5. Ocupação
José de Moura Rocha conceitua "ocupação" como o "ato pelo qual uma pessoa se apodera de uma coisa com a intenção de se apropriar dela" 17. É um conceito que prestigia, como salta aos olhos, o elemento subjetivo da conduta do ocupador, mas também o identifica, logo a seguir, com a posse, ao aduzir que "temos que a ocupação apresentará requisitos que se confundem com a aquisição da posse [...]" 18. Mas, considerando que este autor põe em relevo o elemento subjetivo, teríamos que ver aqui então a posse como sendo igualmente subjetiva, nos moldes defendidos na "teoria subjetiva" de Savigny. Outra possibilidade hermenêutica é considerarmos a ocupação como instituto distinto da posse. Desta forma, não me parece que haveria maiores problemas em enfatizar o elemento subjetivo da ocupação, já que não haveria conflito com a "teoria objetiva" da posse, adotada entre nós. Esta possibilidade teria a vantagem de desqualificar, por exemplo, os locatários e comodatários como ocupantes, assim como o faz a teoria subjetiva da posse.
A seu turno, Fernando Pereira Sodero 19, citando lição de Paulo Garcia, refere que a Constituição de 1946 trazia previsão acerca da ocupação que tinha um sentido de posse privilegiada, em seu artigo 156, parágrafo terceiro, que prescrevia, verbis:
"Art. 156.
[...]
§ 3º - Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra não superior a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante sentença declaratória devidamente transcrita".
Refere-se o autor a uma posse "privilegiada" com o sentido de que ela tem dois predicados que conferem-lhe maior vigor ou efeitos mais robustos: o possuidor torna-a produtiva por seu trabalho e tem no imóvel sua morada 20. Afirma também que é nesse mesmo sentido que o termo é utilizado no Estatuto da Terra 21, quando disciplina na sua seção IV a matéria atinente aos ocupantes de terras públicas federais.
Outro elemento citado por José de Moura Rocha 22 é que a coisa ocupada deve ser nullius, de sorte que não deve ter dono. Se já teve, deve ter deixado de ter, ou então deve haver presunção legal de tratar-se de coisa abandonada. Reconhece-se que essa idéia decorre do artigo 1.263 do Código Civil vigente, mas que é aplicável à aquisição da propriedade móvel. Esse elemento, contudo, não se coaduna com o sistema vigente de aquisição da propriedade no Brasil se o título estiver regularmente registrado. Isto porque aquele que figura na matrícula como proprietário continuará ostentando esse predicado enquanto o registro não for cancelado ou enquanto um título translativo do seu direito não aceder ao fólio real. Então, dentro da moldura estabelecida pelo artigo 213, teremos que admitir a possibilidade de haver um ocupante em imóvel lindeiro ao retificando ainda que o mesmo encontre-se registrado em nome de outra pessoa, não sendo, assim, res nullius.
Por fim, ressalta o autor acima referido que a ocupação também implica em apreensão material da coisa, com submissão ao poder físico imediato do ocupante.
Como, então, relacionar todos os conceitos até aqui abordados com o "ocupante" do artigo 213 da LRP? Tenho pra mim, na verdade, que o bem jurídico sob tutela no artigo referido é a propriedade e a posse ad usucapionem, de sorte a evitar que haja sobreposição de área ou avanço sobre o imóvel lindeiro. Daí exigir o texto legal a notificação dos proprietários e dos "ocupantes", sendo este termo utilizado aqui em sentido parcialmente novo, não de todo subsumível à idéia da ocupação de bens móveis adéspotas. É bom lembrar que por vezes a conotação esconde a denotação, ainda que reconheça-se não ser o melhor caminho, sob o ponto de vista da epistemologia e metodologia científicas, nomear coisas diferentes com nomes iguais ou coisas iguais com nomes diferentes.
Mas no sistema vigente de registro imobiliário brasileiro, não há como olvidar que aquele que consta na tábua real continuará sendo tido por proprietário até que se registre título translativo (artigo 1.245, parágrafo primeiro) ou se promova o cancelamento do registro aquisitivo (parágrafo segundo do mesmo artigo), razão pela qual a idéia de "ocupação" aqui não pode ser aplicada apenas às res nullius. Então temos mesmo que buscar um sentido próprio do termo, peculiar, em face da ratio do artigo 213 da Lei de Registros Públicos.
No Processo nº 000.04.077916-5, da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, publicado no DOE de 24.8.2004, os Excelentíssimos Juízes doutores Venício Antonio de Paula Salles, José Henrique Fortes Muniz Junior e Tania Maria Ahualli, assentaram que "ocupante" é o "confrontante físico". Logo na sequência acrescentam a idéia de que os ocupantes que devem ser notificados são os "ocupantes diretos", que seriam aqueles que não estejam na posse por autorização, permissão, detenção ou em razão de contrato firmado com o titular de domínio, situações em que ficaria dispensada a notificação.
Sendo assim, a posse que interessa ao conceito de "ocupante" é a posse ad usucapionem, ou seja, a posse plena, que é a posse não desdobrada, como aduz Moreira Alves 23, ou, se houve desdobramento da posse, a posse indireta de grau mais elevado, ou, ainda, como averba Pontes de Miranda, é a "posse própria" 24. Ficam afastados assim do conceito de "ocupante" do artigo 213, parágrafo 10, da Lei de Registros Públicos, portanto, os detentores e os fâmulos da posse, os que encontram-se em relação de mera permissão e tolerância, e os possuidores diretos, que conforme colhe-se da doutrina alemã, são apenas mediadores da posse (Besitzmittler) do possuidor indireto 25.
Em conclusão, não são "ocupantes" para os fins previstos no preceptivo legal sob comento, os locatários, arrendatários, comodatários, usufrutuários, superficiários, ou, por extensão, e como referido no Parecer da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo adrede referido, quem quer que esteja na disposição imediata da coisa em razão de contrato real ou obrigacional.
E como identificá-los, caso alguém se apresente nessa qualidade ao registrador? Tenho para mim que o aspecto a se considerar é que, feita a notificação, aquele que se apresentar como "ocupante", anuindo ou impugnando o pedido, será pela prática deste ato identificado como quem se porta como se proprietário fosse, porque essa conduta exterioriza o agir que se espera do dono da coisa. Fica atendido, assim, o requisito do animus domini na teoria objetiva de Ihering, dispensando-se então qualquer outra perquirição do registrador acerca da sua legitimação, de sorte que se houver dúvidas e desavenças sobre esta questão, tais circunstâncias extrapolarão à toda evidência os estreitos limites do procedimento administrativo de retificação registral promovido diretamente junto ao Oficial Registrador, devendo, então, naturalmente desaguar no Poder Judiciário para seu deslinde.
O que se dispensa é que o registrador deva fazer perquirições sobre a qualidade da posse, ou exigir anuência de quem se identifique como possuidor direto, detentor, etc.
Ad ultimum, com relação à constatação da inexistência de ocupantes a serem notificados, parece-me plenamente viável aceitar declaração prestada pelos proprietários-requerentes da retificação e pelo profissional que elaborou os trabalhos técnicos, já que o parágrafo 14 do artigo 213 disciplina que "verificado a qualquer tempo não serem verdadeiros os fatos constantes do memorial descritivo, responderão os requerentes e o profissional que o elaborou pelos prejuízos causados, independentemente das sanções disciplinares e penais".
Estas as conclusões que submeto à comunidade de estudiosos do direito registral pátrio para as considerações e reparos que merecerem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico, verbete "ocupane", v. 3, 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2005.
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LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, 2ª ed. Barueri : Editora Manole, 2008.
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RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião, 3ª ed., v. 1. São Paulo : Saraiva, 2003.
ROCHA, José de Moura. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupação", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977.
SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis, 6ª ed. São Paulo : RT, 2005.
SODERO, Fernando Pereira. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupante", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977.
Notas
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico, v. 3, 2ª ed. São Paulo : Saraiva, 2005, verbete "ocupante", p.483.
SODERO, Fernando Pereira. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupante", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977, p. 489.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, 2ª ed. Barueri : Editora Manole, 2008, p. 1273.
ROCHA, José de Moura. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupação", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977, p. 475.
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião, 3ª ed., v. 1. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 644.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, 2ª ed. Barueri : Editora Manole, 2008, p. 1081.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, 2ª ed. Barueri : Editora Manole, 2008, p. 1081.
IHERING, Rudolf Von. Teoria simplificada da posse, 2ª ed. São Paulo : Edipro, 2002, p. 56.
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ALVES, José Carlos Moreira. Posse – estudo dogmático, 2ª ed., vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 447.
Que é a posse que conduz à prescrição aquisitiva. Têm os possuidores diretos, contudo, a posse ad interdicta, ou acesso à proteção da posse pela via dos interditos.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, v. X. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1983, p. 62.
SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis, 6ª ed. São Paulo : RT, 2005, p. 76.
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião, 3ª ed., v. 1. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 671.
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião, 3ª ed., v. 1. São Paulo : Saraiva, 2003, p. 674.
ALVES, José Carlos Moreira. Posse – estudo dogmático, 2ª ed., vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 462-463.
LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado, coord. Ministro Cezar Peluso, 2ª ed. Barueri : Editora Manole, 2008, p. 1.092.
ROCHA, José de Moura. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupação", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977, p. 471.
Idem, p. 472.
SODERO, Fernando Pereira. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupante", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977, p. 489.
Semelhantemente, portanto, aos critérios citados para identificação das "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios’".
Lei 4.504/64.
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ROCHA, José de Moura. Enciclopédia Saraiva do Direito, verbete "ocupação", v. 55. São Paulo : Saraiva, 1977, p. 471.
ALVES, José Carlos Moreira. Posse – estudo dogmático, 2ª ed., vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 457.
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, v. XI. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1983, p. 117.
ALVES, José Carlos Moreira. Posse – estudo dogmático, 2ª ed., vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 465.