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Igualdade e raça.

O erro da política de cotas raciais

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Agenda 01/02/2009 às 00:00

A tentativa de promover a igualdade partindo-se de princípios equivocados resulta, na realidade, na promoção da desigualdade e do ódio racial, institucionalizando o que a Constituição repudia.

1 - Igualdade e raça: o erro da política de cotas raciais

Através da criação de mecanismos de facilitação da entrada de afro-americanos, indígenas e seus descendentes nas universidades públicas, por meio da criação de um número de vagas nos cursos por elas oferecidos exclusivamente para essas pessoas, o Estado brasileiro, copiando uma solução dos Estados Unidos da América para um problema norte-americano, deu início a uma política de pretensa inclusão social e econômica das populações negras e aborígenes com o fim de diminuir as desigualdades vigentes entre estes e os de cor branca, incentivando, todavia, a discriminação racial.

A idéia central da política de cotas é estabelecer a igualdade material entre brancos, negros e índios. Por promoção da igualdade material, entenda-se a tentativa de diminuir as desigualdades sociais, traduzindo-se no aforismo tratar os desiguais na medida da sua desigualdade, a fim de oferecer proteção jurídica especial às parcelas da sociedade que costumam, ao longo da história, figurar em situação de desvantagem, a exemplo dos trabalhadores, consumidores, população de baixa renda, homossexuais, negros, menores e mulheres, dentre outros.

A criação de cotas como forma de inserção social ou econômica de grupos marginalizados ou discriminados socialmente nos meios de produção, via criação de vagas exclusivas para essas minorias ou grupos em universidades, empregos públicos ou em empresas particulares, faz parte da denominada ação afirmativa, também conhecida como discriminação positiva, que, na definição de Gomes (2001, p.6), são políticas públicas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicionais, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.

As ações afirmativas foram criadas nos Estados Unidos inicialmente como uma forma de enfrentamento da discriminação às minorias nas relações empregatícias e nas escolas. Após o término da Guerra Civil Americana e o fim da escravidão, diversas medidas jurídicas foram implementadas para que qualquer discriminação racial fosse proibida. São ratificadas: a Décima Terceira Emenda, em 1865, que proíbe a escravidão; a Décima Quarta Emenda, que trouxe o princípio do devido processo legal, proibiu a discriminação racial e considerou cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA, e a Décima Quinta Emenda, em 1870, que impede o cerceamento do voto por motivo de raça.

Todavia tais medidas não evitaram que diversos estados que compunham os EUA adotassem medidas segregacionistas, sobretudo os do sul, que lutaram na Guerra Civil em favor da manutenção da escravidão. Havia leis que exigiam lugares separados para negros e brancos, em cinemas, restaurantes e até mesmo em penitenciárias. Essa Doutrina ficou conhecida como separados mas iguais (separate but equal).

Embora possa parecer absurdo, a idéia encontrou amparo perante a Suprema Corte dos EUA a partir do julgamento do caso Plessy v. Ferguson, em 1896 [163 U.S. 537 (1896). Apud MENEZES, 2001,p.75].Plessy era um cidadão norte-americano que, apesar de ser aparentemente branco, era considerado negro pela legislação estadual, por ter ascendência negra. Ele foi preso durante uma viagem de trem no Estado da Louisiana, por ter se negado a se retirar da área reservada para pessoas brancas. Inconformado, ajuizou uma ação contra a empresa de trens e contra o Estado da Louisiana, afirmando que a Lei estadual violava as Décima Terceira e Décima Quarta Emendas. A Suprema Corte, porém, rejeitou os argumentos apresentados, afirmando que a Décima Terceira Emenda só proibia a escravidão e a Décima Quarta Emenda proibia a discriminação, e que a separação das pessoas num trem em função da sua raça, não significava que uma fosse inferior em relação à outra. Nas palavras do juiz Henry Brown: "Leis que permitem, e até exigem... a separação [das raças], em lugares onde houver possibilidade de elas entrarem em contato, não implicam necessariamente a inferioridade de uma raça com relação à outra." (HOFFER: 773. Apud MENEZES, 2001, p.76). O único a discordar dessa teoria foi o juiz Harlan, entendendo que a Décima Terceira Emenda tinha um alcance mais amplo, proferindo um voto que entrou para a história da Suprema Corte norte-americana, cuja passagem mais enfática merece ser lembrada: "A Constituição é daltônica, e não conhece nem tolera classificação entre os cidadãos." (MENEZES, 2001, p.76).

Somente em 1954, no caso Brown vs. Board Education of Topeka, a doutrina dos separados mas iguais foi revista. A decisão foi um marco na história da Suprema Corte dos EUA, declarando que as leis estaduais que estabeleciam escolas públicas diferentes para negros e brancos negavam aos estudantes da cor negra iguais oportunidades educacionais. A decisão da Corte foi tomada por unanimidade (9-0) e tais leis foram consideradas violadoras da Décima Quarta Emenda à Constituição dos Estados Unidos. Esta decisão pavimentou o caminho para a integração racial nos EUA e deu força aos movimentos pelos Direitos Civis.

A origem do caso se deu quando o reclamante Oliver L. Brown recorreu ao Judiciário para ver garantido o direito de sua filha, Linda Brown, estudar na escola Sumner Elementary, destinada exclusivamente aos brancos e a apenas sete quadras de sua casa, ao invés de ter que estudar na escola Monroe Elementary, destinada aos negros e que para chegar a ela, tinha que andar por seis quarteirões e tomar mais um ônibus que percorria mais 1,6 Km até o destino final. Brown alegou que, embora o estado proporcionasse escolas para os negros e brancos, havia na prática uma discriminação porque as escolas destinadas aos brancos eram mais bem localizadas e com acomodações e ensino melhores, implicando uma desigualdade de ensino e tratamento diferente em relação aos estudantes de escolas destinadas apenas aos negros.

O juiz Warren expressou seu entendimento de que a doutrina do separados mas iguais denotava o reconhecimento da inferioridade da raça negra, asseverando que:

"Não vejo como, no dia e na época de hoje, podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros. Fazer isso isto seria contrário às Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça." (Apud, MENEZES, 2001, p.82)

A finalidade da importação da idéia de cotas dos Estados Unidos da América é trazer uma solução para um racismo que lá era institucionalizado, a fim de resolver um problema que é mais de natureza econômica que ideológica ou institucional, pois a maior discriminação, como será demonstrado, se dá mais em virtude da posição social e econômica da pessoa do que em relação a sua cor no Brasil. Aqui, após a abolição, nunca houve lei alguma que promovesse barreira institucional a negros ou qualquer outra etnia. Ao contrário dos EUA, aqui não há preconceito institucionalizado ou enraizado contra orientais ou imigrantes de outras regiões das Américas, embora possam ocorrer discriminações indevidas por parte de pessoas, de forma isolada, assim como ocorre algum preconceito contra nordestinos nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, mas também, de forma isolada ou restrita a pequenos grupos, tais como "skin heads" ou dos denominados "carecas do ABC", que têm a intolerência como o seu princípio guia, aí não só contra negros ou nordestinos, mas contra homossexuais, judeus, entre outros.

Nos EUA, o racismo é de origem (como também no Brasil, mas de maneira muito menos explícita), além da discriminação pela cor da pele tradicional. Explica-se: uma pessoa será considerada negra (ou "xicano", ou índio, ou hispânico, ou "chino") apenas se sua ascendência for conhecida. Se esconder sua ancestralidade, não terá problemas. No romance A marca humana, de Philip Roth (tradução de Paulo Henriques Britto; Companhia das Letras; 454 páginas), é contada a estória do antes respeitado professor judeu Coleman Silk. Por ter supostamente ofendido dois estudantes negros e ter-se envolvido com uma faxineira semianalfabeta, ele é implacavelmente perseguido. Uma reviravolta desconcertante aguarda o leitor, porém, logo no segundo capítulo do livro. Descobre-se que Silk não é um judeu de Nova Jersey, mas um descendente de negros que, por ter a pele clara, passou por branco durante a vida inteira. Parece inverossímil, mas uma história semelhante veio à tona nos Estados Unidos em 1996, envolvendo o crítico literário Anatole Broyard. Nem seus filhos sabiam que ele era negro.

É notável, como nos EUA, não só os negros são marginalizados socialmente, havendo muitas cidades e bairros onde eles não podem morar. Há bairros destinados somente aos negros ou apenas aos chineses ou aos latinos, não ocorrendo tal fato no Brasil. A imagem de mobilidade social na sociedade norte-americana não é ilimitada, como se divulga, sendo as regras para a aceitação restritas: ter a cor, a orientação sexual, a origem, a profissão ou a crença "errada" joga o indivíduo à margem.

Sem desconhecer, neste trabalho, as chagas decorrentes da escravização e do racismo no Brasil, repita-se, não institucionalizado, a miscigenação - um orgulho nacional decorrente da ampla gama de imigrantes que povoaram este país – é posta de lado em virtude do reconhecimento oficial por parte do Estado de que esta Nação é formada por pessoas das raças branca, negra e índia, esquecendo-se dos amarelos, que vieram aos milhões no início do século XX.

De uma só vez, o Estado adotou duas idéias equivocadas. A primeira é a de que o fato de ter havido exploração de pessoas da cor negra por parte dos brancos justificaria a adoção de uma política de cotas, como forma de reparação por um mal causado e de promoção de ascensão sócio-econômica. A premissa adotada é falsa, pois a exploração e a escravidão foram decorrentes do uso do poderio econômico e militar em prol de um modelo econômico nascente, o Capitalismo, que exigia a alta produtividade com baixo custo, estando dentro do seu modelo de produção o uso da mão-de-obra escrava, principalmente a de africanos. O negro não foi escravizado por ser negro – embora tenham sido utilizadas razões teológicas e pseudocientíficas para justificar a escravidão -, mas pelo fato de a África fornecer a mão-de-obra necessária, mais abundante e de fácil captura, bem como possuir civilizações e culturas menos avançadas tecnologicamente, o que facilitou o seu domínio por parte do explorador europeu.

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Lovejoy (2002) apresenta o conceito de modo de produção escravista como fundamental para uma compreensão mais completa do funcionamento político, econômico e social da África - e também das colônias portuguesas nas Américas. Segundo sua definição, o modo de produção baseado na escravidão é aquele em que predominam: a mão-de-obra escrava em setores essenciais da economia; a condição de escravo no mais baixo nível da hierarquia social; e a consolidação de uma infra-estrutura política e comercial que garanta a manutenção desse tipo de exploração.

Não se pode olvidar, também, que havia escravos e senhores de escravos entre os próprios povos africanos, não sendo uma exclusividade o domínio do branco sobre o negro. Muitas tribos rivais faziam prisioneiros em conflitos e vendiam-nos para árabes e europeus. De fato, este foi um dos elementos chave responsável pela mercantilização dos povos africanos. Os povos mais frágeis eram capturados pelos chefes das tribos e vendidos por preços esdrúxulos aos europeus mercantilistas. A divisão da culpa recai, prioritariamente, sobre o europeu dominador e ambicioso, porém há de se admitir que os conflitos internos na África fomentaram a cisão e o enfraquecimento da resistência dos povos negros. Até hoje, além da chaga da escravidão, conflitos internos aliados à corrupção de governantes locais ainda são responsáveis por todo um contexto de miséria existente no continente africano.

O segundo grande erro é de que as pessoas são divididas em raças, uma concepção totalmente equivocada, originária do século XVIII. O fato de ser negro, índio ou descendente de quaisquer dessas raças, por si só, daria o direito a uma pessoa de adentrar numa universidade pública (ou num emprego público, como já há projetos em andamento), utilizando-se da reserva especial de vagas para indivíduos desta ou daquela raça específica. A tentativa de promover a igualdade partindo-se de princípios equivocados, errôneos, ultrapassados e falsos resulta, na realidade, na promoção da desigualdade (se o objetivo é promover a inclusão social e econômica, uma pessoa branca, mas pobre, teria suprimido o seu direito de frequentar uma universidade, pois sua vaga poderia ser ocupada por uma pessoa da cor negra, porém rica, o que prova que a desigualdade maior e mais excludente decorre das condições econômicas e não da cor da pele), do ódio racial pelo aumento dos preconceitos, institucionalizando o que a Constituição da República repudia.

A criação de critérios de natureza racial para definir quem tem ou não acesso aos serviços prestados pelo Estado viola um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Fere o princípio da igualdade, pois todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza (art. 5º ). Institucionaliza-se uma conduta que a Constituição define como crime, pois a prática do racismo constitui ilícito inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (art. 5º, XLII).

O Estado brasileiro institucionalizou a existência de raças – algo que, como se verá, é repudiado veementemente pela ciência – e com a oficialização da política de cotas procura extinguir o denominado "racismo velado", aquele que todos sabem que existe, mas o negam, alegando ser o Brasil um país miscigenado, transformando a miscigenação, de qualidade em defeito, pois esta serviria de suporte para o racismo, uma vez que a pessoa não poderia mais definir-se como mulato, moreno, cafuzo ou mameluco. Teria de se decidir entre ser branco, negro ou amarelo, conforme o seu critério ou de terceiro, após a análise do seu tom de pele, com fundamentos ou justificativas altamente subjetivos e despidos de qualquer valor científico.

O erro não é o estabelecimento de política de cotas, mas sim o critério usado para se definir quem são os beneficiários dessa política, que é o de raça. Não se discutem os benefícios trazidos por leis e políticas e que procuram incluir camadas da população que, por sua condição, têm dificuldades de acesso ao mercado de trabalho ou às escolas e universidades.

Negros, brancos, amarelos, pardos, índios ou aborígenes australianos devem ser tratados como indivíduos e vistos como tais. Não devem ser avaliados e nem julgados conforme a sua raça, credo, cor ou origem, nem conforme o grupo a que pertencem, mas sim como indivíduos portadores de características físicas, biológicas, genéticas e culturais diversas.

Conforme se demonstrará, estudos genéticos mais avançados provam que nos grupos continentais humanos existem níveis baixos de diferenciação genética entre eles, não fazendo sentido distinguir a espécie Homo sapiens do ponto de vista biológico. "Isso está relacionado não ao fato de que somos todos iguais, mas que somos todos igualmente diferentes." (PENA, 2008, p.39).

As novas descobertas genéticas alinham-se com o entendimento de que os direitos humanos aplicam-se a indivíduos e não a grupos, como já se expressou o juiz Anthony Kennedy da Corte Suprema dos EUA:

"No coração da garantia constitucional de igualdade de proteção, existe o mandamento de que o governo deve tratar cidadãos como indivíduos e não como componentes de uma classe racial, religiosa, sexual ou nacional." [KENNEDY, "Miller v. Johnson, 515 U.S., 900:91, (1995)]

A igualdade supõe o respeito ao indivíduo naquilo que tem de único, como a diversidade étnica e cultural e o reconhecimento do direito que toda pessoa e cultura tem de cultivar sua especificidade, contribuindo para o enriquecimento e a diversidade cultural da humanidade.

1.2.– A origem do conceito de raça

Atribui-se ao naturalista sueco Carl Linnaeus (1707-78) a criação do sistema de classificação da espécie humana em raças, na edição de 1767. No seu Systema Naturae, Linnaeus dividiu a espécie humana em quatro raças (além de uma quinta, mitológica e sem importância para este trabalho), qualificando-as com o que ele considerava suas características, porém, sem um critério científico seguro que fundamentasse a divisão (PENA, 2008). De acordo com Linnaeus, as raças humanas eram: Homo sapiens europaeus, branco, sério e forte; Homo sapiens asiaticus, amarelo, melancólico e avaro; Homo sapiens afer, negro impassível e preguiçoso; Homo sapiens americanus: vermelho, mal-humorado, violento.

Antes dessa classificação "científica", em 1684, na França, François Bernier emprega a denominação já no sentido mais moderno e para justificar as relações entre classes sociais,

"[...] pois utilizado pela nobreza local que se identificava com os Francos, de origem germânica em oposição aos Gauleses, população identificada com a plebe. Não apenas os Francos se consideravam como uma raça distinta dos gauleses, mais que isso, eles se consideravam dotados de sangue ‘puro’, insinuando suas habilidades especiais e aptidões naturais para dirigir, administrar e dominar os Gauleses, que segundo pensavam, podiam até ser escravizados. Percebe-se como o conceito de raça ‘pura’ foi transportado da Botânica e da Zoologia para legitimar as relações de dominação e de sujeição entre as classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que houvesse diferenças morfobiológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as classes." (MUNANGA, 2003).

Além das explicações denominadas "científicas", a teologia já se preocupava em explicar a existência de raças. A divisão dos homens em raças vem do mito bíblico de Noé (Gn 9, 21-27). Após o dilúvio, quando Noé e sua família já estavam em terra firme, o patriarca hebreu se embebedou com vinho e se deitou nu. Cam, a quem a Bíblia atribui a posse de Canaã, ao ver o pai despido e bêbado, zomba de sua situação. Noé fica sabendo do ocorrido e amaldiçoa o seu filho e os seus descendentes. Eis a explicação religiosa para a escravidão, embora não exista na Bíblia nenhuma referência à cor de Cam ou qualquer descrição de seus descendentes (PENA, 2008).

Outra justificativa religiosa para a escravidão é a de que os africanos escravizados eram ateus. Mas e se eles, escravos, tivessem se convertido ao cristianismo? Não havia problema. Os cativos poderiam ser mantidos em servidão porque, embora cristãos, eram descendentes de ateus (PENA, 2008; MUNANGA, 2003).

O que os Naturalistas dos séculos XVIII e XIX fizeram foi dar substrato científico ao conceito de raça, legitimando as idéias de superioridade de certos grupos de humanos em detrimento de outros. Ao erigir uma relação entre o biológico (cor da pele, tipo de cabelo, formato do crânio) e as características psicológicas, morais e culturais de determinadas raças, estabeleceram justificativas para a dominação de determinadas culturas ou povos sobre outros. Esses discursos fundados em uma pseudociência serviram mais para justificar e legitimar diversos sistemas de dominação racial do que para explicar a variabilidade genética humana. As concepções Naturalistas de raça deram suporte ao racismo pré-existente. O filósofo francês Voltaire (1694-1778), contemporâneo de Linnaeus, afirmou em seu livro Cartas Filosóficas (1773):

"A raça negra é uma espécie humana tão diferente da nossa quanto a raça de cachorros spainel dos galgos [...]. A lã negra nas suas cabeças e em outras partes [do corpo] não se parece em nada com o nosso cabelo; e pode-se dizer que a sua compreensão, mesmo que não seja de natureza diferente da nossa, é pelo menos muito inferior." (VOLTAIRE, apud PENA, 2008:14)

O texto supracitado apareceu 34 anos antes da publicação de Linnaues, que estabeleceu as diferentes raças, ou seja, o racismo não decorreu da invenção das raças, mas a antecede.

Vê-se, portanto, que o conceito de raça nada tem biológico, mas sim ideológico, que esconde uma idéia de poder e dominação. A síntese deste pensamento é o seguinte:

"A raça, sempre apresentada como categoria biológica, isto é, natural, é de fato uma categoria etno-semântica. De outro modo, o campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura global da sociedade e pelas relações de poder que a governam. Os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessa palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico." (MUNANGA, 2003).

A cor da pele ou o tipo de cabelo não definem tipos de raças diversas dentro da espécie denominada Homo sapiens, muito menos caráter ou qualquer outra característica física ou psicológica. A cor da pele e dos olhos, por exemplo, é definida pela concentração de melanina, bem como por fatores genéticos. O formato dos olhos, nariz, boca e estrutura facial dependem de um número muito restrito de genes e representam adaptações morfológicas superficiais ao meio ambiente, sendo, assim, decorrentes da seleção natural (Pena, 2008:29). São adaptações ao clima e outras variáveis ambientais da Terra.

A chamada "raça branca" tem menor concentração de melanina, o que define sua cor de pele e olhos mais claros que a negra, que concentra mais melanina e por isso tem tons de pele, cabelos e olhos normalmente mais escuros, estando a população de cor amarela numa posição intermediária.

"A cor da pele é determinada pela quantidade e tipo do pigmento melanina na derme. A melanina ocorre em dois tipos: feomelanina (cor vermelho e amarelo) e eumelanina (marrom escuro e preto). Tanto a quantidade quanto o tipo de melanina são controlados por apenas quatro a seis genes, dos quais o mais importante parece ser o gene do receptor do hormônio melanotrópico." (Sturm et al., 1998; Rees, 2003. Apud PENA, 2005, p.330).

Diante do grande número de genes que formam o genoma humano – cerca de 25 mil – tal número é incrivelmente pequeno (Pena, 2005).

Definir, portanto, se uma pessoa pertence a uma ou outra raça com base exclusivamente no tom da pele é um critério artificial. Os negros da África e os autóctones da Austrália possuem pele escura por causa da concentração de melanina. Porém "nem por isso são geneticamente parentes próximos" (MUNANGA, 2003). A COR DA PELE, PORTANTO, NÃO INDICA SE SÃO DA MESMA "RAÇA" OU NÃO. A cor da pele serve, apenas, para distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou asiático, mas quando se procuram diferenças raciais entre os genes dessas pessoas, que impliquem uma diferenciação racial, nada é encontrado.

Definir que um punhado de genes determina a aparência física de uma pessoa, estabelece suas características de inteligência, personalidade ou habilidade é um enorme erro.

Estudos em DNA demonstram que cada ser humano é geneticamente diferente, não existindo duas pessoas geneticamente iguais na face da Terra, exceto os gêmeos univitelinos, no entanto a variabilidade genômica interpopulacional é relativamente muito menor (Pena:2008). Explica-se: estudos do geneticista norte-americano Lewontin (1972) apontam que as diferenças entre os indivíduos de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças entre dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de negros haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, propensos ao câncer ou não, com proteção genética contra determinadas doenças ou portadores delas, da mesma forma que em um grupo de pessoas brancas. Ou seja, dentro de cada grupo, a diversidade de indivíduos é grande, mas ela se repete nos dois conjuntos, variando entre grupos apenas a cor dos olhos, cabelos, pele ou formato do nariz ou boca, mas isso decorrente da seleção natural já explicada.

Com isto, reitera-se a conclusão do geneticista mineiro Sérgio Pena (2008, p.39), de que não somos todos iguais, "mas somos todos igualmente diferentes." (Grifos do autor).

Raça, portanto, é um conceito cultural, produto da imaginação humana, sem valor científico. "As raças não existem em nossa mente porque são reais, mas são reais porque existem em nossa mente." (KAUFMAN, apud PENA 2008, p.5).

Se determinadas doenças ou características são mais recorrentes em populações de cor negra do que de cor branca, então isto quer dizer que há raças diferentes que possuem esta ou aquela característica? Isto é um demonstrativo da existência de raças? Tal pensamento é comum entre os leigos, mas não encontram amparo dentro da ciência. Veja-se, por exemplo, o caso da anemia falciforme, que atinge mais as pessoas negras e pardas que as brancas. Conforme Cyril (1980), anemia falciforme é uma das doenças genéticas decorrentes de anormalidades na estrutura ou na produção da hemoglobina, molécula presente nos glóbulos vermelhos que leva oxigênio a todas as partes do corpo. Na anemia falciforme, os glóbulos podem alterar sua consistência e seu formato, tornando-se rígidos e adotando a forma de foice. Nestes casos, podem também agrupar-se e formar tampões, dificultando a circulação sanguínea e, consequentemente, a oxigenação dos tecidos. Assim, as manifestações clínicas da doença falciforme são anemia crônica por destruição das hemácias (tipo hemolítico) e os fenômenos trombóticos muitas vezes acompanhados de dor de intensidade que pode ser muito variada, além de provocar palidez, dificuldades de respirar, batidas do coração aceleradas, infecções agudas, como meningite, inflamação do baço e derrame cerebral.

Sabe-se hoje que quem tem essa doença na África é também mais resistente à malária. Não por acaso, o gene da anemia falciforme apresenta maior frequência em algumas regiões do continente africano onde a presença do mosquito transmissor da malária é maior, fato definido pela seleção natural. "Assim, não se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidade de ter este gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com antepassados vindos de certas regiões onde o mosquito transmissor era numeroso." (KAMEL, 2006, p.45). O fato de os negros daquelas regiões da África serem portadores mais frequentes do gene da anemia falciforme não torna o gene exclusivo daqueles grupos. Se um indivíduo negro – portador do gene da anemia falciforme - se casa com uma branca e tem um filho portador da anemia, caso este filho se case com outra mulher branca e o seu filho também venha ser da cor branca, este menino (neto do primeiro indivíduo da cor negra) poderá ter o gene da anemia (KAMEL, 2006), provando, portanto, que não existem genes de doenças exclusivos desta ou daquela pessoa de determinada cor, não havendo que se falar em raças.

No Brasil, é comum associar a incidência da anemia falciforme ao fato de a pessoa ser negra ou parda. A anemia falciforme não está limitada às pessoas classificadas como negras no Brasil, mas encontra maior frequência neste grupo. Pessoas autoclassificadas como brancas podem ter herdado os genes e ter a anemia. O desconhecimento dos fatos, a falta de informação e o preconceito são fatores que incentivam o racismo e ajudam a manter a falsa idéia da existência de raças ou de que determinadas pessoas têm esta ou aquela característica em virtude de ser branca, negra ou amarela.

1.2.1- O conceito de raça e a origem do homem

Os mais recentes estudos científicos – paleontológicos ou genéticos – demonstram que o homem veio da África (CANN et al, 1987; BEHAR et al, 2008). Dados do Projeto Genográfico da National Geographic Society (BEHAR et al, 2008) indicam que pequenos grupos de Homo sapiens nômades, que viviam da caça e coleta de alimentos, vagavam isoladamente por toda a extensão territorial do continente africano. Há cerca de 70 mil anos, uma seca devastadora quase provocou a extinção da espécie humana, restando apenas cerca de 2.000 pessoas, que foram obrigadas a sair do continente africano em busca de melhores condições de vida. Com a melhora do clima, a expansão foi rápida (Pena, 2008).

Há cerca de 60 mil anos, o homem saiu da África e povoou a Ásia, a Oceania e a Europa e, por volta de 15 mil anos atrás, as Américas. Todos as pessoas que vivem fora da África são descendentes desse pequeno grupo de humanos.

Conforme o geneticista sueco Svante Pääbo "em uma perspectica genômica nós somos todos africanos, morando na África, ou em exílio recente de lá." ("The Mosaic That Is Our Genome". Em Nature, 421, pp. 409-412, 2003, apud PENA, 2008, p.47).

1.2.2 – Exemplos de como o conceito de raça é subjetivo

Diante das evidências genéticas e paleontológicas, fica impossível se sustentar a idéia de que raças existem, ou de que alguém merece ser tratado deste ou daquele modo em virtude da cor de sua pele. Como dizer a uma pessoa de cor branca, mas filho de mãe e pai negros, que ela não tem o direito de participar de uma seleção para entrada em algum curso de alguma universidade que mantém o sistema de acesso por cotas a estudantes negros ou índios, simplesmente por ele ser branco? Ela terá que mostrar as fotos e documentos dos pais para provar que é negro? Mas, e se a cor dela é branca, como poderá afirmar que é negra, sem incorrer em crime de falsidade ideológica ou material? Exigir um exame genético? Impossível, pois a genética aponta que não existem raças.

E se crianças gêmeas nascerem uma negra e outra branca, sendo os seus pais também de "raças" diversas? A criança negra teria direito à cota racial e a branca não, apenas pelo fato de ter nascido branca, embora um dos seus pais seja negro?

História bizarra aconteceu com os gêmeos Alan e Alex. No início de maio de 2007, o estudante Alan Teixeira da Cunha, de 18 anos, e seu irmão gêmeo Alex foram juntos à Universidade de Brasília (UnB) para se inscrever no vestibular. Visto que têm pele morena, eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema de cotas raciais. Desde 2004, a UnB e outras 33 universidades do país reservam 20% de suas vagas a alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no exame. Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram gerados no mesmo óvulo e, genética e fisicamente, são idênticos. Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se enquadram nas regras, já que seu pai é negro e a mãe, branca. Seria de esperar que ambos recebessem igual tratamento. Não foi o que aconteceu. Os "juízes da raça" olharam as fotografias e decidiram: Alex é branco e Alan não. Alan, que quer prestar vestibular para educação física, foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode se beneficiar do sistema de cotas. Alex, que pretende cursar nutrição, foi recusado.

A decisão da banca da Universidade de Brasília que determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o perigo de classificar as pessoas pela cor da pele – coisa que fizeram os nazistas e o apartheid sul-africano.

Kamel (2008,p. 51) traz um exemplo também absurdo:

"Tenho uma amiga cujo pai é negro assim como todos os ascendentes dele. A mãe é italiana, assim como todos os ascendentes dela. Como chamá-la apenas de afro-descendente? Por que lógica? Se alguma lógica existe, o correto seria chamá-la de ítalo-afro-descendente ou afro-ítalo-descendente, como preferirem. E como todos os pardos são, na origem, fruto do casamento entre brancos (europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser geneticamente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim, direito a cotas ou a outras políticas de preferência racial ou o prefixo "euro" os condenaria irremediavelmente?"

Todas as situações retrocitadas provam os erros que uma política de cotas pode causar. As definições por elas utilizadas são caricaturalmente racistas e ampliam aquilo que pretendem combater: o racismo.

No Brasil, onde a miscigenação é uma característica da população, "não há que se falar em brancos, negros ou pardos, mas apenas em brasileiros." (KAMEL, 2008, p.51).

Demétrio Magnoli (2008), comentando em um artigo para a revista Veja a política racial do atual governo do presidente Luís Inácio da Silva, discorre:

"Os estereótipos raciais clássicos, afundados na lagoa do senso comum, são um componente óbvio da rasa visão de mundo de Lula. Entretanto, o programa de racialização da sociedade brasileira conduzido por seu governo decorre de um frio cálculo político. O presidente quer conservar na sua ampla coalizão as ONGs racialistas, financiadas pela poderosa Fundação Ford. Em nome dessa meta, patrocina uma enxurrada de leis raciais com repercussões na educação, no mercado de trabalho e no funcionalismo público. No fim de seu segundo mandato, todos os direitos dos cidadãos estarão mediados e condicionados por rótulos oficiais de raça. Seremos ‘brancos’ ou ‘negros’ antes de sermos brasileiros. Eis aí a verdadeira mudança promovida pela era Lula: uma bomba social de efeito retardado que sua passagem pela Presidência deixa aos filhos e netos da atual geração." (MAGNOLI, 2008,p.22).

1.3 – O novo modelo de racismo

O modelo de raças baseado na pseudociência do século XIX era baseado mais em uma ideologia dominadora do que em fatos comprovados através de pesquisa. O novo modelo ou paradigma sobre a espécie humana vê o Homo sapiens dividido não em raças ou populações, "mas em seis bilhões de Indivíduos (sic), com graus diferentes de parentesco em suas várias linhagens genealógicas." (PENA, 2008, p.52). Tal paradigma é reforçado com a comprovação genética e paleontológica da origem única e recente da humanidade moderna na África, reforçando a já consagrada teoria da seleção natural de Darwin, de que os organismos vivos evoluíram gradativamente a partir de uma origem comum e se diversificam no tempo e no espaço, adaptando-se a meios hostis e em constante mutação.

O conceito de raça como categoria biológica foi desmontado pelas pesquisas com o DNA, no início da década de 70 do século passado, entretanto ainda permanece como modelo para diversas pessoas, transmutando-se em um novo conceito e criando um novo tipo de racismo construído com base nas diferenças culturais e étnicas. Munanga (2003) alerta que essa nova forma de racismo carrega um grande paradoxo: o de que os racistas e anti-racistas defendem a idéia de que se devem respeitar as diferenças culturais para a construção de uma política multiculturalista, mantendo cada grupo dentro do seu espaço, sem misturas.

"Se por um lado, os movimentos negros exigem o reconhecimento público de sua identidade para a construção de uma nova imagem positiva que possa lhes devolver, entre outros, a sua auto-estima rasgada pela alienação racial, os partidos e movimentos de extrema direita na Europa, reivindicam o mesmo respeito à cultura ‘ocidental’ local como pretexto para viverem separados dos imigrantes árabes, africanos e outros dos países não ocidentais." (MUNANGA, 2003).

O conceito de racismo foi reformulado com base nas diferenças étnica, cultural e religiosa, mas as vítimas desse "novo" racismo são as mesmas, pois as raças de ontem são as etnias de hoje, mantendo-se as idéias de exclusão e dominação criadas há mais de dois séculos. É o mesmo produto, porém, com novo rótulo. Os novos conceitos de etnia são agradáveis a todos os racistas e não-racistas, pois "constituem uma bandeira carregada para todos, embora cada um a manipule e a direcione de acordo com os seus interesses." (MUNANGA, 2003).

Sobre o autor
Élvio Gusmão Santos

Procurador Federal, Pós-graduado em Direito Tributário pelo IEC-PUCMINAS de Belo Horizonte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça.: O erro da política de cotas raciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2041, 1 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12281. Acesso em: 23 nov. 2024.

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