Justificativa
A drogadição (uso indevido de drogas), de um modo especial no mundo ocidental, é um dos temas mais polêmicos da conteporaneidade, tratando-se de fenômeno complexo que tende a ser abordado de forma predominantemente emocional, nomeadamente em virtude da faticidade de cada intérprete (que percebe o fenômeno de uma forma distinta, dependendo da história de sua vida e das suas circunstâncias). Imperativo, portanto, que para melhor compreendê-lo haja o esforço de um distanciamento científico, preferencialmente acoplado a uma visão holística e sistêmica (multidisciplinar), na medida em que, para além da legalidade, o assunto confronta aspectos éticos, culturais, sanitários, políticos, econômicos e etc., nem sempre tornados claros, quer pelo discurso do establishment, que costuma "endemonizar" as drogas, quer pelo encanto poético da contracultura, com a sua tendência de glamourizar o uso, relegando ao olvido os sérios riscos da adição a drogas .
Entretanto, dentro de todo o universo possível de abordagem sobre as drogas, enfoca as estratégias utilizadas pelo legislador brasileiro no trato da matéria, em especial na ótica criminal.
Nessa esteira, em um primeiro momento, da forma mais objetiva possível, revistar-se-á o caminho seguido pela legislação criminal pátria, mencionando os contrapontos que lhe foram feitos por determinados seguimentos da doutrina e jurisprudência indígenas, destacando, todavia, o respaldo que o legislador sempre obteve, ao menos na espécie delitiva em comento, da interpretação emanada dos nossos tribunais superiores.
Logo em seguida, será feita uma análise crítica da lei antidrogas vigente, destacando suas incongruências e a sua titubeante proposta de incriminar o porte para uso pessoal, reveladora, das duas uma, ou de um Poder Legislativo descuidado com a complexa vexata quaestio da drogadição; ou, o que é pior, de um legislador que, de forma hipócrita e simplista, lança mãos do malsinado Direito Penal simbólico "latente" para ocultar o seu propósito de descriminalizar essa prática. [01]
Por derradeiro, ainda que de relancina, será feita uma abordagem dos principais argumentos abolicionistas e proibicionistas, com destaque para a alternativa engendrada pela legislação portuguesa, a qual, conquanto mereça lá alguns reparos, descortina-se como fonte inspiradora em que o legislador brasileiro poderá vir a se abeberar para tratar do intricado tema.
A legislação antecedente e a sua interpretação jurisprudencial.
Em virtude dos estreitos limites dessa quadra, deixar-se-á de lado os diplomas legais mais antigos, [02] partindo-se da redação original do Decreto-lei 2.848/40 (CP), na qual não constava incriminação do porte de drogas para consumo pessoal, pois tipificava somente o tráfico (art. 281).
Somente na década de 60, com a profusão mundial do consumo, o Decreto-lei 385/1968 alterou o art. 281 do CP, equiparando, em termos de penalização, a conduta de trazer consigo para uso próprio ao tráfico. A justificativa apresentada, à época, apontava justamente para o aumento da venda e a impunidade dos traficantes que, surpreendidos com drogas proibidas, diziam-se meros usuários.
Posteriormente, o disposto no art. 281 do CP foi revogado pela Lei 5.726/71, nossa primeira "lei antitóxicos" (LAT), [03] que justamente procurou enfrentar a, por vezes, tormentosa dificuldade de enquadramento entre tráfico e uso, dando um tratamento mais benigno a esta conduta. Essa lei trouxe várias inovações, exacerbando as hipóteses de condutas delituosas, inclusive a associação para o tráfico, e instituindo procedimentos especiais.
Tal diploma legal foi revogado pela Lei 6.368/1976, que dispunha "sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências". Essa lei, regulamentada pelo Decreto nº 78.992/1976, foi considerada um avanço em relação a anterior, pois abordou a questão do tratamento e recuperação do usuário.
Na Lei nº 6.368/1976, a conduta do porte para consumo pessoal era considerada crime. [04] Entretanto, o dependente de drogas passou a ter tratamento diverso, ficando isento de pena, caso reconhecida sua inimputabilidade. [05] Portanto, a lei fazia nítida distinção entre traficante (art. 12), usuário (art. 16) e dependente (art. 19). [06] Logo assim, o dependente, segundo majoritária corrente doutrinária, poderia, inclusive, ser reconhecido como um não criminoso, dado o conceito analítico de crime que os adeptos dessa corrente adotam. [07] Nada obstante, o notável avanço dessa diferenciação, ela não restou imune a críticas. [08]
Interessante observar, igualmente, que embora o art. 16 tenha sido consagrado como sendo o artigo do usuário, o tipo não previa o verbo "usar", que, portanto, era considerado ato atípico por um seguimento da jurisprudência, com respaldo em precedente do STF. [09]
Segundo a doutrina clássica, [10] seguida amiúde pela jurisprudência, o bem jurídico tutelado pelas regras de combate às drogas, inclusive no porte para consumo, [11] é a saúde pública, sob o argumento de que a deterioração por ela causada não se limita ao usuário, pois elas põe em risco a própria integridade social. Nada obstante, trata-se, em verdade, de delito pluriofensivo, conforme bem orienta a ONU. [12]
Ainda de acordo com a doutrina tradicional, [13] as normas antidrogas configuram delitos de perigo abstrato. Portanto, para a sua consumação não há necessidade da ocorrência concreta do dano, pois a lei, jure et jure (em caráter absoluto), presume o perigo, bastando para a sua configuração que a conduta seja subsumida num dos verbos nucleares. Todavia, essa concepção abstrata, por tirar do julgador quaisquer possibilidades avaliativas do perigo à saúde pública, no caso concreto, já foi objeto de crítica de doutrina. [14]
Convém destacar, nesse comenos, que a Lei 6.368/76 foi alterada ou parcialmente revogada pelas Leis nº 8.072/90, 7.560/96, 9.804/99, 10.409/2002 e 10.741/03, porém, em relação à incriminação do uso, essas sucessivas alterações nada afetaram, uma vez que a Lei 10.409/02, que pretendia regular a matéria em sua totalidade, foi completamente desnaturada quando teve vários dispositivos vetados. [15] Dessa forma, até a vigência da atual Lei 11.343/06, conviveu-se, como disse Damásio de Jesus, com uma "colcha de retalhos" feita com duas leis antitóxicos, uma tratando do direito material, ou seja, dos crimes e das penas ( Lei 6.368/76), e outra do aspecto procedimental (Lei 10.409/02). [16]
Nada obstante a clara incriminação feita ao consumo pela Lei 6.368/76, no início da década de 90 significativa parcela da doutrina e da jurisprudência pátria - quiçá inspirada por movimentos internacionais [17] ou pelos ventos democráticos da Constituição de 1988 -, passou a sustentar a atipicidade penal da posse de drogas para uso pessoal.
Basicamente, três eram [18] as correntes existentes: a) inconstitucionalidade da incriminação do uso, por interferência na esfera privada do indivíduo; b) ausência de perigo ou ofensa à saúde pública e; c) insignificância penal da conduta em determinadas situações.
A grosso modo, a primeira vertente defendia a necessidade de respeito ao direito do cidadão de usar estupefacientes, porquanto este agir, supostamente, não interferiria na vida de outras pessoas, não sendo lícito, dentro do sistema de liberdades democráticas proposto pela então novel ordem constitucional, punir o viciado que, antes de tudo, é uma pessoa que precisa ser tratada e que teria a sua vida ainda mais arruinada se o Estado o tratasse como criminoso. Sustentava-se, portanto, que a conduta de portar entorpecente para uso pessoal é fato que diz respeito à faculdade de se decidir ou agir segundo sua própria determinação, o que deve ser garantido ao homem livre, que assume as eventuais conseqüências em seu ambiente privado, não interferindo na vida de seu semelhante. "Se [o Estado] não quer reconhecer e tratar o viciado como doente, pelo menos há que respeitar sua liberdade individual como se plenamente responsável fosse." [19]
Por outro lado, partindo da posição daquele entendimento tradicional de que o bem jurídico tutelado nas infrações relativas às drogas é a saúde pública, outra corrente argumentava que na conduta de posse para uso de drogas não há expansibilidade do perigo, logo, não há como nela se identificar tipicidade material, na medida em que não importará em ofensa à saúde pública, sustentando-se que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são condutas antagônicas, afinal "destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios." [20]
Ainda nessa linha de raciocínio, refutava-se o argumento de que os usuários de drogas ofendem a saúde publica em virtude da difusão de seu consumo, prejudicando a sociedade como um todo, afirmando-se que, em verdade, a ação em questão não se enquadra juridicamente entre as hipóteses de crime contra a saúde pública, pois não possui as características daqueles tipos penais, que exigem perigo para a saúde de indeterminado número de pessoas para obter preocupação legal, e o portar entorpecente para uso próprio não atinge a incolumidade pública, precisamente por não afetar a saúde de indeterminado número de pessoas. Mesmo que se aceitasse a idéia que todos os usuários difundem as drogas entre amigos e conhecidos, não se estaria diante de um delito contra a saúde pública, pois, mesmo nesses casos, as vítimas, em potencial, são determinadas, não se criando um perigo coletivo. [21]
Maria Lúcia Kaplan, [22] bem sintetizou essa linha de entendimento abolicionista:
No Estado Democrático de Direito, cuja tônica maior encontra-se na subordinação do exercício do poder à lei, com vista a garantir os direitos e a dignidade de cada indivíduo, o bem jurídico há de sempre ser visto sob uma perspectiva pessoal. A identificação de bens jurídicos de caráter coletivo ou institucional só se admite enquanto condição de proteção de bens jurídicos individuais. A previsão dos denominados bens jurídicos de controle, que, apelando para expressões vagas, como ordem pública ou paz pública, orientam a atenção do direito penal no sentido da criminalização de condutas que atingem tão somente a mera afirmação da vontade ou da autoridade do Estado é incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Na hipótese das drogas tornadas ilícitas, único bem jurídico reconhecível nas regras criminalizadoras é a saúde pública, como já explicitava o primitivo dispositivo do artigo 281 do Código Penal brasileiro, posteriormente substituído pela legislação especial. A saúde pública – espécie do gênero incolumidade pública – tem, como é sabido, um caráter coletivo, que é dado pela indeterminação de seus titulares. Sua afetação, como ocorre em relação a outros bens jurídicos desta natureza, só se verifica na medida da expansibilidade da lesão ou do perigo concreto de lesão a um número indeterminado de sujeitos.
Assim, enquanto houver destinação pessoal para a posse da droga e enquanto seu consumo se fizer de modo que não ultrapasse o âmbito individual, não haverá afetação da saúde pública. Ter algo para si próprio é o oposto de ter algo expansível a terceiros. Aqui se têm condutas privadas, em que ausente a concreta afetação de um bem jurídico de terceiros, condutas que como tal, não podem ser objeto de qualquer forma de criminalização.
Faz parte da liberdade, da intimidade e da vida privada a opção por fazer coisas, que pareçam para os outros – ou que até, efetivamente, sejam – erradas, "feias", imorais ou danosas a si mesmo. A dignidade da pessoa humana, reconhecida desde as origens do Estado Democrático de Direito, impede a transformação forçada do indivíduo. Enquanto não afete direitos de terceiros, o indivíduo pode ser e fazer o que bem lhe aprouver. O que os outros – e, portanto, também o Estado – podem fazer, nestas circunstâncias, é apenas tentar mostrar ao indivíduo, que, supostamente, está se prejudicando, que seu comportamento não está sendo bom, jamais podendo, no entanto, obrigá-lo a mudar este comportamento, ainda mais através da imposição de uma pena, qualquer que seja sua natureza ou sua dimensão.
Por fim, conquanto não apresentasse ostensivamente uma postura abolicionista, a terceira corrente sustentava que a posse de pequena quantidade de drogas, para uso pessoal, era um insignificante penal. Esse escólio, também partindo do pressuposto de que o porte para uso é crime de perigo contra a saúde pública, considerava-o não tipificado quando a quantidade, por tão ínfima, não fosse capaz de criar aquele perigo. Afirmava-se que nenhum tipo penal é instituído pela lei para existir por si mesmo, sem um sentido finalístico definido, e que a criação de tipos penais é determinada pelo princípio da imprescindibilidade deles como meio de proteger certos bens jurídicos essenciais. Por isso não se poderia considerar como típica a conduta de portar substância entorpecente sem a indispensável presença do perigo comum, que vem a ser, precisamente, o elemento necessário para que haja a consumação delituosa. [23]
Sem embargo desses ponderáveis argumentos, a jurisprudência dos Tribunais Superiores [24] firmou-se no sentido de não externar condescendência com os usuários de drogas, reafirmando a constitucionalidade da norma incriminadora do uso e afastando o argumento de que não atingiria a saúde pública, pois como argumentou o Min. Octávio Galotti "a capacidade de causar a dependência diz respeito às propriedades e não à quantidade encontrada, em cada caso, porque o crime ora cogitado é um crime de perigo" (...) "que está vinculado à potencialidade da droga, ao risco social e de saúde pública, até mesmo pelo exemplo que do fato pode advir, e não à lesividade comprovada em cada episódio concreto." [25]
O STF, por longo tempo, também adotou entendimento contrário ao reconhecimento do princípio da insignificância com relação a posse de drogas para uso pessoal, existindo uma série de precedentes daquela Corte no sentido de que a pequena quantidade de tóxico encontrada em poder do usuário não descaracterizaria o crime previsto no revogado artigo 16 da Lei 6.368/76 (nesse sentido, os RHCs 51.235 e 45.973, HCs 68.516, 69.806, 71.638 e 74.661, e o RC 108.697).
Somente no ano passado, a Segunda Turma do STF, ao julgar o HC 92961, decidiu por aplicar o princípio da insignificância para absolver militar da condenação a um ano de prisão com sursis pelo prazo de prova de dois anos, que lhe foi imposta pelo STM pelo crime de consumo e tráfico de entorpecentes (artigo 290 do Código Penal Militar). Eis a ementa:
HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
1. Paciente, militar, preso em flagrante dentro da unidade militar, quando fumava um cigarro de maconha e tinha consigo outros três.
2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não-aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares.
3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância.
4. A Lei n. 11.343/2006 --- nova Lei de Drogas --- veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas.
5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício.
6. O Superior Tribunal Militar não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º, III).
7. Paciente jovem, sem antecedentes criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando há lei que, em vez de apenar --- Lei n. 11.343/2006 --- possibilita a recuperação do civil que praticou a mesma conduta.
8. Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares, indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar.
9. A aplicação do princípio da insignificância no caso se impõe, a uma, porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva; a duas, em virtude da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida.
A Lei 11.343/06 e a utilização simbólica do Direito Penal:
Com o advento da Lei 11.343/2006, verificou-se um inegável titubeio do legislador, o qual, talvez temendo a repercussão negativa, ou os efeitos nefastos que uma mensagem legislativa no sentido de descriminalizar o uso de drogas provocaria perante à sociedade, não ousou a tal ponto, mas acabou, na prática, por inviabilizar a aplicação de qualquer sanção penal.
Com efeito, o artigo 28 da referida lei dispõe:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: [26]
I - advertência sobre os efeitos das drogas; [27]
II - prestação de serviços à comunidade; [28]
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. [29]
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas [30] a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Luiz Flávio Gomes [31] um dos primeiros a escrever sobre a alteração legislativa, chegou a afirmar que "o legislador aboliu o caráter ‘criminoso’ da posse de drogas para consumo pessoal". O eminente jurista fundamentou seu entendimento na Lei de Introdução ao CP brasileiro, que em seu art. 1º dispõe: "Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente". Concluindo:
"Ora, se legalmente (no Brasil) ‘crime’ é a infração penal punida com reclusão ou detenção (quer isolada ou cumulativa ou alternativamente com multa), não há dúvida que a posse de droga para consumo pessoal (com a nova Lei) deixou de ser ‘crime’ porque as sanções impostas para essa conduta (advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos – art. 28) não conduzem a nenhum tipo de prisão. Aliás, justamente por isso, tampouco essa conduta passou a ser contravenção penal (que se caracteriza pela imposição de prisão simples ou multa). Em outras palavras: a nova Lei de Drogas, no art. 28, descriminalizou a conduta da posse de droga para consumo pessoal. Retirou-lhe a etiqueta de ‘infração penal’ porque de modo algum permite a pena de prisão. E sem pena de prisão não se pode admitir a existência de infração ‘penal’ no nosso País."
Portanto, para o referido autor, a posse de drogas assumia a feição de uma uma "infração sui generis" ou uma "infração para – penal",descartando, entretanto, que o artigo 28 da 11.343/06 configurasse um "ilícito administrativo", uma vez que "as sanções cominadas devem ser aplicadas não por uma autoridade administrativa e sim por um juiz (juiz dos Juizados Criminais)".
Em sentido diverso, Gilberto Thums e Vilmar Pacheco, por sua vez, chegaram a sustentar que "as hipóteses do art. 28 são ‘abolitio criminis’, e todos os agente condenados pelo art. 16 da antiga lei de Tóxicos (nº 6.368/76) têm direito a revisão criminal para cancelar todos os efeitos decorrentes da condenação". [32]
Sem embargo, a maioria da doutrina posicionou-se pelo reconhecimento de que o artigo 28 da Lei de Drogas prevê mesmo um "crime".
Nesse sentido, Renato Marcão [33] lucidamente obtempera que é preciso ter em conta que o CP brasileiro é de 1940 e, portanto, não pode limitar os contornos das infrações penais no atual estágio da legislação brasileira, inclusive em face dos preceitos inovadores das políticas criminal e penitenciária contemporâneas e dos princípios e regras constitucionais existentes sobre o tema artigo (vide, v.g., o art. 5º, XLVI, da CF, que abrindo a possibilidade de o legislador ordinário prever outras penas, determinou a adoção da "prestação social alternativa" e da "suspensão ou interdição de direitos").
Realmente, o CP foi feito sob o manto de um tempo autoritário, em que nem mesmo as denominadas "penas alternativas" encontravam-se na Parte Geral do CP da forma como foram postas com a reforma penal de 1984 (Lei n. 7.209, de 13-7-1984), e menos ainda com a relevância que passaram a ser tratadas com o advento da Lei n. 9.714/98. Portanto, a definição do art. 1º da Lei de Introdução ao CP, limitada e sem critérios técnicos, [34] efetivamente não se presta a uma completa classificação do que seja, ou não, crime e contravenção, revelando-se incompatível com o Direito Penal do século XXI.
Há que se destacar, ainda, a "colocação topográfica" do art. 28 dentro da Lei 11.343/2006, pois se encontra no Título III (Das Atividades de Prevenção do Uso Indevido, Atenção e Reinserção Social de Usuários e Dependentes de Drogas), Capítulo III, que cuida "Dos Crimes e das Penas".
Sucedeu-se, ademais, que, no devir histórico, a Primeira Turma do STF veio a tratar da questão, posicionando-se da seguinte forma:
A Turma, resolvendo questão de ordem no sentido de que o art. 28 da Lei 11.343/2006 (Nova Lei de Tóxicos) não implicou abolitio criminis do delito de posse de drogas para consumo pessoal, então previsto no art. 16 da Lei 6.368/76, julgou prejudicado recurso extraordinário em que o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro alegava a incompetência dos juizados especiais para processar e julgar conduta capitulada no art. 16 da Lei 6.368/76. Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal. Afastou-se, também, o entendimento de parte da doutrina de que o fato, agora, constituir-se-ia infração penal sui generis, pois esta posição acarretaria sérias conseqüências, tais como a impossibilidade de a conduta ser enquadrada como ato infracional, já que não seria crime nem contravenção penal, e a dificuldade na definição de seu regime jurídico. Ademais, rejeitou-se o argumento de que o art. 1º do DL 3.914/41 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei de Contravenções Penais) seria óbice a que a novel lei criasse crime sem a imposição de pena de reclusão ou de detenção, uma vez que esse dispositivo apenas estabelece critério para a distinção entre crime e contravenção, o que não impediria que lei ordinária superveniente adotasse outros requisitos gerais de diferenciação ou escolhesse para determinado delito pena diversa da privação ou restrição da liberdade. Aduziu-se, ainda, que, embora os termos da Nova Lei de Tóxicos não sejam inequívocos, não se poderia partir da premissa de mero equívoco na colocação das infrações relativas ao usuário em capítulo chamado ‘Dos Crimes e das Penas’. Por outro lado, salientou-se a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido pela Lei 9.099/95. Por fim, tendo em conta que o art. 30 da Lei 11.343/2006 fixou em 2 anos o prazo de prescrição da pretensão punitiva e que já transcorrera tempo superior a esse período, sem qualquer causa interruptiva da prescrição, reconheceu-se a extinção da punibilidade do fato e, em conseqüência, concluiu-se pela perda de objeto do recurso extraordinário" [35]
Portanto, segundo a doutrina majoritária e o STF, ter-se-ia operado, com o advento do artigo 28 da Lei 11.343/06, uma "despenalização", mas não uma "descriminalização" ou abolitio criminis do porte de drogas para consumo pessoal, que continua a ser crime. [36]
Sem embargo dessa conclusão - e esse é o ponto nodal do presente ensaio - tem-se que a "despenalização" feita pelo legislador brasileiro (de caso pensado, ou não) foi muito além da "exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal", pois, em verdade, o modelo adotado pela Lei 11.343/06 inviabiliza, na prática, a aplicação efetiva de qualquer sanção penal, com exceção da esdrúxula "pena de advertência", configurando, na realidade predominante no cotidiano forense, uma total despenalização (ou impunidade), pois o juiz nada pode fazer em termos coativos contra o usuário.
Portanto, novamente concordando parcialmente com Luiz Flávio Gomes, [37] não há como negar que a atual lei antidrogas promoveu, na espécie delitiva em comento, uma "banalização do Direito penal", pois passou-se a ter um "crime" com conseqüências pífias (insignificantes) caso o infrator não cumpra as sanções impostas pelo juiz, revelando-se nítido o manejo de um Direito Penal simbólico latente. [38]
De fato, note-se que o usuário de drogas, como não poderia deixar de ser, será processado e julgado pelo Juizados Especiais Criminais (art. 48, § 1º, da Lei 11.343/06), portanto, a princípio, fará jus à transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), que deverá, necessariamente, versar sobre as penas alternativas previstas no supramencionado art. 28 (art. 48, § 5º, da Lei 11.343/06).
Ora, se o agente for primário e de bons antecedentes, não revelando maior culpabilidade (segundo os vetores do art. 59 do CP), a "pena" a ser fixada nessa transação penal não pode ser outra a não a ser a de advertência, [39] mesmo porque seria arrematado absurdo admitir-se uma sentença condenatória aplicando a "pena de advertência", por isso, em nosso entender, dos males o menor, devendo-se adotar a extravagante "pena" na primeira oportunidade azada, vale dizer, em sede de transação penal.
Essa pena alternativa transacionada, qualquer seja, não valerá para antecedentes nem para reincidência, nos termos art. 76, § 4º, da Lei 9.099/95. Entretanto, na lei especial em comento, ao contrário do que esse artigo da Lei 9.099/95 determina, se o indivíduo, depois de feita uma transação, for outra vez encontrado em posse de droga para consumo pessoal, não estará automaticamente impedida uma nova transação, [40] mesmo que dentro do lapso de cinco anos, é o que se infere do disposto no §4º do art. 28 da Lei 11.343/06. O que mudará, nessa situação é que a advertência não será mais cabível, pois advertido ele já foi e a sua contumácia revelou que essa é uma "pena" insuficiente.
Portanto, após a "pena de advertência", tanto a prestação de serviços à comunidade como a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo poderão, sim, ser transacionadas no patamar temporal de cinco meses.
Vale dizer, somente existirá o impedimento automático para a realização de uma nova transação, dentro do lapso de cinco anos, nos termos da Lei 9.099/95, se o usuário praticar outra infração penal de menor potencial ofensivo, diversa daquela prevista no art. 28 da Lei 11.343/06.
Em havendo descumprimento da transação penal, não é possível o prosseguimento da ação penal, conforme orienta o STF em relação aos demais crimes, [41] pois, ao contrário da omissão que existe na Lei 9.099/95, a Lei 11.343/06 informa que o juiz dispõe de somente duas "medidas coercitivas" (art. 28, § 6º): admoestação verbal (que nada mais é que a advertência, a qual, como visto, provavelmente não tenha adiantado anteriormente) e multa (essa é sanção máxima possível), fixada na quantidade entre 40 (quarenta) e 100 (cem) dias-multa, atribuindo a cada dia, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo nacional (art. 29).
Aqui talvez resida a maior falácia da lei, pois sabidamente a maioria dos clientes da justiça penal são inexeqüíveis pecuniariamente, na medida em que inseridos dentro daquele processo de "criminalização secundária" de que nos fala a doutrina penal. [42]
Além disso, é sabido que as multas aplicadas em processos penais devem ser executadas pela Fazenda Pública [43] (e não pelo Ministério Público), que nas mais das vezes não o faz, em virtude de contingências operacionais regulamentadas em lei, [44] portanto, na maioria dos casos não restará outra alternativa a não ser aguardar a prescrição (que ocorrerá em dois anos, nos termos do art. 30 da nova lei)!
Por outro lado, se, por qualquer motivo, não for cabível a transação penal, havendo a propositura da ação penal, cabe ao Ministério Público analisar a possibilidade da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), que, na prática, somente tenderá a ser aceita para evitar os efeitos indesejados de um antecedente e a perspectiva de reconhecimento da reincidência advindos de eventual sentença condenatória, pois esta, por também ser inexeqüível, não intimidará ninguém.
Com efeito, não sendo aceita ou não sendo viável a suspensão condicional do processo, segue-se o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais, sendo que as penas do art. 28 da Lei 11.343/06, nessa hipótese, serão impostas, ao final, em sentença condenatória, gerando efeitos penais (antecedentes, reincidência, afastamento de benefícios, etc.).
Entretanto, se houver descumprimento da sentença condenatória, voltará a ter incidência o § 6º do art. 28 da Lei 11.343/2006, ou seja, caberá ao Juiz dos Juizados ou da Vara de Execuções Criminais (dependendo da pena aplicada) fazer a devida admoestação (pela enésima vez) e, se necessário, aplicar a pena de multa, a qual, como dito anteriormente, na maior parte dos casos é inexeqüível.
Daí concluir-se que eventual processo por posse de drogas, na mais das vezes, [45] somente servirá para fixar a reincidência (genérica) e, por conseguinte, evitar outros benefícios penais.
Na hipótese do usuário flagrado já ser considerado tecnicamente reincidente, o processo, na maior parte dos casos, não terá qualquer perspectiva de efetividade, pois qualquer pena que vier a ser aplicada não será exeqüível e o processo será completamente inútil!
Dentro desse contexto, em encontro do Ministério Público do Rio Grande do Sul, para debater a Lei 11.343/06, [46] preconizou-se que nesses casos em que se antolhe patente a inefetividade da ação penal, o Ministério Público deve promover pelo arquivamento do Termo Circunstanciado, por falta de interesse de agir ( nos termos do art. 43, II, do Código de Processo Penal), pois se estará diante de arrematada inutilidade do processo em virtude da mais absoluta falta de efetividade da futura sentença a ser proferida, a evidenciar, de plano, que a persecução penal, nestes casos, nenhum efeito concreto terá, uma vez que natimorta, fadada, portanto, ao escárnio, sendo que eventual ação penal somente viria a contribuir, ainda mais, para o desgaste do prestígio do Poder Judiciário brasileiro, com desperdícios de tempo e recursos de ordem material e intelectual. [47]
Se o legislador queria afastar a possibilidade da aplicação irrefletida da pena privativa de liberdade ao usuário não precisaria fazer o que fez, pois o art. 76 da Lei. 9.099/95 já prevê que somente podem ser objetos de transação penal as penas restritivas de direito ou multa. Ademais, está consolidado no âmbito dos tribunais pátrios que, diante do não cumprimento do referido benefício, não há como se converter a pena restritiva de direitos transacionada em privativa de liberdade, como inicialmente chegou a cogitar a doutrina [48] e o STJ [49], devendo-se retornar ao status quo ante, a fim de possibilitar ao Ministério Público a ação penal,na qual poderão ser aplicadas novamenteas sanções alternativas, desta feita, contudo, comforça coercitiva, em virtude da possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade, a fim de garantir o êxito das penas alternativas, pois não existe "justiça terapêutica" [50] sem coercitividade. Essa possibilidade, todavia, restou afasta pela Lei de Drogas.
Em resumo, a posição da legislação brasileira, além de não ser terapêutica, não é pedagógica, pois embora considere crime o porte para consumo próprio, criou penas cuja força repressiva é tão inexpressiva que ninguém se sentirá dissuadido a não usar drogas.
Pelo contrário, dado o estímulo do "fruto proibido", o porte de drogas, a partir da nova lei, revelar-se-á em "interessante" instrumento de contestação do "poder Estatal", pois, mesmo na remotíssima hipótese do usuário ser flagrado (em virtude da consabida deficiência policial no combate ao crime), ele sabe que, se vier a ser condenado, a sanção penal não lhe provocará nenhuma "dor", não tendo porque temê-la, o que rende ensejo ao escárnio de todo um sistema de repressão estatal, afinal o usuário sabe, desde o início, que não "vai dar nada". Vale dizer, entre a descriminalização e a despenalização, optou-se pela "desmoralização" do sistema penal. [51]