1.Os "ocupantes" no artigo 213 da LRP
Ao tratar do procedimento de retificação administrativa do registro imobiliário, a Lei 6.015/73, com a redação dada pela Lei Federal 10.931/04, estabelece que nas retificações que implicarem em inserção ou alteração de medida perimetral, de que resulte ou não alteração de área, dentre outras providências deverão os confrontantes anuir ao pedido. No parágrafo 10 do artigo 213 prescreve-se que "entende-se como confrontantes não só os proprietários dos imóveis contíguos, mas, também, seus eventuais ocupantes".
Quanto aos "proprietários" não parece haver maiores dificuldades: são os que figuram no fólio real como titulares do direito real de propriedade. Como se sabe, no Brasil a propriedade se adquire nas transmissões inter vivos pelo registro do título, como se vê do artigo 1.245 do Código Civil atual, e mesmo as aquisições causa mortis e os atos declaratórios, como a usucapião, são atraídos para o registro para efeitos de oponibilidade erga omnes e disponibilidade (artigo 172 da Lei de Registros Públicos). É certo que há algumas nuances nesse tema, mas delas não nos ocuparemos agora, por não serem o objeto deste trabalho.
Mas quem seriam os "ocupantes"? Maria Helena Diniz nos dá algumas indicações em seu Dicionário Jurídico, definindo ocupante nos seguintes termos: "1. Aquele que se encontra na posse de terras públicas. 2. O que se apossa. 3. Ocupador. 4. Aquele que ocupa imóvel rural, explorando-o mediante o exercício de atividade agrária. 5. Aquele que se apodera de coisas abandonadas ou não pertencente a ninguém" 1.
Lendo com vagar as definições acima referidas, penso que nenhuma delas se ajusta com clareza à ratio do artigo 213, seja porque ou vinculam a idéia de "ocupação" à de posse, seja porque na última delas, de número 5, também restringe o conceito aplicando-o apenas às coisas abandonadas ou às res nullius.
O termo é frequentemente usado com relação a imóveis públicos, e isto porque a idéia de "posse" não se coaduna com a natureza e regime jurídicos desses bens, que não são suscetíveis de usucapião. É nesse sentido, por exemplo, que a Lei Federal 11.481/07 usa o termo, como se vê das alterações feitas na Lei 9.636/98. No entanto, creio que salta aos olhos, até intuitivamente, que esse sentido restritivo do termo não atende ao escopo do artigo 213 da LRP, sob comento.
No direito agrário, o termo indica, genericamente, "a pessoa que ocupa um imóvel rural, explorando-o com base em atividade agrária que entender conveniente. Não tem qualquer título que legitime a detenção da terra. Apenas a sua presença física e a exploração agrária, quando existir esta, ou mineral" (destaque meu) 2.
O vocábulo também é utilizado em diversas outras situações. A Constituição Federal, por exemplo, refere que são bens da União as terras tradicionalmente "ocupadas" pelos índios, no seu artigo 20, inciso XI, e no parágrafo segundo desse mesmo artigo estabelece que a "ocupação" das faixas de fronteira deve ser regulada por lei. Também traz prescrição acerca da "ocupação" do solo urbano no artigo 30, VIII, e ao tratar da Administração Pública também faz referência aos "ocupantes" de cargos públicos (artigo 37). Trata também da "ocupação temporária" de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública (artigo 136, II).
Ainda sobre as terras ocupadas pelos índios, no artigo 231 a Constituição dá algumas pistas do sentido e alcance dessa expressão. No parágrafo primeiro são estabelecidos critérios para identificar quais seriam essas terras, dos quais destaco dois: são aquelas habitadas em caráter permanente e as utilizadas em atividades produtivas. E mais: a Constituição diferencia ocupação de posse, porque esta última é efeito da primeira, como se vê do parágrafo segundo do artigo sob comento. E a posse não é o único efeito, pois a ocupação também gera aos índios direito de usufruto exclusivo sobre as riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes.
Em mais uma diferenciação dos tempos "ocupação" e "posse", estabelece o parágrafo sexto do referido preceptivo constitucional que são nulos e extintos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras. Noutros termos: citou aqui a Carta Magna três modalidades distintas de apropriação: a ocupação, a posse e o domínio.
No direito civil, na verdade, o termo sob comento refere-se à aquisição originária de coisas móveis, conforme se vê do artigo 1.263 do Código Civil. No entanto, no artigo 1.313 encontramos a expressão "ocupante" referida a bem imóvel. Nesse artigo disciplina-se que "o proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio [...]" (destaque meu). Portanto, fica positivada a possibilidade de haver "ocupante de imóvel" no âmbito do direito civil. Comentando este artigo, Francisco Eduardo Loureiro utiliza o termo como sinônimo de "possuidor", estendendo a regra também ao detentor 3.
Contudo, penso ser muito significativa a alteração da redação do artigo 587 do Código Civil de 1916, que trazia disposição semelhante mas referia-se apenas ao dever do "proprietário" permitir o acesso ao vizinho. O novo caderno civilista, então, introduziu neste dispositivo a expressão "ocupante".
Desde já tenho como absolutamente necessário, porém, estabelecer um discrímen entre essa ocupação de bem imóvel e a ocupação referida no artigo 1.263 do Código Civil, atinente a bens móveis, ao menos em um aspecto: ocupação não é usucapião. Isso salta aos olhos pela simples circunstância de que esses dois institutos vêm regrados em seções distintas no Código Civil, inclusive para coisas móveis, como se vê dos artigos 1.260 e 1.263. Ocorre que a ocupação, no artigo 1.263, é forma originária de aquisição, assim como a usucapião, mas, diferentemente desta, prescinde de qualquer lapso temporal. A dicção do artigo citado prescreve que quem se assenhorear de coisa sem dono "para logo" (rectius: imediatamente) lhe adquire a propriedade. Essa idéia é incompatível com o regime jurídico dos bens imóveis, que estão sujeitos à prescrição aquisitiva apenas após o decorrimento de certo lapso temporal, aliado a alguns outros requisitos. Assim, José de Moura Rocha averba que ocupação não é forma de aquisição de bens imóveis, de sorte que "imóvel que seja apropriado, embora tenha sido abandonado pelo seu proprietário, para ser ocupado (tecnicamente: adquirido), só por posse e prescrição ou usucapião" 4.
No Parecer CG 326/2004-E, publicado no DOE de 26.01.2005, a questão não chegou a ser agitada, havendo um pressuposto, como se percebe da leitura, de que "ocupante" é sinônimo de "possuidor". Parece-me que ao normatizar o tema, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo claramente associou o termo "ocupante" à idéia de posse. Essa a ilação extraída do item 124.9 do capítulo XX das "Normas de Serviço" daquele órgão censório-fiscalizatório, que em sua alínea "c" estabelece que "sendo os proprietários ou os ocupantes dos imóveis contíguos casados entre si e incidindo sobre o imóvel comunhão ou composse [...]". Os destaques são meus, para patentear que há dois termos anteriores (proprietários e ocupantes) relacionados a dois termos posteriores (comunhão e composse).
Benedito Silvério Ribeiro também afirma que a ocupação, referida a bem imóvel, se equipara à posse 5.
O tema não é de somenos importância, porque de sua exata compreensão extrairemos quem deve ser notificado para manifestar-se no procedimento de retificação, as hipóteses em que será possível dispensar a notificação, e ainda quem tem legitimidade para impugnar o pedido de retificação.
Se aliarmos singelamente o significado de "ocupante" à idéia de "possuidor", teremos inevitavelmente que enfrentar algumas conseqüências. O tema ganha relevância também diante da possibilidade do Oficial realizar diligências no imóvel para constatar a sua situação em face dos confrontantes (artigo 213, parágrafo 12, da LRP). Se eventualmente o Oficial, nesta diligência, identificar a presença de possuidores nos imóveis lindeiros, a anuência de quais deles terá relevo ou não para o deferimento do pedido?
Daí porque tentarei nas linhas seguintes arrostar os corolários dessa proposição, para no final verificar se não devemos buscar um novo sentido e alcance para o termo sob comento.
2. Posse
O artigo 1.196 do Código Civil disciplina que "considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade".
Como é cediço, há duas teorias tradicionais sobre a posse: a subjetiva, elaborada em Savigny, e a objetiva, desenvolvida por Ihering. Para a primeira os elementos da posse são o animus e o corpus, entendido este último como o poder físico exercido pela pessoa sobre a coisa, ou o poder de disposição imediata sobre a mesma. Já o animus é a intenção de ter a coisa como sua (animus domini). Para Savigny, portanto, haverá posse se houver o elemento físico (corpus) somada à vontade de ter a coisa como sua (animus domini), portando-se como proprietário (affectio tenendi).
Na teoria subjetiva, se não houver o animus domini estaremos diante de mera detenção. Quem mantém a coisa em seu poder em nome de outrem é detentor. É importante ressaltar como relevante para o tema que ora estudamos que, para Savigny, o locatário e o comodatário, por exemplo, seriam, então, meros detentores, e não possuidores.
Ihering, a seu turno, e como esclarece Francisco Eduardo Loureiro, explicitou que corpus é "a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, é a conduta de quem se apresenta com relação semelhante à do proprietário (animus domini), com ou sem apreensão da coisa. Pode, portanto, haver posse sem contato ou poder físico entre a pessoa e a coisa. Lembre-se de que o proprietário exerce as prerrogativas do domínio, muitas vezes sem o contato físico ou material com a coisa, como por exemplo a locação ou o empréstimo da coisa a terceiros. O mesmo, portanto, ocorre com o possuidor, porque ele age como proprietário" 6.
É importante distinguir a idéia de animus nas duas teorias: para a subjetiva trata-se da intenção de vir a ser dono; para a objetiva é apenas proceder como procede o proprietário. Noutros termos: a teoria de Ihering chama-se "objetiva" justamente porque dispensa qualquer perquirição sobre a intenção do agente.
Conforme explicita Francisco Eduardo Loureiro, o "animus está intimamente ligado ao corpus, porque é extraído da conduta visível do possuidor. É o que aparece perante terceiros (aparência de dono), pouco importando o simples desejo não ostensivo do possuidor. Para caracterizar a posse, basta examinar o comportamento do agente, independentemente de uma pesquisa de intenção" 7.
Assim, para Ihering, posse é a visibilidade do domínio, porque normalmente o proprietário é possuidor, daí que possuidor é aquele que aparenta ser o proprietário. Nesse sentido, na teoria objetiva o animus não entra como elemento para caraterização da posse, que se verifica se presentes o corpus mais a affectio tenendi. Daí sua celebre afirmação, no sentido de que a posse é a "exteriorização da propriedade" 8.
Com isso, temos também nas duas teorias uma distinção bastante significativa do conceito de detenção. Na teoria subjetiva, se houver o corpus mas não houver o animus, estaremos diante da figura da detenção. Como corolário disso, para Savigny então a posse é a detenção mais o animus domini. Já para Ihering, não se distingue a posse da detenção em razão de um animus específico, mas sim pela incidência de dispositivo legal que retira da posse certos efeitos, degradando-a (no nosso caso, temos os artigos 1.198 e 1.208 do Código Civil atuando no sentido referido por Ihering).
Nossa doutrina civilista vê no artigo 1.196 (e em seu correspondente artigo 485 do Código revogado) a adoção entre nós da Teoria Objetiva de Ihering, ainda que alguns dispositivos pareçam fazer concessões à Teoria Subjetiva.
Em face da sujeição do detentor, creio ser desnecessário aprofundar aqui a idéia de que o conceito de "ocupante" referido no artigo 213 da Lei de Registros Públicos não abrange a detenção.
3. Posse direta e posse indireta
Corolário da adoção da Teoria Objetiva de Ihering é a admissão de que o possuidor, que se comporta como proprietário, pode utilizar a coisa diretamente ou pode cedê-la a terceiros. Daí falar-se em posse direta e em posse indireta. Isso implica em admitir-se a existência de duas posses simultâneas, ou dois possuidores: o possuidor "indireto" é o que cedeu o uso da coisa. Já o que recebeu a coisa em razão de relação jurídica obrigacional ou real, mantendo então disposição física imediata sobre a coisa, é o possuidor "direto". Veja-se que o possuidor indireto, embora despojado dessa disponibilidade física imediata, continua portando-se como proprietário, daí concluir-se que mantém-se na condição de possuidor.
Aqui temos, portanto, que o locatário, o arrendatário e o comodatário exercem posse direta sobre a coisa, mantendo o locador, o arrendador e o comodante a posse indireta. Perceba-se que o conceito de "posse direta" não se confunde com o de "detenção", porque enquanto o detentor é subordinado ao terceiro, agindo sem independência, o possuidor direto vale-se da posse em proveito econômico próprio, com alto grau de independência, malgrado tenha o dever de restituição futura da coisa.
No entanto, de acordo com o escólio de Moreira Alves, há uma graduação entre o direito do possuidor direto e do indireto: embora ambos possam se valer dos interditos, apenas em favor do segundo corre o prazo da prescrição aquisitiva, de sorte ser possível afirmar que o direito do possuidor indireto (que age como proprietário) é superior ao direito do possuidor direto (que reconhece a supremacia da posição do possuidor indireto). Afirma este autor, falando sobre a possibilidade do desdobramento sucessivo da posse, que "a posição do possuidor indireto em grau mais elevado é diversa da dos demais, pois apenas ele não reconhece a existência de posse superior à sua, tendo, portanto, posse própria (Eigenbesitz), o que lhe possibilidade, se não for proprietário da coisa, vir a adquirir o domínio sobre ela por usucapião, preenchidos os requisitos deste. O mesmo não ocorre com os demais possuidores indiretos de graus mais baixos, por terem apenas posse não-própria (Fremdbesitz), uma vez que não possuem a coisa como sua, tanto assim que reconhecem, em virtude da relação de que decorreu o desdobramento da posse, que os possuidores de graus superiores ao seu têm posse superior à que lhe compete" 9.
O fato do possuidor direto poder exercer os interditos mesmo em face do possuidor direto (artigo 1.197 do Código Civil) em nada muda a conclusão acima, até porque também é possível a situação inversa (o possuidor indireto defender sua posse contra o possuidor direto).
Ressalte-se também que a posse direta é uma posse "derivada", posto que o possuidor direto a recebeu do possuidor indireto. Daí que a posse direta não é ad usucapionem 10 . Como quer Ihering, vê-se que o locatário, o comodatário, o arrendatário, o usufrutário, etc, não se comportam como proprietários, porque sua posse tem uma causa cujo caráter não pode ser mudado por eles mesmos, como prescreve o artigo 1.203 do Código Civil, a menos que surja outra causa possessionis, mas, neste caso, haverá a aquisição de posse nova, como ensina Pontes de Miranda, ao afirmar que "não pode quem possui como possuidor mediato fazer-se possuidor imediato, ou vice-versa, nem o que possui por certa posse mediata passar, a seu talante, a possuir por outra posse mediata, nem o que possui por posse imediata como usufrutuário, usuário, locatário, credor pignoratício, mandatário, passar a possuir por posse imediata de outra espécie. Se advém outra causa, não há mudança; há perda de uma posse e aquisição de outra" 11. Nesse sentido a lição de José Carlos de Moraes Salles, que afirma que as pessoas acima referidas não possuem com "animus dominis porque, em virtude da ´causa da posse´ se torna impossível possuírem a coisa como proprietários" 12.
Isto porque, na lição de Benedito Silvério Ribeiro, para que se "caracterize a prescrição aquisitiva, ou simplesmente usucapião, torna-se necessária a convergência de vários requisitos (res habilis, titulus, fides, tempus e possessio)" 13. Esta última, a posse, fica afastada se "ela começou em razão de um contrato (locação, comodato, etc)" 14.
Além disso, há outros complicadores na identificação da posse direta, já que, como lembra José Carlos Moreira Alves, "a posse direta não deriva propriamente da indireta", porque para "que se dê o desdobramento da posse em direta e indireta, é necessário apenas que ele decorra de uma relação jurídica (válida, ou não), ou fática, preexistente", concluindo, com arrimo na lição de Pontes de Miranda, que a posse imediata é posse direta da coisa pelo que não é dono da coisa, e não, necessariamente, posse direta da coisa em nome de alguém", e ainda, sobre o possuidor direto, afirma logo na sequência que "a posse direta é sempre posse não-própria, pois o possuidor direto reconhece no indireto (ou nos indiretos) posse superior à sua" 15.
Considero que os elementos acima apontados afastam o possuidor direto do conceito de "ocupante" do artigo 213 da Lei de Registros Públicos.
4. Posse justa
De acordo com o artigo 1.200 do Código Civil, é justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.
Estes aspectos não têm nenhum reflexo na identificação do "ocupante" que deve manifestar-se quanto ao pedido de retificação. Não cabe ao registrador, à evidência, perquirir sobre a presença ou não de posse injusta, até porque, como bem ressalta Francisco Eduardo Loureiro, "a posse é injusta em relação àquele de quem foi havida por meio ilícito. Em relação a terceiros a posse é justa, pela simples razão de que, contra eles, nenhum ato ilícito se praticou. Dizendo de outro modo, os vícios da posse só podem ser argüidos pela vítima, a quem cabe a faculdade de reaver a coisa pela autotutela ou pelos interditos possessórios" 16.
É bom ressaltar também que "posse precária" não é sinônimo de "posse direta". A posse neste último caso é justa. Ela só se tornará precária se houver inadimplemento da obrigação de restituir a coisa.
Por derradeiro, de se lembrar também que atos de mera permissão ou tolerância não induzem posse (artigo 1.208).