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A atualidade da questão do pagamento de títulos de crédito em ordem cronológica pelos órgãos públicos

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Agenda 22/01/2009 às 00:00

Esse fenômeno do pagamento de títulos pelas tesourarias dos diversos órgãos é da órbita do Direito Financeiro, mas traz profundos reflexos no campo do Direito Administrativo Pátrio.

1.Introdução

        Quotidianamente, os diversos órgãos públicos do nosso país efetuam aquisições que suportam a prestação dos serviços públicos, realizando o conseqüente pagamento dos títulos de crédito emitidos contra eles por meio de ordens de pagamento, conforme preceitua a difundida Lei nº 4.320 de 1964. O mesmo processo se dá tanto para aquisições de pequena monta, quanto para despesas de grande vulto, compondo as já clássicas fases da despesa: Empenho, Liquidação e Pagamento.

        Esse fenômeno do pagamento de títulos pelas tesourarias dos diversos órgãos é da órbita do Direito Financeiro, mas traz profundos reflexos no campo do Direito Administrativo Pátrio. Dentre os diversos temas correlatos ao assunto, escolheu-se neste artigo tratar da atualidade do pagamento em ordem cronológica dos títulos apresentados, por ser uma questão ainda pouco explorada e merecedora da devida atenção. Além de estar presente em todos os órgãos, o tema envolve múltiplos aspectos do Direito, incluindo a área Penal, reforçando a idéia de que o Direito é uno.

        Desse modo, esse singelo texto busca consolidar o que já foi dito pelos doutrinadores no campo do Direito Administrativo sobre o assunto, incluindo visões da vivência do Direito Financeiro do autor e alguns aspectos do Direito Penal, de modo a integrar essas visões, multifacetadas atualmente nos diplomas legais vigentes, mostrando a atualidade do tema, apesar da casuística sugerir sua pouca ocorrência no cotidiano de gestores, fornecedores e órgãos de controle.


2.O ato de pagar

        O Código Civil, que positiva o ramo do Direito que é pai de todos os outros, já cita que os acordos nascem das vontades e extinguem-se pelo cumprimento da obrigação. Esse princípio dos contratos também se aplica aos Contratos Administrativos, onde a Administração vai ao mercado na busca daquele particular que poderá atender a sua demanda e receber a justa remuneração por isso. Essa extinção da obrigação do órgão com o particular se faz pelo pagamento de um documento por ele apresentado, o "Título de Crédito", definido no mesmo Código, em seu Art. 887, como:

        O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.

        A apresentação desse documento, reconhecido pela Administração, enseja o exercício do direito de receber e de cobrança, se devidamente atestado.

        No âmbito do Direito Financeiro, estes princípios também são observados. A Lei nº 4.320/64 define como Liquidação:

        Art. 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.

        § 1° Essa verificação tem por fim apurar:

        I - a origem e o objeto do que se deve pagar;

        II - a importância exata a pagar;

        III - a quem se deve pagar a importância, para extinguir a obrigação.

        § 2º A liquidação da despesa por fornecimentos feitos ou serviços prestados terá por base:

        I - o contrato, ajuste ou acordo respectivo;

        II - a nota de empenho;

        III - os comprovantes da entrega de material ou da prestação efetiva do serviço.

        O ato da verificação do direito adquirido pelo credor, apresentado nos títulos de crédito correspondentes, enseja compulsoriamente a administração a promover a extinção da obrigação pelo pagamento, fase da despesa também definida pelo mesmo diploma legal, como se segue:

        Art. 62. O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.

        Art. 64. A ordem de pagamento é o despacho exarado por autoridade competente, determinando que a despesa seja paga.

         Parágrafo único. A ordem de pagamento só poderá ser exarada em documentos processados pelos serviços de contabilidade

        Para preservar o Erário, a Lei sabiamente determina que somente depois de verificado o direito adquirido e ordenado por aquele que tem essa prerrogativa, que é o Ordenador de Despesas, que o numerário sairá dos cofres da Administração para os cofres do particular. Existe a demanda por um "Pague-se" aposto, em face de onerosa reversão de pagamentos indevidos efetuados. A Lei se preocupou com a existência também de um setor específico para essas transações. A entidade deverá ter, de forma institucionalizada, um setor para realizar pagamentos, geralmente denominado Tesouraria (MACHADO & REIS, Pg. 152). A União, por exemplo, dispõe de sistemas para gerar os documentos que suportam esses pagamentos. O SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal) permite o registro da liquidação e a geração da Ordem Bancária, que assinada pelo Ordenador de despesas, segue para o Banco, que processará o respectivo pagamento, tornando o procedimento mais mecanizado e transparente.

        Destarte, o ato de pagar, de extinção da obrigação, é revestido de formalidades e controles, para que a Administração não incorra em pagamentos indevidos, que geram ônus administrativo e podem causar prejuízos ao Erário, além de comprometer a credibilidade da instituição. Esse processo de pagamento tem um prazo, contado sempre da data de liquidação, pois dali passa a existir a obrigação a ser extinta, como visto anteriormente. Esse prazo é ditado na Administração Pública pela Lei nº 8.666/93, o Estatuto das licitações, que trata do assunto em dois momentos distintos:

        Art. 5º  § 3º  Observados o disposto no caput, os pagamentos decorrentes de despesas cujos valores não ultrapassem o limite de que trata o inciso II do art. 24 (Atualmente R$ 8.000,00), sem prejuízo do que dispõe seu parágrafo único,  deverão ser efetuados no prazo de até 5 (cinco) dias úteis, contados da apresentação da fatura. 

        Art. 40.  XIV - condições de pagamento, prevendo:

        a)prazo de pagamento não superior a trinta dias, contado a partir da data final do período de adimplemento de cada parcela;

        A Lei estabelece prazos para o processamento do pagamento, variando este prazo devido ao montante envolvido, estabelecendo cinco dias úteis para valores abaixo do limite de dispensa para compras e trinta dias corridos para outros casos. Esse é um mecanismo de proteção as compras de menor vulto, feitas principalmente no comércio varejista, que tem um menor retorno marginal por produto e carece, freqüentemente, de capital de giro.

        Entende-se aí também que esse pagamento, em regra, é feito por depósito em cheque ou outra ordem de pagamento gerada pelos sistemas do órgão pagador, sendo entregue para processamento no respectivo banco, contada dessa entrega o prazo do órgão público. Esse processamento dos pagamentos não é apenas verificar e carimbar o documento, considerando que pelo princípio do "Caixa único" aplicado ao Direito Financeiro Pátrio, por força da Doutrina e do Decreto nº 93.872/86, o recurso sai do caixa do governo para o banco que operacionaliza o pagamento mediante uma programação efetuada pelo órgão pagante, o que por vezes pode gerar mais complexidade nesse processo do que uma simples aposição de carimbos, considerando que, principalmente no âmbito Federal, os recursos do governo em caixa sofrem influência de toda a Economia, envolvendo também a questão do ritmo de arrecadação. Todas essas questões influenciam o tempo demandado para o processamento do título, já liquidado, devido, por vezes, a fatores que ultrapassam as competências do Gestor Financeiro.

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        Esses prazos têm eco no Art. 331 do Código Civil, aplicado subsidiariamente, que ressalva que em caso de disposição legal, a exigência dos pagamentos pode não ser de forma imediata. Esse mecanismo é uma forma a preservar o Erário, demandando o tempo mínimo de verificação dos documentos e de movimentações financeiras para o pagamento, considerando ainda o tamanho da máquina estatal. Situações como o "empenho contra-entrega" surgiram no Direito Financeiro para agilizar pagamentos e fornecer mais credibilidade. Além da obediência desses prazos, que nos casos de maior vulto envolvem trinta dias, coube a Lei determinar como se daria o pagamento de vários credores com direito líquido e certo em relação ao mesmo órgão pagador, agora na busca de defender também o direito daqueles.


3-Os prejuízos da quebra da ordem

        Chronos, Titã que era o pai de Zeus e Senhor do Tempo na mitologia Grega, deu origem a palavras "cronologia". Para a vida diária, nas filas que enfrentamos para as diversas demandas, hoje recheadas de máquinas emissoras de senhas, essa cronologia é uma garantia de isonomia e de justiça, sendo mitigada apenas quando é o caso de idosos, gestantes e pessoas com necessidades especiais, com base nesses mesmos princípios.

        A isonomia também é um princípio espelhado na Lei nº 8.666/93 e, no caso do pagamento de títulos de crédito, ela se faz presente em duas situações, que segundo a doutrina majoritária, se harmonizam dentro da mesma Norma, conforme trecho a seguir:

        Art. 5º  Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos, a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada.

        Art. 92.  Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei:

        Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. (Grifo nosso)

        Esses dois artigos serão explorados com mais profundidade no item 4 deste artigo. Importa agora analisar que ambos, inseridos na Lei nº 8.666/93 em 1994, positivaram que existe a necessidade de se observar uma ordem cronológica de exigência, ou seja, que o fator "momento em que a despesa foi liquidada" é o determinante da precedência do pagamento das notas, observadas algumas peculiaridades e exceções, de relevante interesse público.

        A época da promulgação da Lei que realizou essas inclusões, a Lei nº 8.883 de 8 de junho de 1994, foi no mês anterior de lançamento do Plano Real, Plano este que trouxe uma proposta de estabilização da economia, que campeava nesta época com índices de inflação próximos aos 50% a.m. O Governo, que cultivou uma fama de mau pagador, para obter bons resultados em um período inflacionário, precisava melhorar a sua credibilidade na busca de obter preços mais vantajosos. Em um cenário de inflação galopante e de aplicações rentáveis do dia para a noite, normatizar a regra da prioridade do pagamento representava uma moralização necessária para aqueles que forneciam para o governo, que terminavam por embutir em seus preços esses riscos e perdas. A Administração acaba pagando mais caro, pois sistematicamente atrasa os pagamentos, o que, pela incerteza, gera ansiedade por parte daqueles que vão receber, o que pode abrir espaços para mercados escusos de propinas para pagamentos fora da ordem cronológica.

        Aquele fornecedor que vende para o governo tem dívidas com outros fornecedores (folha de pagamento e outras despesas), onde o desejável para a sua saúde financeira é que ele sempre tenha um prazo de pagamento maior do que o seu prazo para receber as suas dívidas, evitando ter que tomar empréstimos para cobrir o capital de giro em instituições financeiras. Em períodos de juros altos e grande inflação, esse dinheiro tomado emprestado sai caro para o fornecedor, impactando nas suas despesas não-operacionais e diminuindo o seu resultado. Da mesma forma, todo capital de giro que ele puder dispor poderá ser aplicado no curtíssimo prazo, que nos idos de 1994, do famoso Overnight, oferecia significativas receitas não-operacionais. Ou seja, no período de inserção na Lei nº 8.666/93 do dispositivo em comento, uma mudança de ordem e um conseqüente atraso no pagamento impactava no capital de giro, podendo gerar empréstimos a juros altos ou ainda, que o fornecedor deixasse de obter receitas em aplicações de curtíssimo prazo. Nos dias de hoje, apesar da queda da aplicação de um dia útil, os juros altos ainda desencorajam a busca de recursos para manter o capital de giro das empresas, tornando o dispositivo em tela mais do que atualizado.

        Receber na ordem cronológica pela ótica do fornecedor, face ao exposto, é mais do que uma questão de isonomia e sim uma questão da influência dessa ação no seu resultado. Essa situação gera um direito subjetivo ao fornecedor de ver observada a ordem prescrita, sendo possível ainda, que esse requeira a Administração os pagamentos efetuados e a sua data de liquidação, observada a fonte, a fim de verificar a preservação de seu direito. Caso haja a burla a "fila de pagamentos", acaba sendo uma situação enquadrada no conceito do "Ótimo de Pareto", onde a melhora da situação de um fornecedor desencadeia a piora da situação do outro, em um jogo de perde-ganha.

        Em hipótese nenhuma se trata de patrocínio do interesse privado a verificação desse procedimento, inclusive pelos órgãos de controle. Atende sim ao interesse público, pois se trata do cumprimento das normas e dos princípios da Administração Pública e a manutenção da credibilidade do órgão, que reverte para a economicidade dos cofres públicos. Pode-se ver que o dispositivo legal que protege a ordem cronológica dos pagamentos, além de todo um aspecto de respeito aos princípios, se vê envolto em questões das próprias relações econômicas dos fornecedores com os órgãos. Provavelmente por esse motivo, insuflado pelo longo período inflacionário, o legislador criminalizou essas condutas, na busca de uma maior credibilidade para a Administração Pública e a conseqüente diminuição dos preços praticados pelos seus fornecedores.


4.A criminalização na Lei 8.666

        O Art. 92 da Lei nº 8.666/93, na sua segunda parte, criminaliza o pagamento de fatura em que não seja observada a ordem cronológica de exigibilidade, entendida essa última, como visto, pelo momento em que o Título de Crédito foi liquidado, nos termos da Lei nº 4.320/64. O entendimento da Doutrina é que o termo "fatura" utilizado refere-se a qualquer título que expresse um crédito contra a Administração (GASPARINI, pg.117), podendo ser uma Nota Fiscal, um Recibo de Pagamento de Autônomo (RPA), entre outros do mesmo gênero.

        Essa criminalização não consta dos diplomas anteriores que tratavam das compras no setor público, como o Decreto-Lei n 200/67 e o Decreto-Lei nº 2.330/86, reforçando a tese que a conjuntura inflacionária contribuiu para a inserção desse dispositivo. Existe no Decreto nº 93.872/86, que regulamenta aspectos da Lei nº 4.320/64, uma menção a ordem cronológica, citada com grifo nosso, como se segue:

        Art . 102. O pagamento nos respectivos vencimentos, dos débitos decorrentes de compromissos em moeda estrangeira, que contarem ou não com a garantia da União, por fiança ou aval, outorgada diretamente ou concedida por intermédio de instituição financeira oficial, terá prioridade absoluta nos cronogramas financeiros de desembolso dos órgãos da administração federal centralizada, das entidades de administração descentralizada e suas subsidiárias e das demais entidades sob controle acionário direto ou indireto da União ou de suas autarquias, bem como das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público, que hajam assumido tais compromissos (Decreto-lei nº 1.928/82, art. 1º com a redação dada pelo Decreto-lei nº 2.169/84).

        Parágrafo único. Serão pessoal e solidariamente responsáveis pelo atraso no pagamento, por parte dos órgãos e entidades mencionadas neste artigo, os respectivos administradores que concorrerem, por ação ou omissão, para o descumprimento da prioridade estabelecida.

        Art . 105. A Secretaria do Tesouro Nacional velará para que, da relação de responsáveis por dinheiros, valores e outros bens públicos, de que trata o artigo 85 do Decreto-lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, a ser anualmente transmitida ao Tribunal de Contas da União, constem os nomes dos que incorrerem na hipótese prevista no parágrafo único, do artigo 102.

        Parágrafo único. A inobservância da prioridade de pagamento de que trata o artigo 102 poderá, a critério do Tribunal de Contas da União, ser considerado ato irregular de gestão e acarretar para os infratores inabilitação temporária para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança nos órgãos ou entidades da administração federal centralizada ou descentralizada e nas fundações sob supervisão ministerial (Decreto-lei nº 1.928/82, art. 4º parágrafo único).

        Entretanto, observamos que a prioridade não é do pagamento em ordem cronológica e sim da liberação dos recursos do cronograma financeiro de desembolsos, como se essa fosse a única causa de atraso ou inobservância de ordem. Além disso, a sanção prevista é na esfera administrativa, não se falando em punição na esfera penal. Como se vê, a alteração da Lei nº 8.666/93 pela Lei º 8.883 de 8 de junho de 1994 foi inovadora, trazendo consigo a inclusão destes desvios na esfera penal. Os doutrinadores que escreveram sobre o assunto e a jurisprudência defendem que o Art. 92 deva ser interpretado em consonância com o Art. 5º do mesmo diploma legal:

        A incriminação, ainda, deixa de referir à possibilidade de alteração da ordem, desde que presentes relevantes razões de interesse público, mediante prévia justificativa da autoridade competente, devidamente publicada, e, também, que a ordem a ser respeitada deve ser em cada unidade da Administração e para cada fonte diferenciada de recursos.

        Cremos que os dois dispositivos devam ser combinados, já que um é sancionador do outro, a fim de que a incriminação não seja despropositada (GRECO FILHO, Pg. 28)

        Coube a Doutrina tratar das incongruências do Art. 5º e do Art. 92. Quanto à questão da exigibilidade, não podemos nos esquecer que um serviço pode ser concluído e a nota apresentada, demandando para este o tempo próprio para o devido recebimento, de onde advém a liquidação. A própria Lei nº 8.666/93 trata disso, quando:

        Art. 15, § 8º O recebimento de material de valor superior ao limite estabelecido no art. 23 desta Lei, para a modalidade de convite, deverá ser confiado a uma comissão de, no mínimo, 3 (três) membros.

        Ou seja, Títulos de crédito apresentados na mesma época podem demandar tempos diferentes de verificação pela sua natureza ou valor, o que conduziria a absurda situação de um título liquidado aguardar o seu pagamento por que outro que foi apresentado antes ainda não foi liquidado. Alguns itens, no seu recebimento, demandam exames e perícias. Parece mais razoável que seja realmente a data da liquidação a que a Lei se refere.

        Outro ponto é que a justificativa deve ser prévia, o que se deve ao princípio da publicidade e consequentemente do contraditório, permitindo que os afetados se manifestem a tempo sobre a alteração de ordem, invocando-se, caso necessário, o disposto na Lei nº 9.784/99. Da mesma forma, apesar da ressalva da justificativa prévia e fundamentada não estar incluída no Art. 92, ela deve ser acatada na criminalização, pelo entendimento do Art. 5 º, excluindo a tipicidade do crime, em face de justificativa romper o elo de subsunção deste.

        Essa quebra de ordem, ainda que justificada previamente, deve ser de caráter excepcional, como cita a doutrina:

        As situações são excepcionalíssimas e devem ser interpretadas restritivamente, podendo ser mencionadas: a necessidade de purgar a mora em ação de despejo por falta de pagamento, para evitar o despejo; ou de impedir paralisação da execução de contrato em conseqüência de atraso no pagamento (v. art. 78 – XV), quando ela possa causar prejuízos irreparáveis. Por razões lógicas, a publicação, que serve ao controle da legitimidade do ato, deve preceder o pagamento, pois, do contrário, será inócua, pela impossibilidade de fazer retornar aos cofres públicos a quantia paga sem que houvesse razão bastante para desobedecer à ordem cronológica. (SUNDFELD, Pg. 235)

        Quanto a questão da ordem, esta deve ser observada dentro da mesma unidade da Administração, conforme a lavra do Art. 5º da Lei nº 8.666/93. O entendimento de "Unidade da Administração" seria aquela que realiza pagamentos, por não ser possível estabelecer uma ordem de pagamentos naquelas que não o fazem. Entretanto, na prática, existe a peculiaridade que determinadas unidades administrativas, por questões de centralização e economia de recursos humanos, tem suas faturas pagas por outras unidades. Tal fato se dá principalmente quando diversas unidades administrativas pequenas se concentram em um local, e uma, com maior estrutura, recebe os créditos de todas efetuando os pagamentos. É a figura da Unidade Gestora Responsável pelo crédito e a Unidade Gestora Executora do crédito. O Manual do SIAFI define bem esses conceitos:

        CAPITULO

        020000 - SISTEMA INTEGRADO DE ADMINISTRAÇÃO FINANCEIRA DO GOVERNO FEDERAL - SIAFI

        SECAO

        020400 - ESTRUTURA ORGÂNICA DO SISTEMA

        3 - CONCEITOS

        3.2.7 - UG. EXECUTORA - UGE - Realiza..atos..de.gestão.financeira..e/ou patrimonial,..cujo..titular,..em..consequência,..está..sujeito..à..Tomada..ou Prestação de Contas Anual.

        3.2.9 - UG RESPONSÁVEL - UGR -Unidade responsável pela. realização da parcela do programa de trabalho contida num crédito.

        Considerando-se que usualmente a liquidação se dá na Unidade Responsável pelo crédito e a nota fiscal é depois enviada para a Unidade Executora do crédito, a ordem pela data da liquidação do título utilizada pode causar problemas na Unidade Executora, que pode receber notas fiscais liquidadas que demoraram muito tempo para serem entregues a ela, em confronto com notas liquidadas posteriormente e que já foram pagas, gerando compulsoriamente a quebra da ordem. No caso em tela, seria razoável entender que a ordem cronológica continua sendo pela data de liquidação e que no pagamento da nota entregue com atraso pela Unidade Responsável, seja justificada a quebra de ordem, apurando as responsabilidades administrativas, de modo a proteger a administração de questionamentos sobre a ordem cronológica de pagamentos que foi quebrada, de modo facilmente demonstrado pela liquidação dos títulos de crédito. A definição desses prazos na normatização interna do setor de pagamentos facilita a segregação de responsabilidades, principalmente no caso da questão ser inevitavelmente conduzida para a esfera penal, por iniciativa do fornecedor. Caso existam questionamentos dos órgãos de controle, o gestor pode demonstrar no seu âmbito de atuação que estabeleceu parâmetros, com fundamentos nos princípios da Administração Pública.

        Importante ressaltar também que, pela letra da Lei, a ordem deve ser observada por fonte de recursos. Esse conceito exposto na Lei pode ser relacionado ao disposto no Manual Técnico do Orçamento-2009:

        A classificação por natureza da receita busca a melhor identificação da origem do recurso segundo seu fato gerador. No entanto, existe a necessidade de classificar a receita conforme a destinação legal dos recursos arrecadados. Assim, foi instituído pelo Governo Federal um mecanismo denominado "fontes de recursos". As fontes de recursos constituem-se de determinados grupamentos de naturezas de receitas, atendendo a uma determinada regra de destinação legal, e servem para indicar como são financiadas as despesas orçamentárias. Entende-se por fonte de recursos a origem ou a procedência dos recursos que devem ser gastos com uma determinada finalidade. É necessário, portanto, individualizar esses recursos de modo a evidenciar sua aplicação segundo a determinação legal. (BRASIL, Ministério do Planejamento, Pg.30)

        Seguindo-se a classificação orçamentária vigente, é possível identificar as fontes de recursos, que são na verdade classificações ligadas à destinação legal do recurso. Não parece ter muito sentido o legislador ter vinculado a ordem de pagamento a destinação legal do recurso. Alguns doutrinadores (GRECO FILHO, Pg. 29) defendem que a "Fonte de Recursos" se refere a origem dos recursos, se próprios ou decorrentes de operações de créditos, transferências, o que pelo MTO seria a classificação da Receita pela Origem. Cabe registrar que a "Fonte de Recursos" é uma classificação da "Receita" e não da "Despesa".

        Considerando que a finalidade do legislador em dividir a ordem de pagamento por fontes seria a características dessas fontes que influenciariam os pagamentos, de modo a garantir a isonomia, a classificação pela origem faria mais sentido. Entretanto, as Empresas Públicas, que também são abrangidas pela Lei nº 8.666/93, trabalham com o Regime de Caixa, trazendo classificações e peculiaridades que não permitem aplicar esses conceitos orçamentários. Em termos práticos, essa questão é difícil de ser operacionalizada e foi pouco explorada pela Doutrina e pela regulamentação. È razoável que seja utilizada a "Fonte de recursos" descrita no MTO, preso a letra da Lei. Mas em Unidades Pagadoras que não se prendam ao Orçamento, como as empresas públicas e naquelas que as origens dos recursos se comportem de maneira que interfira no prazo de pagamento, normatização interna poderá fazer menção, de forma fundamentada e prévia, ao critério que será utilizado para a divisão das "filas", caso necessário, dos pagamentos e a sua ordem cronológica, observados os princípios gerais da Administração pública, em especial a isonomia, na composição de cada grupo que deverá obedecer a mesma "fila" para pagamentos. Menção a esses aspectos em editais de licitação podem evitar dissabores futuros, considerando-se a peculiaridade de cada órgão e do seu universo de pagamentos.

        A questão da observância das Fontes de Recursos e das Unidades Administrativas como critérios individualizantes das "filas" de pagamentos ainda é pouco esclarecida e discutida pela Doutrina e pela Jurisprudência, ensejando dúvidas ao administrador na aplicação dos ditames da Lei e prejudicando a materialidade das ações penais nesses casos, deixando a cada caso concreto a análise do dolo na ação do Gestor no pagamento das faturas, ou ensejando argumentos para a defesa dos gestores que descumpriram a ordem.

Sobre o autor
Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Analista de Finanças e Controle (CGU-PR). Mestre em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Ciências Navais com Habilitação em Administração (Escola Naval).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Marcus Vinicius Azevedo. A atualidade da questão do pagamento de títulos de crédito em ordem cronológica pelos órgãos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2031, 22 jan. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12223. Acesso em: 23 dez. 2024.

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