Relevantíssimo debate é aquele referente à possibilidade de o Fisco exigir os valores discutidos em sede manifestação de inconformidade apresentada em face da não-homologação da compensação, ou enquanto não julgada a defesa interposta contra a decisão da manifestação improcedente do contribuinte.
Preordena o artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional que são causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo.
Não obstante o que prescreve o referido artigo, fato é que o Fisco federal, por meio de diversas decisões administrativas, exprimiu o seu entendimento no sentido de que a Manifestação de Inconformidade não tem o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário. Vejamos:
"COMPENSAÇÃO. NÃO-HOMOLOGAÇÃO. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE. A manifestação de inconformidade apresentada contra compensação não homologada não suspende a exigibilidade do montante do débito que exceder ao valor do crédito informado na DCOMP." [01]
"PEDIDO DE RESTITUIÇÃO / COMPENSAÇÃO. INDEFERIMENTO. MANIFESTAÇÃO DE INCONFORMIDADE. SUSPENSÃO DE EXIGIBILIDADE E LANÇAMENTO DE OFÍCIO. A existência de manifestação de inconformidade em processo administrativo de pedido de restituição/compensação, indeferido pela autoridade administrativa competente, não suspende a exigibilidade do crédito fiscal do IRPJ e CSLL que se pretendeu compensar e não impede o lançamento de ofício dos valores cuja falta de recolhimento foi constatada. MULTA DE OFÍCIO Caracterizada, em procedimento de ofício, a falta de recolhimento de IRPJ e CSLL, é cabível a imposição da multa de ofício. MULTA ISOLADA. REDUÇÃO PARA 50%. RETROATIVIDADE BENIGNA. É cabível a redução do percentual da multa isolada por falta de recolhimento de valores devidos por estimativa para o patamar de 50%, alterado por legislação superveniente ao lançamento, por força do princípio da retroatividade benigna. [02] (g.n)
Diante do posicionamento exarado pelas Delegacias de Julgamento, exsurge a seguinte indagação: a manifestação de inconformidade tem o caráter de recurso prescrito pelo artigo 151, III, do CTN e, portanto, suspende a exigibilidade do crédito tributário?
Antes de iniciarmos qualquer comentário acerca da referida indagação, necessário se faz trazermos à baila o disposto no parágrafo 11 do artigo 74 da Lei nº 9.430/96. Vejamos:
"§ 11. A manifestação de inconformidade e o recurso de que tratam os §§ 9º (manifestação de inconformidade contra a não-homologação da compensação) e 10 (decisão que julgar improcedente a manifestação de inconformidade caberá recurso ao Conselho de Contribuintes) obedecerão ao rito processual do Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, e enquadram-se no disposto no inciso III do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, relativamente ao débito objeto da compensação. (Incluído pela "§ 11. A manifestação de inconformidade e o recurso de que tratam os §§ 9º (manifestação de inconformidade contra a não-homologação da compensação) e 10 (decisão que julgar improcedente a manifestação de inconformidade caberá recurso ao Conselho de Contribuintes) obedecerão ao rito processual do Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, e enquadram-se no disposto no inciso III do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, relativamente ao débito objeto da compensação. (Incluído pela Lei nº 10.833, de 2003)."
Note-se que, com o advento da Lei n.º 10.833, de 2003, não restam dúvidas acerca do caráter impugnatório da manifestação de inconformidade e, por conseguinte, da sua qualidade de suspender a exigibilidade nos termos do artigo 151, III do CTN. Todavia, dúvidas podem surgir em relação à interrupção dos procedimentos de cobrança da manifestação anterior à vigência da referida Lei.
Pois bem, no plano das relações jurídicas processuais, sejam elas administrativas ou judiciais, a presença de uma norma jurídica base descumprida é incontestável. Daí dizer que "o processo é antes de tudo relação jurídica que se inaugura em virtude do descumprimento do dever previsto no conseqüente de uma norma primária." [03]
Afora isso, todo processo administrativo pressupõe a existência de um fato jurídico conflituoso, fato este que, por meio da manifestação do sujeito ativo (vitima do descumprimento da relação jurídica base), será solucionado através de uma decisão a ser proferida por um órgão julgador competente. Nesse mesmo sentido, inclusive, descreve o ilustre professor Paulo César Conrado:
"Regra: (i) processo administrativo, como todo processo (na acepção julgada fundamental), é relação implicada pelo fato jurídico conflito; (ii) ´processo administrativo’ que se estrutura a partir de qualquer outro fato jurídico (que não o conflito) não é processo administrativo. [...]a atividade desenvolvida pela Administração nos aludidos processos (administrativos) é, mesmo que atipicamente, manifestação jurisdicional – (i) é estatal (aspecto subjetivo do conceito de jurisdição) e (ii) tende à composição de conflitos.)." [04]
O confronto dessas afirmações força-nos a concluir que a não homologação da compensação apresentada pelo contribuinte faz surgir um conflito suscetível de apreciação por um terceiro investido do poder de decidir, conflito este que, por sua vez, materializar-se-á por meio de instrumento próprio e capaz de demonstrar o descumprimento da norma jurídica autorizadora do direito do contribuinte compensar.
Entretanto, não custa alinhar que o referido abarca não só a negativa dos créditos efetivamente não homologados pela autoridade administrativa, mas também em relação à impossibilidade de extinção do débito compensado pelo contribuinte.
Ora, é cediço que o próprio instituto da compensação pressupõe a sujeição de credor e devedor do contribuinte. Afastar o caráter de credor e ingressar com os meios de cobrança em relação ao débito é procedimento sobremaneira autoritário, tendo em vista a própria dualidade das relações jurídicas inerentes ao referido instituto da compensação.
Conclusão disso é que, de fato, a manifestação de inconformidade ataca a questão da exigibilidade dos débitos que o contribuinte pretende ver compensados. Assim, diante do caráter extensivo dos vocábulos "recursos" e "reclamações" no sentido de suspender a exigibilidade de todo débito passível de discussão, tem-se evidente a aplicabilidade do artigo 151, III, do CTN ao caso objeto do presente trabalho. Vejamos o que descreve o ilustre professor Hugo de Brito Machado acerca do referido dispositivo de lei:
" As palavras "reclamações" e "recursos", aqui, têm sentido amplo, abrangendo toda e qualquer forma de se insurgir o contribuinte contra a exigência que lhe é feita pela Administração Tributária na determinação e cobrança do crédito tributário." [05]
Afora tudo isso, dizer que o instrumento em epígrafe não suspende a exigibilidade, simplesmente por não ter a declaração de compensação do contribuinte o condão de constituir o crédito tributário, é atribuir à decisão que não homologa a compensação o caráter extremamente arbitrário, posto que o contribuinte será submetido aos transtornos decorrentes da inscrição em dívida ativa, protesto extrajudicial, e posterior execução fiscal sem sequer exercer o seu direito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal no âmbito do processo administrativo.
Pela ordem, e a corroborar com o entendimento de que a manifestação de inconformidade é instrumento hábil a suspender a exigibilidade do crédito tributário nos termos do artigo 151, III, do CTN, vejamos a decisão proferida no último mês de novembro, por meio de recurso de Apelação em Mandado de Segurança, pelo Tribunal Regional Federal da 3ª região:
"APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. COMPENSAÇÕES REALIZADAS PELO CONTRIBUINTE E REJEITADAS PELO FISCO. MANIFESTAÇÃO DE INCONFORMIDADE ANTES DO ADVENTO DA LEI 10.833/03. INEQUÍVOCO ATO RECURSAL. EFEITO SUSPENSIVO. ART. 33 DO DECRETO 70.235/72. DIREITO À CERTIDÃO POSITIVA DE DÉBITO, COM EFEITOS NEGATIVOS (ART. 206, CTN). 1. Certidão de regularidade fiscal (art. 205 e 206 CTN). 2. Declaração de compensação operada pelo contribuinte e rejeitada pela Administração Tributária. 3. Insurgência contra a decisão através de manifestação de inconformidade, antes da sua regulamentação pela Lei 10.833/03, através das modificações produzidas no art. 74 da Lei 9.430/96. 4. Inequívoco caráter de recurso, a provocar os efeitos suspensivos previstos pelo art. 33 do Decreto 70.235/72. 5. As modificações introduzidas pela Lei 10.833/03 não passam de lege ferenda daquilo que, pela natureza das coisas, já se podia extrair deste tipo de insurgência. 6. A manifestação de inconformidade tem todos os requisitos de um recurso administrativo, visto que expressa manifestação contra decisão contrária aos interesses do contribuinte. 7. Negar a esta manifestação o caráter de recurso - e dos efeitos a ele atinentes -, simplesmente porque não partiu do Estado a iniciativa de declarar o tributo, corresponde a impregnar a atuação estatal de caráter autoritário, a se servir de conveniente e demasiado formalismo, em detrimento dos princípios do devido processo legal substantivo e do contraditório e da ampla defesa, solenemente acolhidos pela Constituição Federal de 1988 (art. 5º, inc. LIV e LV). [...]." [06]
Atente-se para o fato de que o Ministro Rubens Calixto, no mesmo sentido que descrevemos, entende que a manifestação de inconformidade, de fato tem todos os requisitos de um recurso administrativo, razão pela qual não há qualquer motivo para que a mesma não suspenda a exigibilidade do débito suscetível de compensação.
Portanto, diante de todo o exposto, resta evidente o caráter de recurso da manifestação de inconformidade, seja antes ou depois do advento da Lei. n.º10.833/03, posto que a apresentação do referido instrumento, além de materializar em linguagem própria o fato jurídico conflituoso decorrente do descumprimento da norma jurídica de compensação, faz nascer a relação jurídica processual administrativa capaz de conhecer a existência do crédito utilizado, bem como do modo extintivo do débito compensado. Além disso, não admitir a suspensão da exigibilidade sob a simples alegação de não ter a declaração de compensação do contribuinte o condão de constituir o crédito tributário, é atitude, sobremaneira, arbitrária, haja vista o cerceamento do direito ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Daí a possibilidade de intervenção judicial por parte do contribuinte.
Notas
- ACÓRDÃO Nº 09-21326 de 23 de Outubro de 2008, MINISTÉRIO DA FAZENDA, SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL DE JULGAMENTO EM JUIZ DE FORA, 3 º TURMA
- ACÓRDÃO Nº 06-19313 de 25 de Setembro de 2008,MINISTÉRIO DA FAZENDA, SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL, DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL DE JULGAMENTO EM CURITIBA
- Conrado, Paulo César. Introdução à Teoria Geral do Processo Civil, 1ª edição. São Paulo: Max Limonad, p.204.
- Conrado, Paulo César. Processo Tributário. 2004, 73/80 f. Dissertação (Doutorado em Direito Tributário) – Pontifícia Universidade Católica.
- Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 28.ed, editora Malheiros, São Paulo:2007, p.217
- Brasil, Tribunal Regional Federal da 3ª Região. AMS - APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 275669, Processo: 2004.61.10.007188-6 , UF:SP, Órgão Julgador: TERCEIRA TURMA, Data do Julgamento: 06/11/2008, Fonte: DJF3, DATA:18/11/2008 , Relator: JUIZ RUBENS CALIXTO