Entre os defensores da liberalização e as críticas proibicionistas: um caminho alternativo.
No trato da questão do porte de drogas para consumo pessoal existem três grandes posições que podem ser adotadas. Entre elas, pode-se dizer que existem duas antípodas, a primeira, dita proibicionista, que propõe a efetiva criminalização do tráfico e do consumo de drogas, numa verdadeira "guerra às drogas"; e a segunda, denominada abolicionista, propõe a legalização total das drogas, tanto para venda quanto para consumo.
Os defensores do abolicionismo e da liberalização das drogas possuem inúmeros argumentos. Dentro de um enfoque mais criminológico, reconhecendo-se o direito à diferença de pensamento, a seguir destacar-se-á os argumentos considerados mais relevantes dentre aqueles encontrados nas fontes consultadas. [52]
Os abolicionistas - salientando que o uso de drogas é uma "constante antropológica", ou seja, prática antiga na história da humanidade, que não deve ser nem exorcizada nem mistificada - partem do princípio de que todo o indivíduo tem o direito de se autodeterminar, podendo fazer uso daquilo que entender melhor lhe convém, no âmbito da sua privacidade, que lhe é garantida constitucionalmente.
Nesse diapasão, afirmam que a droga provoca danos apenas à saúde do usuário, não havendo qualquer lesão a outras pessoas ou à sociedade, de modo que o Estado não deve ser chamado a intervir, pois assim como a lei penal não pune o suicídio e a autolesão, não pode igualmente punir o porte de droga para uso pessoal. Já o dependente de drogas deve ser tratado pelo Estado como um doente que merece cuidados médicos e psicológicos, como hoje ocorre com os viciados em álcool e tabaco.
A latere, sustentam que o mercado negro do tráfico propicia a formação de um vultoso negócio clandestino, alimentado à custa de vidas humanas que são impelidas a um submundo de criminalidade. Por conseguinte, a simples legalização acabaria com todo o cortejo de malefícios que está no entorno desta clandestinidade, como, v.g., a violência dos traficantes e a adulteração criminosa das drogas, que provocam vasta perda de vidas humanas "inocentes".
A ilegalidade, ademais, estimularia a denominada "atração pelo fruto proibido", enquanto que a liberalização, embora a princípio possa ensejar uma procura maior, notadamente pelos experimentadores, no longo prazo tenderia a arrefecer o consumo, que perderia sua simbologia (a droga é vista como símbolo de "liberdade" e contestação à autoridade, quer familiar, quer estatal).
Entretanto, nem todos os abolicionistas almejam da mesma maneira a liberalização, pois muitos a circunscrevem às drogas leves, que consideram inofensivas, sublinhando a incongruência entre a admissibilidade legal do consumo do tabaco e do álcool e a proibição da maconha. Nesse sentido, destacam que a proibição total do uso, sem diferenciação entre drogas "leves" e "duras", acaba por favorecer o abuso das mais prejudiciais. Além disso, os defensores da liberalização das drogas leves defendem que, com legalização destas, se sobrariam recursos humanos e financeiros para o combate às "drogas pesadas" de uma forma mais eficaz.
Esses argumentos dos abolicionistas são submetidos à forte crítica proibicionista. [53]
Afirma-se, em relação ao suposto "direito natural" de se autodeterminar e à garantia constitucional da privacidade, que tais categorias jurídicas não possuem a amplitude de proteção invocada, pois a própria Constituição não prevê direitos fundamentais [direitos humanos positivados] absolutos, [54] pois todos estão sujeitos às restrições impostas pela convivência com outros direitos de igual dignidade e pelo interesse público, que há de preponderar sobre o interesse particular, sustentando, ademais, que os direitos e garantias individuais existem para assegurar ao homem espaço para o integral desenvolvimento de sua personalidade, sem interferências do Estado, e não para acobertar comportamentos nocivos à coletividade e aos outros cidadãos, pois o portador da droga raramente é indiciado pelo uso domiciliar. Ao reverso, as apreensões policiais ocorrem geralmente em locais públicos, como ruas, parques, bares e etc. Ou seja, aquele comportamento inicialmente inofensivo, adstrito ao espaço doméstico, geralmente expande-se, adquirindo significação social, pelo risco que a difusão do uso das drogas em lugares públicos provoca.
Com relação aos dependentes, sustentam que os doentes mentais que praticam fatos típicos e ilícitos ficam sujeitos às medidas de segurança estabelecidas na legislação penal, não havendo razão para excluir os toxicômanos.
Por outro lado, afirmam que a comparação com a autolesão é imprecisa, porquanto o que a lei incrimina não é o uso (que seria uma forma de autolesão) e sim a conduta de adquirir, guardar ou trazer consigo os entorpecentes para consumo pessoal, em virtude do perigo a que expõe a saúde pública, como visto em linhas anteriores. Ademais, conquanto o Direito Penal brasileiro não tipifique a autolesão ou o suicídio, considera ilícitas tais condutas quando pune o partícipe do suicídio alheio (art. 122 do CP) e a autolesão como fraude contra seguradora (art. 171, § 2.°, V, do CP) ou contra o serviço militar (art. 184 do CPM).
À luz da criminologia, os defensores da manutenção da proibição legal, quer do tráfico, quer do consumo, tanto de drogas leves como de drogas pesadas, respondem que a abolição não diminui nem o tráfico nem o consumo, conforme demonstraram experiências postas em prática em alguns países europeus,que, por isso mesmo, regrediram em relação ao laxismo que haviam admitido. [55]
Nesses países, as experiências de liberalização teriam feito aumentar o tráfico, não conseguindo diminuir o consumo, pois restaram facilitadas a iniciação e a propagação da prática. E, mesmo quando se pretendeu a legalização apenas das drogas "leves", acabou-se também por favorecer o desenvolvimento da venda das drogas "duras", dando razão aos defensores da "teoria da escalada", para quem o uso das drogas "leves" leva necessariamente ao uso também das "pesadas".
Para além disso, sustentam que os abolicionistas do tráfico e do consumo não resolveram nenhum dos graves problemas que andam associados às drogas, pois seus argumentos não impedem que a adulteração das drogas continue, tampouco apontam quem as venderia (os atuais "vendedores" ou seriam vendidas em "drogarias"), não sendo cabível a comparação com o tabaco e o álcool, cujos efeitos na saúde individual e pública não se assemelham aos das outras drogas ilícitas, que são muito toxicomanogénicas.
A despeito da possível procedência dessas críticas, o fracasso da estratégia proibicionista adotada em nosso país é conclusão que, parafraseando o saudoso Nelson Rodrigues, somente pode ser negada pela má-fé cínica ou pela obtusidade córnea, de modo que, dentre todas reflexões e dúvidas que os posicionamentos antípodas podem despertar em uma abordagem científica isenta de preconceitos (na medida em que a nossa faticidade possibilita), certamente a uma certeza há que se chegar: em nosso país urge uma nova orientação político-criminal no trato das drogas.
Chegar-se a um consenso sobre essa nova orientação, todavia, é matéria impossível, pois, como diz Hassemer, "em nenhum outro tema de interesse público nossa cultura do debate nos escapa tão completamente e com tanta habilidade como as drogas, nenhum outro campo está tão minado por preconceito e desconfianças pessoas contra que pensa diferente". [56]
Em que pese essa dificuldade, na Europa surgem iniciativas que, não se coadunando com proibicionismo, tampouco com o abolicionismo, são dignas de encômios. É a denominada política de "redução dos danos", como medidas de prevenção, dissuasão, tratamento de saúde e reinserção social.
Exemplo desse modelo é a Lei 30/2000, de Portugal, pela qual o porte para consumo pessoal de drogas deixou de ser punido como crime e passou a ser tratado como "contra-ordenação" (art. 2º), uma espécie de infração administrativa avaliada e punida pela "Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência - CDT" (art. 5º), composta por um membro do governo local, que é o responsável pela coordenação da política da droga e da toxicodependência, um membro jurista designado pelo Ministro da Justiça e outro membro designado pelo Ministro da Saúde, dentre médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo adequado na área da toxicodependência.
O principal critério a ter em conta na hora de distinguir uma "contra-ordenação" de um crime é a quantidade de substância ilícita encontrada na posse do indivíduo.
As quantidades de referência estão estimadas em o equivalente para 10 dias de consumo, para todas as substâncias. A Lei 30/2000 remete para a Portaria nº 94/96, que em seu art. 9º estipula as doses médias diárias individuais para várias substâncias ilícitas. Assim, as quantidades de referência são 10 vezes as doses diárias, nomeadamente para as drogas mais comuns:
Quantidades de referência |
|
Cocaína |
2g- Cloridrato |
Speed |
1g |
MDMA |
1g |
LSD |
500µg |
Cannabis |
5g-Haxixe (resina) |
Opiáceos |
1g-Heroína e Metadona |
Abaixo destas quantidades é normalmente considerado "contra-ordenação"; acima destas quantidades aumenta a possibilidade de ser considerado crime. [57]
À guisa de encerramento, cumpre consignar que por meio da explanação feita, reputa-se que foi atingido o objetivo deste trabalho: responder as interrogantes lançadas em seu pórtico, pois demonstrou que, a despeito dos respeitáveis entendimentos em sentido contrário, no Brasil, conquanto o porte de drogas ainda seja considerado pela Lei 11.343/06 um "crime" (rectius infração penal de menor potencial ofensivo), referida lei, na prática, afastou a possibilidade de "castigo".
De fato, a atual lei antidrogas, conquanto possa ter sido recebida com alvíssaras pelos defensores da liberalização, insiste em associar a dogradição ao crime, enquanto, objetivamente, consiste em nada louvável manejo simbólico do Direito Penal, pois ao tornar inexeqüível a punição e não prever meios concretos de educação e tratamento, acaba por estimular, ainda mais, a prática que (supostamente) pretendeu combater, com graves prejuízos para a sociedade brasileira, que permanece alheia a essa política criminal "ilusionista".
Vale dizer, mirando o público externo (leia-se eleitores e, quiçá, a comunidade internacional) o discurso oficial é que no Brasil a posse de drogas para uso pessoal é crime punido de forma "humana" pela legislação. Entretanto, para aqueles que labutam dentro do sistema de justiça, seja penal, cível ou menorista, a sensação transmitida é que tanto o Poder Legislativo quanto o Executivo omitem-se, não tratando o assunto com a necessária seriedade.
Por outro lado, em que pese essas conclusões, há que se deixar bem claro que no trato da questão do uso de drogas não há respostas certas ou erradas: existem escolhas. Todavia, de todas as opções possíveis, a do legislador brasileiro foi a pior, pois ele "decidiu não decidir", ficando "em cima do muro", adotando uma posição convenientemente "equívoca", para se usar a expressão do STF.
Assim sendo, somente nos resta esperar que, oxalá, chegue logo o dia em que o Brasil torne-se um país sério, em que os nossos legisladores e governantes tenham suficiente coragem e discernimento para descriminalizar, de fato e de direito, essa conduta, trasladando-a para o mundo do Direito Administrativo, quando não mais será tratada como um problema policial ou criminal, e sim das autoridades administrativas e dos profissionais especializados na área da toxicodependência, como fez a nossa pátria-mãe. E mais, que essa lei não venha solteira, mas acompanhada de uma política pública ampla, efetiva e adequada ao trato do assunto, e que preveja meios concretos e claras definições das atribuições de todos órgão governamentais e da a sociedade, não apenas da Polícia ou da Justiça.
Notas
- Em verdade, como destaca Hassemer, o caráter de simbólico Direito Penal é reconhecido mais na "qualidade objetiva da norma" do que na "vontade do legislador", pois na maioria das vezes, em virtude de acordos políticos entre lideranças ou por falta de conhecimentos aprofundados sobre a matéria que está sob sua apreciação, nem mesmo ele tem clareza do seu voto (intenção). Vezes outras, conquanto tenha bem claro o que pretende fazer, ele dissimula e esconde a sua vontade entre o "realmente pretendido" e o "realmente realizado" (HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2008, p. 219).
- Segundo Vicente Greco Filho, fonte dessa consulta histórica, já no art. 89 das Ordenações Filipinas a legislação pátria revela preocupação com a questão das drogas (GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 41).
- Na seqüência, preferimos usar a palavra drogas, pois essa expressão foi a opção da nova Lei 11.343/06, entretanto até então a expressão utilizada na legislação e, por conseguinte, na doutrina era "tóxicos".
- "Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte ) a 50 (cinqüenta) dias-multa."
- "Art. 19. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se, por qualquer das circunstâncias previstas neste artigo, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."
- A partir das classificações elaboradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização das Nações Unidas (ONU) (disponível em http://www.imesc.sp.gov.br/infodrogas/Usuar.htm, acesso em 30 de janeiro de 2008) é possível a seguinte classificação das pessoas que utilizam substâncias estupefacientes: o "usuário leve ou ocasional", que é o indivíduo que utiliza drogas eventualmente, se o ambiente for favorável e a droga disponível; o "usuário moderado" que, por sua vez, é o indivíduo que faz uso freqüente de droga, via de regra semanalmente, mas não diariamente e que, portanto, ainda "funciona" socialmente, não apresentando a compulsoriedade física e/ou psíquica do dependente; por fim, o "usuário pesado ou dependente" é o indivíduo que utiliza drogas diariamente, doente que vive pela droga e para a droga, quase que exclusivamente, rompendo os seus vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização, acompanhados eventualmente de decadência física e moral. Portanto, há que ser ter bem presente a grande diferença entre o usuário e o dependente. Enquanto o dependente é um doente que está subjugado pela droga, apresentando necessidade física ou psíquica de consumi-la, o usuário a consome por opção, não raro em momentos de lazer e descontração, mantendo íntegro o seu livre-arbítrio.
- Nesse sentido, por todos: TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal.5ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 82. Em sentido contrário, adotando o conceito bibartido de crime, segue a escola de René Ariel Dotti, para quem "a culpabilidade é muito mais um pressuposto da pena que um elemento do crime" (DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 339), seguida por vários autores pátrio de prestígio, como Damásio de Jesus, Frederico Marques, Mirabete e etc.
- Sustentou-se que o consumidor de drogas qualificadas de ilícitas continuou estigmatizado, ou como criminoso, ou como doente que deve sofrer uma pena ou obrigatoriamente se submeter a tratamento médico, sendo posto, indevidamente, sob a alternativa: "se é enfermo, não é livre; se é livre, é mau." (BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos de la actual política criminal sobre drogas, em: La actual política criminal sobre drogas – Una perspectiva comparada. Valencia: Tirant Lo Blanch. 1993, p. 19 e ss.).
- "O uso de entorpecente ou psicotrópico não foi incluído na legislação antitóxicos, sendo, pois, atípico o ato daquele que é surpreendido fumando maconha, aspirando cocaína, autoadministrando-se droga ou sendo injetado por outrem" (RT 577/352). Em sentido contrário: "Por derivação lógica, quem é surpreendido fumando "maconha" está a trazer a droga consigo, conduta esta que não pode ser considerada atípica, por integrar, expressamente, o rol do art. 16 da Lei nº 6.368/76. (Apelação Criminal nº 1.0637.02.014708-7/001, 1ª Câmara Criminal do TJMG, São Lourenço, Rel. Edelberto Santiago. j. 13.09.2005, unânime, Publ. 20.09.2005)." O STF, todavia, em uma das suas últimas decisões, seguiu a primeira orientação, como se pode ver na seguinte ementa: "Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa. 1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16 da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar - segundo a doutrina subjacente à lei - como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que "acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas" (Hungria). 2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso." (HC 79189 / SP Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Julgamento: 12/12/2000 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 09-03-200)
- Vicente Greco Filho destaca que a Lei 6.368/76 estava de acordo com a Convenção Única sobre Entorpecentes da Organização das Nações Unidas de 1961, onde se lia, em seu prefácio, a sensível preocupação com a saúde física e moral da humanidade. Esta Convenção foi ratificada pelo Brasil, sendo transmutada no Decreto 54.216/64. (GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 83).
- "Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo, porque é fato decisivo na difusão dos tóxicos. Já vimos ao abordar a psicodinâmica do vício que o toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno." (idem, p. 119)
- Nesse sentido, em 1984, a Declaração sobre a luta contra o narcotráfico e o uso indevido de drogas, também expedida pela ONU, alterou significativamente o entendimento daquela Organização a respeito do tema, pois em seu preâmbulo consignou que "comunidade internacional manifesta sua grave preocupação pelo fato de que o narcotráfico e o uso indevido de drogas constituem um obstáculo ao bem-estar físico e moral dos povos e, em particular, da juventude". Como se vê, esse conjunto de bens que se visou tutelar com o combate ao narcotráfico é bem mais amplo do que o conceito de "saúde pública". Daí que Ganzenmüller, Frigola e Escudero afirmam, acuradamente, que "(...) no obstante coincidir la mayoría de los autores y la jurisprudencia em que el bien jurídico protegido es la salud pública, em la actualidade, se itenta buscar um contenido más amplio que justifique la intervencción o exclusión del derecho penal em la incriminacion de las conductas contempladas, pues su existencia justifica la incriminacion de conducta concreta y la intervencion punitiva. Sin duda estamos ante um delito pluriofensivo, em que primando principalmente la proteciocio del bien jurídico a la salud pública, mediatamente se protegem otros bienes jurídicos, tales como la salud individual, la propriedad, la liberdad individual, etc (...)" Aliás, essa já era a antiga lição de Bernardino Gonzaga, que, ao comentar o revogado art. 281 do Código Penal, afirmava "o comportamento delituoso pode afetar inúmeros bens jurídicos: vida, integridade física, saúde, segurança da família, patrimônio, etc. deste conjunto, todavia, a lei destaca um certo bem – saúde pública, que é sempre atingido, e de modo mais próximo, pela liberdade no comercio de drogas, para colocá-lo no posto de objeto de proteção da figura criminosa." (apud SILVEIRA. Renato de Mello Jorge Drogas e Política Criminal. in Drogas, aspectos criminais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense. 2005, p. 33-35)
- GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos – Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 83.
- HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 228-229.
- Ao contrário do que foi amplamente divulgado na época, a Lei 10.402/02 não descriminalizou o porte de drogas para consumo pessoal, apenas não previu a pena privativa de liberdade, como se pode ler na Mensagem Presidencial nº 25/02 (disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/Mensagem_Veto/2002/Mv025-02.htm). Ainda, de acordo com a Lei 10.409/2002, tanto o dependente quanto o usuário sujeitar-se-iam à possibilidade de tratamento ambulatorial ou internação, exatamente conforme a Lei 6.368/76, ou seja, não houve alteração substancial quanto às referidas "medidas".
- Para o usuário, a grande alteração legislativa foi reflexa, pois, em virtude da pena fixada no art. 16, a partir da Lei 9.099/1995, que criou os Juizados Especiais Criminais, tornou-se viável a suspensão condicional do processo (artigo 89) e, desse modo, abriu-se a primeira perspectiva despenalizadora em relação à posse de droga para consumo pessoal. Posteriormente, com a Lei 10.259/01, que criou os Juizados Especiais Federais, a jurisprudência ampliou o conceito de infração de menor potencial ofensivo para todos os delitos punidos com pena até dois anos, permitindo que o referido delito, que passou para a competência dos juizados criminais, fosse objeto de transação penal (art. 76). A consolidação dessa tendência jurisprudencial adveio com a Lei 11.313/2006, que alterou o artigo 61 da Lei 9.9099/95, admitindo como infração de menor potencial ofensivo todas as contravenções assim como os delitos punidos com pena máxima não excedente de dois anos. Vale dizer, a Lei 9.9099/95 afastou, quase que completamente, a possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade ao usuário.
- Noticiados por Alessandro Baratta (BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos de la actual política criminal sobre drogas, em: La actual política criminal sobre drogas – Una perspectiva comparada. Valencia: Tirant Lo Blanch. 1993, p. 19 e ss).
- Utilizou-se os verbos no passado, porquanto as referências versam sobre o art. 16 da Lei 6.368/74, porém, na realidade esses entendimentos ainda perduram na vigência da Lei 11.343/06. Nesse sentido, por exemplo, é consolidada a jurisprudência da Turma Recursal do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, por todos: A nova lei de tóxicos não veio para abolir o caráter criminal das condutas do seu artigo 28. [porém] Quando ínfima a quantidade da droga apreendida, no caso, menos de 1g, agregada às circunstâncias que envolvem a conduta, resta presumido que o fato não tem repercussão na seara penal. Não ocorreu efetiva lesão à bem jurídico tutelado, enquadrando-se o fato no princípio da insignificância. (Recurso Crime Nº 71001358480, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Alberto Delgado Neto, Julgado em 03/09/2007)
- No Rio grande do Sul, o precursor dessa argumentação foi o Des. Milton do Santos Martins, como se pode ver no seu voto por ocasião do Incidente de Inconstitucionalidade AC 686062340. Entretanto, a argumentação não foi acolhida pela maioria, podendo-se extrair do voto do Des. Nério Letti, relator designado para o acórdão, as seguintes passagens: "(...) Ora essa conduta destrói valores de convivência, lança o viciado em nova espécie de conflitos, por isso examina-se a pena sob o ponto de vista individual, mas também numa projeção do social: quanto maior for o número de pessoas englobadas pela prática desse vício, maior o prejuízo social. O vício de drogas aumenta o número daquelas pessoas que ingressam numa faixa de improdutividade, de falta de assimilação das regras de convívio social, criando-se uma verdadeira sociedade diferenciada dentro da sociedade, de pessoas que não produzem e que podem evidentemente contribuir para cada vez mais criarmos uma sociedade amorfa, uma sociedade que não reage, que não tem interesse em progresso social, político, econômico, etc."."(...) Tudo isso me demonstra que o interesse social prevalece em relação ao interesse individual. Por esses motivos, não poderia decretar a inconstitucionalidade do art. 16, porque nele vejo uma forma de proteção do bem jurídico social, que é bem maior, bem mais avultado e muito mais importante no nosso contexto do que a liberdade individual de um eventual viciado."(RJTJRS 128/34)
- KARAM, Maria Lúcia. Dos crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1991, p. 122-127.
- Apelação Crime Nº 70000006247, Câmara de Férias Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 06/10/1999.
- KARAM, Maria Lúcia. Drogas ilícitas e globalização: proibicionismo e ampliação do poder de punir. Democracia Viva. São Paulo, n.17, p.15-19, jul./ago. 2003.
- TJRS - AC n.º 68006024 - Rel. Des. Ladislau Fernando Rohnelt – RJTJRS 116/131.
- No sentido de que seria mais adequado que ao usuário fosse dada "assistência médica do Estado e não a sua penitenciária" encontrou-se tão-somente o HC 44234/SP - Relator(a): Min. Aliomar Baleeiro, Julgamento: 20/06/1967 Órgão Julgador: Segunda Turma, anterior, portanto, à legislação proibicionista. Todavia, já no RHC 50688/GB - Relator(a): Min. Luis Gallotti Julgamento: 12/12/1972 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação DJ 02-03-1973, a Excelsa Corte pátria curvou-se à incriminadora legislação vigente.
- RE 109619 / SP - Relator(a): Min. Octavio Gallotti, Julgamento: 19/08/1986, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação DJ 19-09-1986.
- A primeira observação que salta aos olhos é que a lei previu no seu preceito secundário a aplicação de penas alternativas ao usuário/dependente, de forma autônoma, quando na tradição do Direito Penal Brasileiro as penas restritivas de direitos sempre tiveram natureza substitutiva.
- A risível "pena de advertência", como dito e demonstrado ao longo do texto, única efetivamente viável de ser aplicada ao usuário de drogas, vem sendo criticada severamente por toda a doutrina, pois não atinge minimamente as funções da pena, que são retribuição e prevenção (geral e especial), pois não intimida qualquer cidadão a não consumir drogas. Além disso, a tal "pena de advertência" banaliza o Direito Penal (ferindo mortalmente os princípios da fragmentariedade e subsidiariedade) igualando-o a outros ramos do direito, nomeadamente o administrativo, o que causa descrédito perante a sociedade, a par de "revoltar" grande parte dos operadores do Direito, que de antemão vislumbram a inocuidade de seus esforços.
- A prestação de serviços à comunidade é a única das alternativas legais que pode ser considerada uma pena, porém, em sendo aplicada de forma autônoma e não em substituição à pena privativa de liberdade, portanto sem possibilidade de conversão, não possui coercibilidade, conforme procurar-se-á no decorrer do texto.
- O comparecimento a programa ou curso educativo, como o próprio inciso revela, não é uma pena e sim medida educativa, cujo escopo é encaminhar o usuário de drogas à orientação profissional, portanto trata-se de medida que deveria ser aplicada no âmbito do Poder Executivo e não do Judiciário, muito menos por um Juiz Criminal, cujo poder de coerção é essencial. Porém, se o usuário não comparecer no "programa" ou "curso", ao qual foi destinado via transação penal ou sentença condenatória, o juiz nada poderá fazer, sequer poderá responsabilizá-lo por crime de desobediência, pois a lei prevê conseqüências jurídicas específicas para essa transgressão.
- Aqui revela-se desenganadamente evidente que as "penas" previstas no art. 28 não são, em verdade, sanções penais, mas medidas sócio-educativas, por certo inspiradas no ECA (Lei 8.069/90). Essa confusão, não se sabe se foi por descuido ou se foi intencional (mal intencionada), torna claro que o objetivo foi descriminalizar o uso de drogas. Porém sem a coragem de assumir tal posição, o Legislativo e o Executivo resolveram, do alto da varanda de Pilatos, lavar suas mãos e empurrar a decisão sobre o que fazer com o problema para o lado do Ministério Público e do Poder Judiciário, sem lhes dar, todavia, os meios necessários. Talvez, seria melhor se o legislador tivesse criado mais um "Estatuto" o "dos Usuários e Viciados", como parece que agora é moda no Congresso Nacional...
- GOMES, Luiz Flávio, et alii (coord.). Nova Lei de Drogas Comentada. São Paulo: RT, 2006, p. 109/110.
- THUMS, Gilberto e PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas:. Crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p. 25. O STJ reconheceu, tão-somente, a novatio legis in mellius, afirmando que deve o art. 28 retroagir, nos termos o art. 5º, XL, da CF e art. 2º, parágrafo único, do CP, a fim de que o usuário condenado pelo art. 16 não mais se sujeite à pena de privação de liberdade (Habeas Corpus nº 73432/MG (2006/0283417-4), 5ª Turma do STJ, Rel. Félix Fischer. j. 14.06.2007, unânime, DJ 20.08.2007).
- MARCÃO. Renato. Tóxicos – Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 anotada e interpretada. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 2007, p. 130.
- Nesse sentido, há tempos critica-a Cezar Roberto Bitencourt: "Essa lei de introdução, sem nenhuma preocupação científico-doutrinária, limitou-se apenas a destacar as características que distinguem as infrações penais consideradas crimes daquelas que constituem contravenções penais, as quais, como se percebe, restringem-se à natureza da pena de prisão aplicada." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral 1. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. 2006, p. 263).
- STF, 1º Turma, RE 430105 QO/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 13.2.2007. Informativo n. 456. Brasília, 12 a 23 de fevereiro de 2007.
- Muita embora aceite-se a lição de Rui Barbosa, adrede transcrita, no sentido de que o STF "tem o direito de errar por último", no particular impende concorda-se com Luiz Flávio Gomes quando, ao criticar essa decisão da Suprema Corte, afirma que a "etiqueta" de "criminoso" ou "delinqüente" não ajuda, em absolutamente nada, para seu processo de recuperação ou de reinserção social (GOMES, Luiz Flávio. Para o STF, o usuário de droga é um tóxico-delinqüente . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9821>. Acesso em: 28 jan. 2008). Porém, observando que o "erro" foi do legislador e não do seu intérprete maior, a partir da observação feita Artur de Brito Gueiros Souza (in Espécies de sanções penais: uma análise comparativa entre os sistemas penais da frança e do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 49, 2004, p. 09-38) sustenta-se que o usuário deve ser tratado apenas como "infrator", pois ele, na realidade, comete uma "infração penal de menor potencial ofensivo". Não se nega, todavia, que essa proposta não deixa de ser um eufemismo.
- GOMES, Luiz Flávio. Para o STF, o usuário de droga é um tóxico-delinqüente . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9821>. Acesso em: 28 jan. 2008.
- Hassemer faz excelente abordagem do fenômeno multifacetado que a doutrina convencionou denominar "direito penal simbólico", diferenciando-o entre o "manifesto" e o "latente". Esse acontece quando o legislador, conquanto tenha bem claro o que pretende fazer utiliza instrumentos ilusórios, com a hipócrita dissimulação do "realmente pretendido" com o "realmente realizado" (HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 2220). Claus Roxin, por sua vez, destaca que o Direito Penal simbólico manifesta-se por meio de dispositivos "que não geram, primariamente, efeitos protetivos concretos, mas que devem servir à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através da declaração de determinados valores ou o repúdio a atitudes consideradas lesivas. Comumente, não se almeja mais do que acalmar os eleitores, dando-se, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que se está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas". Como destaca o eminente jurista alemão, evidentemente que todas as leis têm algum efeito simbólico e nisto não há nenhum demérito, pois pretendem reforçar a consciência coletiva de respeito a determinados bens jurídicos. Ilegítimas, todavia, se mostram leis de efeitos simbólicos quando inspiradas em inconfessáveis objetivos demagógicos, o que se desvela quando o dispositivo, ainda que operante sobre a consciência comum, mostra-se desnecessário ou inócuo para a convivência pacífica no meio social (apud PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1169, 13 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8917>. Acesso em: 29 jan. 2008.). Já nos dizeres de Silva Franco, essa estratégia Estatal de tentar resolver graves problemas sociais por meio da criminalização está ligada ao "pampenalismo", ou seja, à utilização do Direito Penal como uma espécie de "panacéia para todos os males", o qual, "quando não traduz uma bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia" (FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 1994, p. 36-37.)
- Aqui adota-se a mesma orientação a no sentido de que a dosimetria judicial da pena deve sempre partir do limite penal mínimo, escólio apodíctico que, como diz o colega Pedro Rui da Fontoura Porto, "ninguém ousa jamais invectivar sob pena de ser excluído da comunidade dos conhecedores do Direito."
- Isso não impede que o Ministério Público, para além desse critério objetivo, dentro do seu poder discricionário, invoque outros motivos para não propor a transação penal, nos termos do art. 76, III, da Lei 9.099/95, pois a proposta desse benefício é um poder discricionário do parquet. Nesse sentido, colaciona-se o seguinte precedente do STF: "o art. 76 (como também o art. 89) da lei nova não se constitui um direito público subjetivo do réu, porém apenas mitiga o princípio da obrigatoriedade da ação penal, ao adotar o princípio da conveniência ou, segundo alguns, o princípio da discricionariedade controlada. (Recurso Extraordinário 468.161-7 - Goiás - Primeira Turma Relator: Min. Sepúlveda Pertence DJU: 31.03.2006)
- Por todos: Habeas Corpus nº 88785/SP, 2ª Turma do STF, Rel. Eros Grau. j. 13.06.2006, DJ 04.08.2006.
- A "criminalização secundária", feita pela Polícia, Ministério Público, Judiciário, imprensa e etc., é um processo de seletividade operacional relacionado com a posição social do criminoso, sendo integrada por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos dos agentes de controle social, e não propriamente pela gravidade do crime ou pela extensão social do dano. Nesse sentido, descreve Raúl Zaffaroni: "A inevitável seletividade operacional da criminalização secundária e sua preferente orientação burocrática (sobre pessoas sem poder e por fatos grosseiros e até insignificantes) provocam uma distribuição seletiva em forma de epidemia, que atinge apenas aqueles que têm baixas defesas perante o poder punitivo, aqueles que se tornam mais vulneráveis à criminalização secundária porque: a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais; b) sua educação só lhes permite reações ilícitas toscas e por conseguinte, de fácil detecção e c) porque a etiquetagem suscita a assunção do papel correspondente ao estereótipo, com o qual o seu comportamento acaba correspondendo (a profecia se auto-realiza)". (ZAFFARONI. Eugênio Raúl, et alli. Direito Penal Brasileiro; Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro. Revan, 2003, p. 46). Por outro lado, também não se pode incorrer numa "discriminação às avessas", onde somente os usuários ricos ou remediados transformem-se em sujeitos passíveis de punição.
- Nesse sentido, por todos, o seguinte precedente: "Em caso de inadimplemento da pena de multa imposta em juízo criminal, compete à Fazenda Pública ajuizar ação de execução, ante a alteração promovida no art. 51 do Código Penal (CP) pela Lei nº 9.268/96. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento." (Agravo Regimental no Recurso Especial nº 495492/MG (2002/0163054-7), 6ª Turma do STJ, Rel. Paulo Medina. j. 06.04.2006, unânime, DJ 17.09.2007).
- No Estado do Rio Grande do Sul, nos termos da Lei Estadual 9.298/91, em dezembro de 2007 o valor mínimo para execução pela PGE era de R$ 2.179,49, vale dizer, multa inferior a esse valor não será executada. E mais, em virtude do disposto no art. 2º da Lei Estadual nº 12.031/03, sequer serão inscritos como Dívida Ativa da Fazenda Pública Estadual os créditos de natureza não tributária de valor igual ou inferior a 50 UPF-RS, portanto multas no valor de 1 SM permanecem em aberto no órgão de origem até a prescrição!
- É possível, também, que o processo seja utilizado para revogar algum benefício penal que o usuário esteja usufruindo, em sede de execução penal ou suspensão condicional da pena, por exemplo.
- Em dezembro de 2006, na reunião do CONCRIM do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
- Efetivamente, aqui cumpre fazer eco ao Desembargador Volney de Moraes Jr., quando diz: "A condenar com vergonha é preferível absolver com desfaçatez. Não punir, quando era o caso, é caso de assombro, espanto e pasmo: sensação de que a Justiça, existente embora, não foi realizada no caso específico. Mas punir timidamente, quando era o caso de estabelecer uma justa proporção entre crime e pena, é caso de escândalo, indignação e anátema: sensação de que a Justiça existe apenas como farsa (DIP, Ricardo e MORAES JR, Volney Corrêa Leite de. Crime e castigo – reflexões politicamente incorretas. 2ª ed. Campinas: Millennium Editora. 2002, p. 19.)
- Por todos: BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995. 1º ed. RT, SP. 1996, p. 173.
- Por todos: HC 14666 / SP 2000/0109751-2 Relator(a) Ministro Fernando Gonçalves (1107) Órgão Julgador T6 - Sexta Turma Data do Julgamento 13/03/2001.
- Em apertada síntese, a epitetada "Justiça Terapêutica" é guiada pela idéia de se oferecer e obrigar o tratamento aos dependentes, como resposta estatal ao uso das drogas. Conquanto elogiada por significativa parcela da doutrina, também já foi criticada por não dar solução adequada à situação do usuário que, como adrede demonstrado, diferentemente do dependente, não carece de ser tratado como um doente, sendo acoimada de instrumento autoritário do Estado que fere a esfera de decisão do indivíduo, não passando da reformulação cíclica de uma antiga postura que reforça o binômio "doença-crime" e atende aos interesses das classes dominantes como eficaz instrumento de controle social. Alessandro Baratta é um desses críticos.
- Faz-se eco aqui às pertinentes e constantes críticas de Gilberto Thums e Vilmar Pacheco (THUMS, Gilberto e PACHECO, Vilmar. Nova Lei de Drogas:. Crimes, investigação e processo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, passim)
- Dentre as quais destaca-se o Relatório/Parecer 17/17/CNECV/96, sobre a liberalização da "droga" e despenalização do seu consumo, do Conselho de Ética para as Ciência da Vida de Portugal, cujo texto foi utilizado como base para esse seguimento do presente artigo, ao lado dos contributos auferidos nas outras obras consultadas.
- Nessa parte do presente texto, utilizou-se fundamentalmente os argumentos esposado por Sérgio de Oliveira Médici, no artigo "Incriminação do porte de substância entorpecente para uso próprio" (in Drogas, aspectos penais e criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, p. 151-160.
- Entendimento que é respaldado por emblemático precedente do STF: "Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revestem de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção por parte dos órgãos estatais de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantia de terceiros." (excerto do voto do Min. Celso de Mello, por ocasião do julgamento do MS nº 23.452/RJ)
- Na Itália, "la legge 22 dicembre 1975, n. 685," iniciou um período de assistência aos consumidores de quantidades módicas de drogas, adotando um sistema definido de "forbice", partindo do pressuposto de que o dependente não é um delinqüente, mas um enfermo. Entretanto, em virtude da percepção de que houve aumento do uso de drogas, cedendo à política norte-americana, a "legge 26 giugno 1990, n. 162" voltou a recrudescer o tratamento do usuário, embora não seja passível de pena privativa de liberdade. Já na Espanha, em 1983, houve forte despenalização com a alteração do art. 344 do Código Penal, que podia ser considerada a mais avançado do mundo na matéria. Sem embargo, cinco anos mais tarde, o legislador veio a endurecer de novo esse artigo. Nestes cinco anos de tolerância, o mercado espanhol de cannabis sofreu um estancamento em favor de outras drogas mais pesadas graças, segundo alguns autores, ao estímulo do fruto proibido." (trecho extraído de: "Legalización del Cannabis", disponível em http://www.drogomedia.com/dossiers1_lasclaves.php?dossier=8, acesso em 29 de janeiro de 2008).
- HASSEMER, Winfried. Direito Penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 317.
- Atualmente, doutrina e jurisprudência portuguesas encontram-se diante das dificuldades jurídicas de definir a qualificação jurídica da apreensão de estupefacientes para consumo em quantidade superior a 10 doses diárias previstas nas lei, em virtude de um aparente vazio legislativo instalado na seqüência da revogação do art.40º do DL 15/93, que então incriminava o uso, operada pelo art.28º da Lei nº 30/2000. Diante dessa vexata quaestio, existem três posições fundamentais: A primeira, sustenta que a aquisição e detenção de estupefacientes para consumo cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias 10 dias pode igualmente ser punida como contra-ordenação, conforme o caso concreto (Nesse sentido: acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Setembro de 2005, proferido no processo 1831/05; de 14 de Novembro de 2001, proferido no processo 3031/01; de 15 de Março de 2006, proferido no processo 119/06; Como doutrina a favor desta interpretação, Manuel Monteiro Guedes Valente "Consumo de Drogas; Reflexões sobre o quadro legal", 3ª edição Revista e Actualizada, Almedina, 2006. A segunda corrente defende que para tais situações, deve-se utilizar o artº 40º nº 2 do D.L. nº 15/93 de 22/01, por via de interpretação restritiva do artº 28º da Lei nº 30/2000 de 29/11. Vale dizer, "ressuscita-se" o "crime de uso". Essa é a tese sufragada por Cristina Líbano Monteiro «O consumo de droga na política e na técnica legislativa», publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano II, 1° fascículo, 2001, p. 67 e Eduardo Mia Costa, Breve Nota Sobre o Regime Punitivo do Consumo de Estupefacientes(Revista do Ministério Público n° 87, ano 22, p. 147), bem como decisões de vários tribunais superiores, designadamente, como se nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2006, proferido no processo 2871/05; de 25 de Junho de 2003, proferido no processo 4089/02; de 7 de Abril de 2005, proferido no processo 446/05; A terceira corrente, por sua vez, entende que após a data de entrada em vigor do mencionado diploma, da conjugação dos arts. 21°, 25° e 40° do Decreto Lei n.° 15/93 e dos arts. 2° n°s 1 e 2, e 28 da Lei n.° 30/2000, resulta que as situações de detenção para consumo, cuja quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias, é sancionada como tráfico, seja por via do artº 21°, seja por via do artº 25°, seja, se estiver reunido o cabido condicionalismo, por via do artº 26°, todos do Decreto Lei nº 15/93. A favor desta interpretação, temos as decisões proferidas nos seguintes arestos:- Acórdão do Tribunal Constitucional n° 295/2003, de 12 de Junho de 2003, publicado no DR. – II Série de 23 de Janeiro de 2004;- Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdãos dos processos 5788/06 e 3926106, respectivamente de 19.12.2006 e de 17.10.2006).
- A partir dos contributos de Hassemer, esconde-se nessa derradeira nota o nosso cético entendimento de que não existe outra saída para o problema das drogas atualmente ilícitas, a não ser o já conhecido (porém repudiado) caminho que começa com a criminalização (estágio brasileiro), passa pela transformação do crime em ilícito administrativo (estágio português), evolui para uma permissão limitada do uso (estágio holandês) até finalmente chegarmos "à pesada tributação desses venenos", como hoje ocorre com o álcool e o tabaco (ob. cit. p.326). Entretanto, reflexões sobre uma retirada paulatina e coordenada do Direito Penal do campo das drogas não pode ser feito nos estreitos limites desse artigo, sob o risco de, levianamente sermos apontados como arautos do "frívolo direito à intoxicação". Entretanto, ousamos consignar que, dentro das possíveis "experimentações controladas" a serem realizadas no âmbito de uma nova política de drogas, a legalização e regulamentação administrativa do plantio, comércio e consumo da maconha é uma estratégia que merece ser aprofundada. Nada obstante, essa possibilidade, aqui despretensiosamente esboçada, exige, já noutra província, a continuidade e aprofundamento dos estudos sobre Direito Penal e drogas, no desiderato de buscar escorreita interpretação desse fenômeno em sua vasta complexidade.