impedem nosso crescimento, já que esse crescimento tem como pré-requisito básico nosso autoconhecimento, nossa autenticidade para conosco mesmos e aceitação dos outros. Pois bem, a nossa sociedade ‘madura’ e ‘civilizada’, composta de pessoas adultas, igualmente lança mão desses mecanismos primitivos de cisão interna entre o ‘bem’e o ‘mal’ e de projeção do ‘mal’. Para tanto, ela sempre precisou criar grupos de excluídos, seja para que, dentro de si mesma, ela pudesse cindir, isolar tudo o que nela existe de ruim e primitivo, que a incomoda e que ela não quer enxergar em si, seja para que, nesses grupos, ela pudesse lançar todo o seu lado ruim e primitivo: os leprosos, os endomoniados, os ociosos e vagabundos, os miseráveis e mendigos, os loucos, os criminosos [4].

O professor Alvino Augusto de Sá [5], do alto de seus 30 anos militando no sistema penitenciário paulista, experiência que se soma a muitos anos de cátedra como professor doutor do departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Universidade da São Paulo (USP), acrescenta que "a sociedade tem muito medo de manter dentro dela, como um problema seu, os seus membros por ela tidos como criminosos, não só pelo perigo real que eles possam representar (o que até pode ser uma verdade da parte de um grupo deles), mas também pelo risco que ela corre de vir a se deparar com o crime como uma realidade inerente a ela, a todos os seus membros".

Alessandro Baratta, criminólogo italiano expoente da moderna criminologia crítica, já havia assinalado que "os muros do cárcere representam uma violenta barreira que separa a sociedade de uma parte de seus próprios problemas e conflitos" [6].


2. TEORIAS DA PENA

Não se pretende aqui um estudo detalhado sobre matéria em cuja profundidade reside a razão de ser do direito penal.

Contudo, com base no magistério de Claus Roxin [7], talvez o maior penalista do século XX, professor emérito da Universidade de Munique, esboçaremos um resumo das correntes que procuram explicar a função da pena, e com isso a função mesma do direito penal.

2.1. Teoria da retribuição

A primeira teoria é da retribuição, defendida por filósofos como Kant e Hegel, segundo a qual a função da pena residiria em compensar o mal causado pelo agente, isto é, a idéia central seria a de justiça, a de dar a cada um o que é seu.

Sua maior vantagem é a de limitar a pena à culpabilidade, restringindo a discricionariedade estatal na aplicação das sanções. De outra parte, peca por punir simplesmente por punir, aproximando-se da simples vingança, porque não leva em consideração a necessidade efetiva de aplicar-se a sanção, sobretudo naqueles casos em que nenhum benefício social adviria da condenação.

Mesmo naquelas situações em que a punição não serviria para salvaguardar nenhum bem jurídico, ou para pacificação social, a aplicação da pena, para os retribucionistas, far-se-ia igualmente necessária.

2.2. Teoria da prevenção especial

Para contornar um suposto vazio funcionalista na pura retribuição, Franz von Liszt, em fins do século XIX, desenvolveu a teoria da prevenção especial, pela qual a pena teria a função de impedir o agente, tomado individualmente, de praticar novos crimes.

Surge então a noção de ressocialização.

Sua grande vantagem em relação à teoria da retribuição está no fato de que se agrega uma função social à pena, afastando-se a punição quando desnecessária para a paz social.

Além disso, a pena sempre deve ser guiada pelos propósitos de ressocialização e, por conseguinte, pelo fim de evitar a reincidência.

Roxin aduziu que

A abordagem preventivo-especial não pode impedir que alguém seja encarcerado durante anos em razão de um fato irrelevante quando isso for considerado desejável para a reparação de seus danos de personalidade e para prevenção em relação a outro resvalo na criminalidade. Tal procedimento pode parecer, por vezes, conveniente ao combate à criminalidade. No entanto, não é útil à liberdade dos cidadãos e leva a um policiamento por parte do Estado na condução da vida particular. Em segundo lugar, a concepção preventivo-especial tende, por outro lado, a uma limitação inconveniente de punibilidade. Ocorre que, para ser coerente, ela também deveria deixar impune o assassino quando não existir nenhum perigo de reincidência [8].

2.3. Teoria da prevenção geral

A teoria da prevenção geral também foi definitivamente desenvolvida na Alemanha, sobretudo por Anselm von Feuerbach.

A pena não teria como finalidade compensar a culpa nem impedir a reincidência. Ela teria como escopo o de exortar a coletividade a se comportar conforme a ordem jurídica.

Feuerbach baseou-se na teoria da "coação psicológica", ou seja, a coletividade, ameaçada pela pena, sopesaria as razões favoráveis e contrárias para a prática de um crime, e quando os motivos dissuasórios fossem de maior monta, desistiria do intento ilícito.

A pena atuaria em dois pólos: negativamente, por meio da intimidação; positivamente, fortalecendo a consciência jurídica dos cidadãos para que respeitem a lei.

Como as demais, a teoria da prevenção geral tem vantagens e desvantagens. É inegável que a ameaça da pena deva servir para estimular os cidadãos a não atentarem contra os bens jurídicos de outras pessoas.

Pela teoria da prevenção geral poderia se justificar a punição de agentes que cometeram um determinado crime e jamais reincidiram ou que então os prognósticos para tanto sejam insignificantes, mas, mesmo assim, a punição seja importante para a consciência geral. Com efeito, criminosos nazistas que, anos depois da guerra tinham uma vida normal, não poderiam deixar de serem punidos, sob pena de levar por terra toda a higidez do direito penal.

Os pontos negativos da teoria da prevenção geral estão, primeiramente, no fato de que se baseia em uma premissa equivocada, qual seja, a de que o homem equaciona, racionalmente, em detrimento de sua vontade, todos os benefícios e malefícios do crime antes de cometê-lo. Em verdade, o criminoso não consulta o código penal antes de infringir a norma.

Ao lado disso, o argumento intimidatório pode levar a um aumento draconiano das penas, sobretudo porque, cada vez que se depara com o aumento da criminalidade, pode-se apelar para nova elevação das penas, elevação essa que, por sua vez, também não diminuirá a criminalidade, que poderá, por diversos fatores, crescer, ensejando um novo aumento de penas, configurando um verdadeiro círculo vicioso cuja conseqüência é uma absurda elevação nas taxas de encarceramento.

No Brasil, as taxas de encarceramento crescem em patamares jamais imaginados. Em dezembro de 2003, tínhamos 308.304 presos. Em dezembro de 2007, já eram 422.373. Um aumento que corresponde, em apenas 4 anos, a 37% [9].

2.3.1. O Mito das penas demasiado elevadas

Necessário abrir um parêntese para tratar de uma equação simplista que permeia a agenda de muitos políticos de ocasião, e por vezes é abraçada por operadores do direito pouco familiarizados com a criminologia ou com o próprio direito penal.

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Roxin [10] (assim como a quase-totalidade da doutrina brasileira e mundial [11]) ensina, há largo tempo, que a elevação de penas não é o melhor caminho para a redução da criminalidade:

A maioria dos agentes não refletem sobre as conseqüências do crime, acreditando que elas não ocorrerão. Contudo, a teoria da prevenção geral não perdeu sua relevância. Ela é atuante hoje com a divergência de que a proibição legal age de forma menos intimidadora do que a intensidade da persecução penal. Quanto maior a quantidade de crimes esclarecidos e julgados, mais eficiente será a prevenção da prática de outros crimes. O apelo por penas mais duras com as quais ainda hoje se tenta combater a criminalidade pelas vias da prevenção geral, é, portanto, pouco útil.

De fato, a criminologia, consubstanciada em um sem-número de trabalhos publicados todos os dias, ensina não haver soluções simplistas para problemas complexos.

O home office, no Reino Unido, divulgou estudo no qual aponta que para cada aumento de 15% no encarceramento há uma diminuição de apenas 1% na criminalidade [12].

Nesse caminho, a criminologia também ensina que outros fatores pesam muito mais no enfrentamento à delinqüência do que a pena a ser afinal aplicada: a) convicção, por parte de agente, de que será punido, isto é, de que não passará impune; b) convicção de que esta punição será aplicada com brevidade; c) gravidade e conteúdo real do castigo a que será submetido, em detrimento do valor nominal correspondente à pena; d) receio de sofrer medidas restritivas imediatas, como prisão em flagrante ou prisão preventiva; e) receio da incidência do controle social informal, como a família e parentes [13].

O problema central talvez esteja na diminuição da chamada "cifra negra" ou "cifra oculta" da criminalidade. Há estudos sérios estimando, por exemplo, que são punidos menos de 10% dos crimes praticados [14]. O agente acredita, sinceramente, que não será descoberto, e por conta disso pratica a infração. Mesmo se os criminosos, antes de sair à rua, consultassem o Código Penal para verificar o montante provável da pena a que estariam sujeitos, talvez não fosse suficiente para dissuadi-los no seu intento.

Para que a incidência do direito penal seja mais efetiva, há outras medidas interessantes: a) investimento em tecnologia e inteligência policial; b) combate à corrupção, sobretudo nas polícias; c) investimento em polícias comunitárias, que tenham o auxílio da própria comunidade no enfrentamento ao crime; d) investimento em programas de proteção de testemunhas.

Também outras medidas preventivas têm alcançado resultados surpreendentes: I) escola em tempo integral; II) escola comunitária, isto é, integração dos jovens e da família no seio da escola; III) proibição de venda de bebidas após determinado horário; IV) programas de primeiro emprego para jovens; V) áreas simples de esporte e lazer, que ocupem o tempo ocioso da juventude, principalmente nas periferias.

Nessa esteira, é possível que a maioria dos brasileiros não coloque o aumento da severidade das penas como melhor forma de combate à criminalidade. A Folha de São Paulo, em sua versão eletrônica, na edição de 16/04/2008 [15], trouxe a seguinte manchete: "Brasileiros preferem ações socais a penas severas para conter a violência, diz pesquisa". O portal da Rede Globo (g1.com.br) apresentou, no mesmo dia, manchete semelhante: "Pesquisa mostra que população quer mais ação social do que policial" [16].

As matérias se referem à pesquisa elaborada pela Federação Estadual do Comércio do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2008, na qual foram entrevistadas pessoas de 9 regiões metropolitanas do Brasil, em 70 cidades [17].

Nessa pesquisa, o item denominado "aprovar leis mais duras e penas mais longas" ficou em 4º lugar, com 26% dos entrevistados, isto é, apenas um quarto dos brasileiros. Três itens foram preferidos: "gerar mais empregos para a população" (37%), "colocar mais policiais nas ruas" (37%), "implementação de mais programas de primeiro emprego para jovens" (32%).

2.4. Teoria da união

Retornando às teorias da penas, chegamos então a uma síntese das teorias anteriores.

A teoria da união conseguiu limitar o montante das penas na medida em que pôs um freio aos objetivos preventivos: a cominação e aplicação da pena deve perseguir aos fins de prevenção especial e geral, desde que respeitado o limite máximo da reprovabilidade, da culpa, isto é, desde que observado o limite da retribuição.

Mais uma vez o magistério de Roxin [18]:

Existe hoje na Alemanha um consenso sobre o fato de que a medida da pena é limitada, em todo caso, pela culpa do fato, ou seja, uma concordância quanto à idéia de que ninguém pode ser punido mais severamente, por razões de prevenção especial ou geral, do que o correspondente ao peso de seu fato e de sua culpa pessoal. Assim, nas margens traçadas pela culpa individual, devem ser perseguidas as diversas finalidades da pena, ou seja, sobretudo a compensação da culpa, a ressocialização e a prevenção geral, ainda que com diferentes acentuações.


3. RESSOCIALIZAÇÃO

A reinserção do criminoso na sociedade, decorrência da teoria da prevenção especial, é catalogada, expressamente, em vários diplomas legais dos países democráticos, como um dos fins a serem perseguidos pelo direito penal.

No Brasil, a Lei de Execuções Penais tem a seguinte redação (Lei 7.210, de 11 de julho de 1984):

Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Necessário mencionar que parte da doutrina não acredita na recuperação do agente, apontando que o cárcere é um fator criminógeno, bastando verificar as elevadas taxas de reincidência, que no Brasil variam entre 70 e 80%.

Apontam uma incongruência que crêem insuperável: não há como preparar alguém para viver em sociedade privando-o do convívio desta mesma sociedade.

Acrescentam que o cárcere brutaliza, retira a identidade pessoal, põe fim à intimidade, à vida privada, ao convívio com as pessoas próximas. E mais, cria uma apatia psicológica, degradando a personalidade e o caráter, que devem se amoldar ao rígido e paralelo código de conduta das lideranças prisionais.

Mencionam ainda as torturas – tanto institucionalizadas quanto as provenientes dos próprios presos – a promiscuidade sexual, a insalubridade, incluindo o convívio com pessoas portadoras do vírus da AIDS, tubercolusas, hansênicas, sem contar aquelas que padecem de males psiquiátricos.

Também a assistência jurídica é insuficiente. Um dos fatores que mais geram ansiedade no preso é o fato de não saber quando deixará o cárcere ou quando poderá gozar dos benefícios legais. Não existem pessoas aptas a esclarecerem dúvidas simples do manejo das leis de execução.

Pertinente aqui outro parêntese. As duas maiores organizações criminosas conhecidas no Brasil, Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, nasceram, provavelmente, de um vácuo estatal. Supõe-se que o primeiro tenha surgido para evitar a tortura de presos. O segundo, para auxiliar as famílias dos encarcerados. Evidentemente, cooptaram muitos adeptos, que, ao deixarem as prisões, retribuem a proteção e os favores recebidos, associando-se definitivamente a uma carreira criminosa.

Não obstante todas essas mazelas, conhecidas por todos, e já lugar comum na literatura, não se poderá jamais deixar de acreditar na melhora do homem, no crescimento pessoal e na recuperação porque, se perdida a esperança, então estará aberto o caminho para o abandono ainda maior de todos os apenados e para a própria falência da raça humana tomada como corpo inexorável de progresso.

É obrigação de todos emprestarem aos demais seres humanos respeito, tolerância e dignidade. Este é um princípio inarredável da convivência humana fraterna.

Sem que nos desincumbamos desse compromisso mínimo não poderemos jamais exigir nada do apenado, exceto sua crescente incompreensão pelo fato de estar preso junto a outras pessoas, na sua maioria jovens do sexo masculino, pobres, ignorantes, de cor, enfim, cuidadosamente selecionados pelo direito penal, mesmo que a grande maioria dos demais criminosos, por não serem tão "vulneráveis" (expressão de Zaffaroni), alcançaram êxito em esquivar-se do controle formal estatal.

O professor René Ariel Dotti [19], outro inconformado com nosso sistema penitenciário, valeu-se de pertinente sentença de André Malraux, ex-ministro da cultura francês: "A esperança dos homens é a sua razão de viver e de morrer".


4. MEDIDAS QUE PODEM SER ÚTEIS

Muitos são os trabalhos que apontam deficiências no sistema penal brasileiro, o que acaba refletindo em uma execução da pena privativa de liberdade contraproducente, isto é, transmudada em catalisador da criminalidade.

Nesse derradeiro capítulo tentaremos sugerir algumas medidas para minimizar o problema. Se não forem originais, ao menos são sinceras.

4.1. Abordagem multidisciplinar

Os operadores do fenômeno prisional devem partir da premissa de que execução penal é sempre complexa, e se possibilidade de êxito há, certamente passa por uma abordagem multiangular.

Juízes, promotores, advogados, servidores das unidades, gestores do sistema (federais e estaduais), assistentes sociais, psicólogos, dentistas, devem se unir aos próprios presos e à comunidade para, juntos, pensarem soluções criativas para as demandas que se colocam, tanto as gerais quanto aquelas pertinentes a cada região do país.

A execução penal – e muito mais o direito penal – jamais serão eficazes se pautados em uma visão apenas técnico-jurídica, que restrinja a abordagem a um mero emaranhado de leis.

4.2. Entrelaçamento dos envolvidos

Todos os profissionais envolvidos na execução devem reunir-se periodicamente com representantes da sociedade e, sobretudo, com representantes dos próprios presidiários. Os representantes locais devem se reunir, também periodicamente, com os gestores estaduais, e estes com os federais.

Sem esse entrelaçamento perene as políticas públicas para enfrentar a questão certamente não alcançarão a eficiência necessária e não passarão de medidas ocasionais, pontuais, e sem obedecer a uma pauta plurianual.

No Brasil, pelo menos pelo que temos notícia, os juízes sequer são convidados a sentarem-se à mesa com representantes do Poder Executivo para, juntos, traçarem diretrizes que possam racionalizar a execução da pena.

O relacionamento, que deveria ser perene e produtivo, dá-se apenas em momentos de crise, no quais, no mais das vezes, um poder atribui ao outro o descaso na questão.

4.3. Divisão de responsabilidades

A execução racional da pena, a ressocialização, ou mesmo o tratamento digno dispensado ao preso são responsabilidades de todos, isto é, trata-se de uma responsabilidade social.

A sociedade deve ser chamada a assumir essa responsabilidade, porque será a maior beneficiada com a reinserção e, por conseguinte, com a diminuição das taxas de reincidência.

O crime é, em última análise, um conflito entre o condenado e a sociedade [20]. Não há como solucionar esse impasse básico sem a participação de ambos os lados.

Para que a ressocialização seja uma realidade, a sociedade deve aceitar aquele que errou (e pagou por isso), exercendo a tolerância.

Essa aceitação, todos sabemos, não é caminho fácil, mas certamente passa por uma desmistificação. Aquela imagem que as pessoas guardam dos condenados, de homens cruéis e degenerados, não corresponde à maioria. E mesmo se representasse, não se pode dizer, ao menos cientificamente, que exista alguém realmente irrecuperável.

4.4. Desmistificação

Para desfazer essa idéia que mencionamos no item anterior, é suficiente que se mostrem os presos como eles são.

Abrir os presídios para visitação é uma boa experiência, porque os visitantes percebem que os presos são pessoas como as outras: choram, riem, sentem culpa, medo, vergonha, são egoístas, são altruístas, são resignados, são irresignados, são educados, são rudes, são sinceros, são mentirosos.

Os presos também podem participar de debates, atividades artísticas em geral, cerimônias religiosas, torneios esportivos. Não para ser exibido, mas para ser o que é, uma pessoa.

A comunidade, ou parte dela, acaba, de uma forma ou de outra, solidarizando-se. Muitos passam a ajudar voluntariamente nos presídios. Outros, embora não ajudem diretamente, passam à coletividade uma visão mais realista sobre o encarcerado. Tudo isso deságua em uma diminuição de preconceitos. Por exemplo, as pessoas têm mais facilidade em empregar um egresso quando passaram por essas experiências de contato. Passam a se preocupar mais, passam a ter uma visão mais crítica sobre toda a problemática.

Desmistificar, portanto, é prática que dialoga com o compartilhamento de responsabilidades.

4.5. Formação acadêmica e cursos nas carreiras jurídicas

Mesmo o juiz, um dos personagens principais na execução da pena, por vezes desconhece a complexa realidade prisional na qual é chamado a judicar. Prende-se, com boa-fé, na dogmática.

A execução da pena, para os profissionais do Judiciário, do Ministério Público, e mesmo para os advogados, por vezes não passa de mais um silogismo normativo, axiologicamente asséptico.

A formação dos profissionais, seja na universidade, seja nos cursos internos nas carreiras, deve oferecer disciplinas, mesmo que voluntárias, que possam propiciar uma formação humanística mais ampla, pela qual o profissional conte com o instrumental para realizar análises holísticas, multidisciplinares.

Ensinar direito penal sem passar pela criminologia e pela política criminal é ensinar algo vazio. Como um médico não pode prescrever um determinado remédio sem saber exatamente por que e para que o faz, um profissional do direito penal não pode manipular a liberdade alheia sem ter noção ampla das conseqüências reais de seus atos.

4.6. Diferenciação legal

Os condenados por tráfico de drogas representam grande parte dos encarcerados. Em alguns locais, são a maioria, sobretudo entre as mulheres.

Nessa linha, os tipos penais da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, não fazem diferenciação substancial entre os grandes e médios traficantes e aquelas pessoas que servem de "mulas" ou "aviãozinhos".

Todos são crimes assemelhados a hediondos, com todas as sérias conseqüências que daí advêm: a pena é cumprida obrigatoriamente em regime inicial fechado, a progressão de regime se dá em prazo maior (2/5 para o primário e 3/5 para o reincidente), o livramento condicional obedece a prazos mais dilatados (2/3 ou mesmo a vedação para o reincidente específico), sem contar vários outros reveses, como a proibição de fiança e liberdade provisória, sursis, anistia e indulto. Há também outros prazos diferenciados, como o da prisão temporária, que pode chegar a 60 dias.

Melhor e mais justo que os crimes praticados por essa mão-de-obra barata recrutada pelos traficantes não fossem assemelhados a hediondos, ou seja, que tivessem tratamento legal semelhante à maioria dos outros crimes, tido por "comuns", como o furto, o roubo à mão armada ou mesmo o homicídio simples.

Com efeito, não existe motivo suficiente para que um condenado por homicídio simples ou por roubo com arma pesada a uma agência bancária possa começar a cumprir a pena em regime mais brando, ou mesmo goze de liberdade provisória, em detrimento do "mula", ao qual o juiz estará obrigado a determinar o regime fechado para o cumprimento da pena.

O magistrado, certamente, em sendo necessário, aplicará o regime mais rigoroso ao "mula", mas, ao revés, sentindo desnecessário, poderá dosar a pena na medida do que é necessário e proporcional, isto é, poderá exercer sua real função constitucional de agente construtor da Justiça, e não mero escravo da lei.

4.7. Ajuizamento de ações civis públicas

Quando o Estado se nega a destinar verba orçamentária suficiente para a manutenção dos estabelecimentos prisionais, cabe ao Ministério Público, despenhando sua relevante função constitucional, intentar a competente ação civil para obrigar o gestor público a fazer as intervenções necessárias.

Não se trata de intervenção ilegal na discricionariedade do administrador, mas simplesmente de fazer respeitar os princípios catalogados na Constituição Federal, garantindo aquele mínimo existencial condizente com a dignidade da pessoa humana.

Poucas, contudo, são as ações dessa ordem.

É chegada hora, portanto, de priorizar os presídios, e com isso atender a sociedade como um todo.

4.8. Informação aos presos

O preso deve acompanhar a execução penal de perto. Se é sabedor de seus direitos e deveres, das datas que alcançará os benefícios, e dos motivos pelos quais sofreu uma determinada punição, como regressão de regime, por exemplo, tem diminuída a ansiedade que o marca, e com isso diminuem as consultas e os pedidos infundados no fórum, além de diminuir as indisciplinas e os motins.

O juiz poderá, mensalmente, remeter ao diretor do estabelecimento um mapa no qual conste o nome de todos os detidos e as datas prováveis dos benefícios. Esse relatório é alimentado todas as vezes em que houver mudança nas condições da execução.

Esse banco de dados acaba facilitando a vida do próprio cartório, que acaba antevendo a data do benefício, ocasião em que, após certificar o cumprimento do lapso temporal, já remete os autos, independentemente de pedido (dispensáveis na execução), ao Ministério Público.

O diretor do estabelecimento, também mensalmente, poderá remeter ao fórum documento no qual conste o comportamento carcerário de todos os internos, que também é certificado pelo cartório antes de remessa dos autos ao Ministério Público.

4.9. Fortalecimento dos conselhos da comunidade

O conselho da comunidade é justamente a ponte entre a sociedade, maior interessada na ressocialização, e o Poder Judiciário.

Com o auxílio do conselho da comunidade o Judiciário promove uma execução mais racional e eficaz da pena.

É possível obter parcerias como empresas privadas (fabricação de bolsas e uniformes, por exemplo), com o Sistema "S" (SENAI, SEBRAE, etc), para que promovam cursos nos estabelecimentos, com as Universidades, cujos alunos passam a estagiar nos presídios (aspirantes a assistentes sociais, a psicológos e a advogados), ou com o próprio Estado, que por vezes propicia a instalação de padarias, marcenarias, laboratórios de informática, dentre outras atividade.

O conselho acaba fiscalizando o dia-a-dia da execução, alertando o juiz das mazelas cotidianas, como falta de material de higiene, colchões e cobertores, que poderá então tomar as medidas necessárias para fazer cessar o problema.


CONCLUSÃO

Estender a eficácia dos direitos fundamentais a todos os brasileiros, incluindo-se os condenados à pena privativa de liberdade, não é tarefa fácil.

Em última análise, é uma mudança cultural.

Punir é necessário, mas com humanidade.

Tolerar, respeitar, aceitar o diferente. Ver o ser humano como alguém que não é perfeito, que erra, e que ainda errará muito. Perceber que as imperfeições, os passos equivocados, os egoísmos, estão em todos nós.

A humildade de se colocar no lugar do outro, de co-sentir a dor alheia.

Ser (do verbo ser) humano.

Sem isso não avançaremos.


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991, p. 21.

[2] NIETZCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. São Paulo, Centauro, 2004.

[3]DE SÁ, Alvino Augusto. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

[4] VELO, J. Tennyson. Ensaio sobre a História da Criminologia comparada à Psiquiatria. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, 29, 2000.

[5] Op cit. p. 142-3.

[6] Apud DE SÁ, Alvino Augusto. Op. cit., p.117.

[7] ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: DelRey Editora, 2007.

[8] Op. cit. p. 10-1.

[9] cf. Ministério da Justiça: Sistema Integrado de Informação Penitenciário. Disponível em www.mj.gov.br, acesso em 19.08.2008

[10] op. cit. p. 55-6.

[11] Apenas como exemplo: Pablos de Molina e Manuel Cancio Meliá, na Espanha; Alessandro Baratta e Luigi Ferrajoli, na Itália; Claus Roxin , na Alemanha; Eugenio Raúl Zaffaroni, na Argentina; Raul Cervini, no Uruguai; praticamente toda a doutrina especializada brasileira.

[12] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito Penal, v.1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.352.

[13] Nesse sentido: GOMES, Luiz Flávio; PABLOS DE MOLINA, Antonio García. Criminologia. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2006; GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, García-Pablos de; BIANCHINI, Alice. Direito Penal, v.1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

[14] Por exemplo, estudo desenvolvido na Alemanha, mencionado por Klaus Tiedmann, aponta que no ano de 1990 chegaram ao conhecimento da polícia da República Federal da Alemanha a existência de 4.455.333 crimes. Apenas 433.682 foi o número total de condenações; e mais, somente 39.178 indivíduos foram efetivamente presos ou custodiados. Cf. ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: DelRey Editora, 2007.

[15] Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u392882.html. Acesso em 23.07.2008.

[16] Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/O,,PIO403494-5606,00.html. Acesso em 23.07.2008

[17] Disponível em www.segurancacidada.org.br/images/stories/arquivosnoticia/seguran%E7a2008_fecomercio-rj.pdf, acesso em 23.07.2008

[18] op. cit., p.78

[19] DOTTI, René Ariel. A Crise do Sistema Penitenciário. Artigo disponível em www.mj.gov.br, acesso em 19.08.2008.

[20] Cf. DE SÁ, Alvino Augusto. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

Sobre o autor
José Henrique Kaster Franco

Magistrado. Doutorando em Direito pela UMSA (Buenos Aires-Argentina). Especialista em Ciências Penais pela UNISUL. Professor Universitário. Associado ao IBCCrim

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, José Henrique Kaster. Execução da pena privativa de liberdade e ressocialização.: Utopia?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2009, 31 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12153. Acesso em: 8 nov. 2024.

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