Resumo
O presente trabalho trata da necessidade de adaptação das normas processuais penais à realidade constitucional instituída pela carta política de 1988 e tem por finalidade precípua identificar qual o sistema processual penal vigente no atual patamar normativo brasileiro. De início, são trazidas algumas considerações histórico-evolutivas acerca dos principais modelos processuais surgidos ao longo da evolução das civilizações, ressaltando suas influências no atual modelo vigente no Brasil. Em seguida, são expostos os três sistemas processuais penais (o inquisitivo, o acusatório e o misto) e suas características. Por fim, adentra-se ao cerne da questão: a promulgação da Constituição Federal de 1988 como marco de modificação do sistema processual penal adotado no Brasil. Nessa parte da presente pesquisa são trazidos à tona os principais argumentos acerca do modelo processual penal vigente nos dias atuais, enfatizando à necessidade de adequação das formas de interpretação, integração e aplicação das normas processuais à realidade constitucionalmente imposta, contribuindo com isso para o surgimento de um processo penal constitucional, completamente desvinculado dos enfoques anteriores ao texto constitucional de 1988. Para o desenvolvimento deste estudo utilizou-se de pesquisas bibliográficas (doutrinas, artigos científicos etc.).
Palavras-chave: Penal. Processo Penal. Sistemas Processuais Penais. Sistema Processual Penal Brasileiro.
Resumen
El presente trabajo trata de la necesidad de adaptación de las normas procesales penales a la realidad constitucional instituida por la carta fundamental de 1988 y teine la finalidad precípua de indentificar cual es el sistema procesal penal vigente en el actual rellano normativo brasileño. En início, son traídas algunas consideraciones histórico-evolutivas acerca de los principales modelos procesales surgidos al transcurrir de la evolución de las civilizaciones. En seguida, son expuestos los tres sistemas procesales penales (el inquisitivo, el contradictorio e el mixto) e sus peculiaridades. Al final, se adentra al núcleo de la cuestión: la promulgación de la Constituición Federal de 1988 como punto crucial de modificación del sistema procesal penal adoptado en Brasil. En esta parte de la presente investigación son traídos al debate los principales argumentos acerca del modelo procesal penal vigente en los días de hoy, enfatizando a la necesidad de adecuación de las formas de interpretación, integración y aplicación de las normas procesales penales a la realidad constitucional existente, contribuyendo con esto al aparecimiento de un proceso penal constitucional, sin ningún vínculo anterior al texto constitucional de 1988. Al desarrollo de este estudio se utilizó de investigaciones bibliográficas (doctrinas, artículos científicos etc.).
Palabras-clave: Penal. Proceso Penal. Sistemas Procesales Penales. Sistema Procesal Penal Brasileño.
Sumário: 1. Introdução; 2. Considerações histórico-evolutivas acerca dos principais modelos processuais penais; 3. Sistemas processuais penais; 4. Sistema processual penal brasileiro e o Código de Processo Penal de 1941; 5. Sistema processual penal brasileiro e o modelo constitucional; 6. Considerações finais; 7. Referências.
1. Introdução
A instituição de um novo regime constitucional representa, principalmente, a necessidade de repensar as formas de interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas infraconstitucionais. De tais atribuições são incumbidos os juristas, cuja função primordial é a de pensar o direito, por meio da doutrina e da jurisprudência.
No campo das normas processuais penais, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, surgiu a necessidade de repensar como se deveria interpretar, integrar e aplicar as respectivas normas. O modelo normativo constitucional anterior trazia conotações, cuja influência não mais se amoldava aos interesses do constituinte de 1988. Assim, a norma adjetiva penal precisava ser repensada com base nos preceitos instituídos pela nova ordem constitucional. Era preciso transformá-la em um processo penal constitucional. Para tanto, fez-se necessário identificar qual foi o sistema processual penal adotado pela nova Carta Política. Estava evidente que o constituinte de 1988, por meio da instituição de um complexo sistema de direitos e garantias fundamentais, optou pelo sistema acusatório ou contraditório, conforme será estudado adiante.
Por outro lado, tinha-se em plena vigência um Código de Processo Penal arcaico, em vigor desde janeiro de 1942, com relevos normativos fascistas e inquisitivos. É certo que se fazia necessário repensar e adaptar a conotação da norma infraconstitucional a nova realidade juridicamente instituída.
Nos dias atuais, apesar de muito dessa árdua tarefa – a de repensar o direito processual penal – já ter sido feita, ainda existem muitas divergências de pensamentos que necessitam de superação, para que se possa dar uma correta conotação à norma adjetiva penal, transformando-a em uma norma plenamente constitucional. Uma dessas tantas tarefas está consubstanciada na necessidade de identificação do sistema processual penal em vigor.
Ainda que grande parte da doutrina e da jurisprudência já tenha se posicionado em favor do sistema constitucional, subsiste uma parcela dos aplicadores do direito que teimam em tentar adequar o processo penal a uma realidade distinta da constitucionalmente proposta.
Nessa linha, almeja-se, com o presente, estudo contribuir com mais argumentos favoráveis ao sistema proposto pela Constituição Federal de 1988, objetivando a inviabilização de interpretações, integrações e aplicações errôneas e fora da atual realidade constitucional.
2. Considerações histórico-evolutivas acerca dos principais modelos processuais penais
Conforme ensinamento de Lima, "na Grécia, os chamados crimes privados eram reprimidos por particulares, cabendo à sociedade a repressão aos crimes públicos, e os chamados crimes políticos eram apreciados pela Assembléia do Povo" [01]. Dessa forma, é fácil notar que a antiga civilização grega apenas monopolizava a jurisdição penal com relação aos crimes que atentavam contra a coletividade, ficando os delitos que atacavam a esfera individual de cada pessoa, a cargo do próprio lesado. O Estado não possuía exclusividade no exercício da pretensão punitiva, havendo ainda a possibilidade de, nos chamados crimes particulares, o próprio particular exercer esta atividade.
Por outro lado, observa também o autor que
(...) na Roma antiga os chamados delicta privada tinham como árbitro o Estado, que decidia conforme as provas apresentadas pelas partes. Porém, com o tempo passou a ser abandonado tal processo penal privado, enquanto se fortalecia o julgamento dos delicta publica. Em tal processo público, a princípio, inexistia limitação quanto ao julgamento pelo Estado, sendo que apenas posteriormente, com a Lex Valeria de Provocatione, foi estipulado o direito do réu recorrer para um comício popular. Com o advento da República Romana, a justiça penal era exercida pelas centurias, compostas por patrícios e plebeus, e, em casos excepcionais, o julgamento se dava pelo Senado Romano. No fim da República passou a existir a accusatio, criando-se um tribunal popular que era composto por senadores, e, posteriormente, por cidadãos. Advindo o Império surgiu um novo processo penal, a cognitio extra ordinem, cabendo o julgamento ao Senado, e mais à frente ao imperador, e, tempos após, ao paraefectus urbis. O julgador Romano englobava as funções de acusador e juiz, e, com tal degeneração, era admitida tortura, sendo generalizada a prisão cautelar. [02]
O mencionado lapso de evolução do processo penal romano se deu, inicialmente, na Roma antiga, passando por outra fase quando da instituição da República Romana e encerrando-se com o advento do Império. O dito período foi responsável pelo surgimento de muitos dos direitos, formas procedimentais e garantias no sistema processual penal existentes até os dias atuais, tais como: direito do réu recorrer; veredictos populares, como os que ocorrem hoje em dia no Tribunal do Júri; e resquícios dos atuais princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.
Observe-se que, antes da Constituição Federal de 1988, o nosso sistema processual penal dava ao magistrado iniciativa para ação penal, uma evidente influência advinda da forma como era exercido o processo penal no Império Romano, onde o juiz atuava como acusador e julgador. Nos dias atuais, dado ao modelo adjetivo proposto pelo Texto Fundamental de 1988, o magistrado não mais é incumbido dessa função.
Já no antigo império germânico, havia a característica da vingança privada. Lima adverte que os crimes de gravidade eram considerados privados, entretanto admitindo composição posterior. Conforme explica o autor, a persecução penal poderia ser feita através de uma Assembléia, presidida por um príncipe ou mesmo um nobre, o que deveria ser previamente requerido pela vítima ou por um representante. Tal processo era público e acusatório, porém, existia certa valoração da confissão e da prova obtida mediante tortura. [03]
Conforme é depreendido, esse não foi um sistema processual que exerceu forte influência na nossa atual forma de exercício jurisdicional penal, vez que era um sistema onde se fazia presente a vingança privada, bem como a valoração probatória e a validade da prova obtida mediante tortura.
No espaço intertemporal entre o Direito Romano e germânico e o direito moderno, conforme doutrina Mirabete,
(...) estendeu-se o Direito Canônico ou Direito Penal da Igreja, com a influência decisiva do cristianismo na legislação penal. Embora contribuísse para essa humanização, politicamente a Igreja lutava para obter o predomínio do Papado sobre o poder temporal a fim de proteger os interesses religiosos de dominação. Assim, até o século XII, o processo somente podia ser iniciado com a acusação, apresentada aos Bispos, Arcebispos ou oficiais encarregados de exercerem a função jurisdicional. No século seguinte, entretanto, estabeleceu-se o procedimento inquisitivo, com denúncias anônimas e foram abolidas a acusação e a publicidade do processo. Tentava-se abolir as ordálias e os duelos judiciários mas se estabelecia a tortura, a ausência de garantia para os acusados, o segredo. Instalou-se o temido Santo Ofício (Tribunal de Inquisição) para reprimir a heresia, o sortilégio, a bruxaria etc. [04]
É de se notar que o Direito Canônico representou um grande retrocesso na forma de desenvolvimento processual penal, pois todas as garantias conquistadas ao longo de um lento processo evolutivo foram praticamente desconsideradas com a ausência de direitos ao acusado, a abolição da publicidade do processo, a aceitação de denúncias apócrifas, torturas inconseqüentes etc.
Observa Tourinho Filho apud Mirabete: "o sistema inquisitivo estabelecido pelos canonistas pouco a pouco dominou as legislações laicas da Europa Continental, convertendo-se em verdadeiro instrumento de dominação política" [05].
O processo penal moderno, ainda segundo Mirabete, tem suas raízes
(...) na segunda metade do século XVIII, com o chamado período humanitário do Direito Penal. O objetivo é a humanização da Justiça, procurando-se conciliar a legislação penal com as exigências da justiça e os princípios de humanidade. Montequieu elogiava a instituição do Ministério Público, que fazia desaparecer delatores; Beccaria condena a tortura, os juízos de Deus, o testemunho secreto, preconiza a admissão em Juízo de todas as provas, investe contra a prisão preventiva sem prova da existência do crime e de sua autoria. Voltaire censura a lei que obriga o juiz a portar-se não como magistrado mas como inimigo do acusado. [06]
Após a revolução francesa, afirma Tourinho Filho, "foram adotadas três ordens de jurisdições que correspondiam a três espécies de infrações: o tribunal municipal para delitos, o tribunal correcional para as contravenções, e o tribunal criminal para os crimes" [07]. O autor frisa que foi introduzido então o Tribunal do Júri, nos moldes do sistema processual inglês, executando-se em duas fases, a de acusação e a de julgamento. [08]
Mirabete afirma que "após o Código de Napoleão, de 1808, na frança é organizada a administração da Justiça, mantendo-se a tripartição de tribunais (Tribunais Correcionais, Tribunais de Polícia e Cours d’assises), com ação penal pública exercida pelo Ministério Público" [09]. Assim, apesar da alteração na nomenclatura dos tribunais, a estrutura básica foi mantida conforme o padrão existente.
Segundo Tourinho Filho, no sistema francês, a ação penal pública se dava sempre por iniciativa do Ministério Público, cabendo ao ofendido a ação apenas para o ressarcimento de dano, ademais que o processo penal em vigor àquela época adotava um sistema misto acusatório desenvolvido em três fases, "de la police judiciaire, de l’instruction et du jugement". Hoje em dia sendo o sistema misto (inquisitivo/acusatório) o mais utilizado na maioria dos países da Europa. O autor menciona por fim a existência de três grandes tipos ou sistemas processuais: inquisitivo, acusatório e misto, ao quais será dedicado o ponto seguinte. [10]
3. Sistemas processuais penais
Conforme estudado anteriormente, são três os sistemas processuais surgidos no decorrer da evolução do processo penal: o inquisitivo, o acusatório e o misto.
O sistema inquisitivo, para Nucci,
(...) é caracterizado pela concentração de poder nas mãos do julgador, que exerce, também, a função de acusador; a confissão do réu é considerada a rainha das provas; não há debates orais, predominando procedimentos exclusivamente escritos; os julgadores não estão sujeitos à recusa; o procedimento é sigiloso; há ausência de contraditório e a defesa é meramente decorativa. [11]
Sem dúvida o sistema inquisitivo, como se pode concluir, é o mais prejudicial ao réu e, em um Estado Democrático de Direito, não pode subsistir, porque, como observa Mirabete, "nele inexistem regras de igualdade e liberdade processuais" [12].
Nucci também descreve as características do sistema acusatório, que a seguir expõe-se:
(...) nítida separação entre o órgão acusador e o julgador; há liberdade de acusação, reconhecido o direito ao ofendido e a qualquer cidadão; predomina a liberdade de defesa e a isonomia entre as partes no processo; vigora a publicidade do procedimento; o contraditório está presente; existe a possibilidade de recusa do julgador; há livre sistema de produção de provas; predomina maior participação popular na justiça penal e a liberdade do réu é regra. [13]
Considera-se este como sendo o sistema que, atualmente, mais avançou em relação aos direitos e garantias do réu. Na mesma linha, Lopes Jr. pontua: "o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado" [14]. Assim, é o sistema acusatório o mais compatível com os atuais moldes do Estado Democrático de Direito.
O sistema processual misto, conhecido também como acusatório formal, no entendimento de Tourinho Filho é definido como:
(...) qual no tipo inquisitivo, desenvolve-se em três etapas: a) investigação preliminar (de la policie judiciarie), dando lugar aos procés verbaux; b) instrução preparatória (instruction préparatorie); e c) fase do julgamento (de jugement). Mas, enquanto no inquisitivo essas três etapas eram secretas, não contraditórias, escritas, e as funções de acusar, defender e julgar concentravam-se nas mãos do Juiz, no processo misto ou acusatório formal somente as duas primeiras fases é que continuaram secretas e não contraditórias. Na fase de julgamento, o processo se desenvolve oralement, publiquement et contradictoirement. As funções de acusar defender e julgar são entregues a pessoas distintas. [15]
Conforme se denota, esse sistema faz uma mescla entre o sistema acusatório e o inquisitivo, mantendo a mesma base procedimental existente no procedimento inquisitivo, mas adaptando parte dos princípios do sistema acusatório na fase de julgamento. Na doutrina de Lima, o sistema misto é caracterizado "por ter uma fase preparatória marcantemente inquisitiva e, posteriormente, uma fase judicial contraditória, tendo elementos contraditórios e inquisitivos (...) uma mistura dos dois sistemas anteriores" [16].
4. Sistema processual penal brasileiro e o Código de Processo Penal de 1941
Em meados do século XX foi instituído o Código de Processo Penal de 1941, vigente até os dias atuais. Segundo Oliveira, a inspiração da mencionada legislação foi a legislação processual penal italiana, editada na década de 1930, durante o regime fascista, ou seja, a legislação adjetiva penal brasileira, vigente até os dias atuais, possui fortes influências daquele regime. [17] Ainda de acordo com o autor,
(...) o fato da existência de uma acusação implicava juízo de antecipação de culpa, presunção de culpa, portanto, já que ninguém acusa quem é inocente! Vindo de uma cultura de poder fascista e autoritário, como aquela do regime italiano da década de 1930, nada há de se estranhar. Mas a lamentar há muito. Sobretudo no Brasil, onde a onda policialesca do CPP produziu uma geração de juristas e de aplicadores do direito que, ainda hoje, mostram alguma dificuldade em se desvencilhar das antigas amarras. [18]
A autoridade exacerbada e a presunção de culpabilidade eram características básicas do sistema instituído pelo Código de Processo Penal de 1941. O fato da iniciativa da ação penal poder partir do próprio juiz e até mesmo da autoridade policial eram de grande contribuição para a vigência do sistema inquisitivo, o modelo predominante à época.
Apesar das reformas instituídas pela Lei 5.349/67, nas normas processuais penais, que flexibilizou várias regras atinentes ao direito de liberdade, só após a nova ordem constitucional é que houve a possibilidade real de se desvencilhar de grande parte das tendências fascistas e autoritárias daquele código.
Dessa forma, foi com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que apareceu no horizonte normativo pátrio um meio de mudança e de evolução do sistema processual penal vigente. O atual texto constitucional trouxe consigo um sistema de direitos e garantias constitucionalmente positivadas que rompeu com grande parte dos paradigmas existentes anteriormente, conforme será visto adiante.
5. Sistema processual penal brasileiro e o modelo constitucional
Promulgada a Carta Magna de 1988, restava, de um lado, um Código de Processo Penal obsoleto, fundado num autoritarismo fascista, com inúmeras influências inquisitivas, e, de outro, um moderno texto constitucional que instituiu um amplo sistema de garantias individuais. A mudança realmente foi de grande monta. Nessa linha também advoga Oliveira, que preceitua:
(...) a começar pela afirmação da situação jurídica de quem ainda não tiver reconhecida a sua responsabilidade penal por sentença condenatória passada em julgado: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5º, LVII). [19]
O princípio basilar do ordenamento processual vigente antes da Constituição de 1988 (princípio da presunção de culpabilidade) não mais subsistia a nova ordem constitucional. Sem contar ainda que a exclusividade para o exercício da ação penal pública foi dada ao parquet, bem como com instituição das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa – as duas últimas decorrentes da primeira – todas plenamente aplicáveis ao processo penal. [20]
O devido processo legal ou processo justo, segundo Moraes
(...) configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito da liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado por juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). [21]
O sistema de garantias asseguradas constitucionalmente, conforme se denota através dos argumentos expostos no decorrer desta pesquisa, deixa claro que o constituinte de 1988 optou explícita e implicitamente pelo sistema acusatório como regente do processo penal pátrio. Todavia, parte da doutrina diverge com relação ao sistema processual vigente hoje no Brasil, pois o Código de Processo Penal brasileiro prevê uma fase pré-processual com fortes características inquisitivas e, já na fase processual, um sistema de garantias processuais e constitucionais assegurador dos direitos presentes no sistema acusatório.
Nucci entende que "o sistema adotado pelo Brasil, embora não oficialmente, é misto" [22]. O autor argumenta que
(...) há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que o nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado em nítida ótica inquisitiva (...) [23]
À primeira vista, é possível chegar a tal entendimento, uma vez que o anterior padrão processual penal do Brasil dá margem a tal conclusão, e há alguns resquícios disso na atual fase pré-processual. Todavia, com a devida vênia, na presente fase de instrução existe a predominância de princípios acusatórios, ademais, já nesta etapa, vê-se claramente a separação das funções julgadora, acusadora (Ministério Público ou ofendido, este nas ações privadas). Como mencionado anteriormente, quando se tratou do tipo processual misto, percebeu-se que o mesmo é um sistema com três fases muito bem especificadas: a fase da polícia judiciária, a da instrução processual e a do julgamento. As duas primeiras dotadas de claras características inquisitivas, passando a predominar as peculiares do padrão acusatório somente na fase do julgamento, o que não ocorre no padrão brasileiro. No modelo adotado no Brasil, as poucas características inquisitivas que ainda se fazem presentes, só encontram-se visíveis no inquérito policial, vez que na nossa realidade judicial, que compreende tanto a instrução como o julgamento, há total predominância dos fundamentos acusatórios.
Como se percebe apesar do sistema misto ser o adotado por grande parte dos países da Europa Continental, o sistema brasileiro, mesmo com a existência de poucas semelhanças, não se enquadra naqueles padrões. Tourinho Filho adverte: "no Direito pátrio, o sistema adotado é o acusatório". No seu entendimento:
O processo é eminentemente contraditório. Não temos figura de juiz instrutor. A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a Autoridade Policial procede investigação não contraditória, colhendo, à maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o acusador, seja órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por meio de denúncia ou queixa. Já agora, em juízo, nascida a relação processual, o processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo que alguns atos são praticados oralmente, tais como debates em audiências ou sessão). O ônus da prova incube às partes, mas o Juiz não é um espectador inerte na sua produção, podendo, a qualquer instante, determinar de ofício, quaisquer diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. [24]
Também adepto do mesmo entendimento, Mirabete diz:
(...) a Constituição Federal assegura o sistema acusatório no processo penal. Estabelece "o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes" (art. 5º, LV); a ação penal pública é promovida, privativamente, pelo Ministério Público (art. 129, I), embora assegure ao ofendido o direito a ação privada subsidiária (art. 5º, LIX); a autoridade julgadora é a autoridade competente – juiz constitucional ou juiz natural (arts. 5º, LIII, 92 a 126); há publicidade dos atos processuais, podendo a lei restringi-la apenas quando a defesa da intimidade ou do interesse social o exigirem (arts. 5º, LX, e 93, IX). [25]
No mesmo sentido, Oliveira doutrina que, por força dos preceitos constitucionais inerentes ao processo penal, "o nosso processo é mesmo acusatório" [26].
Tendo por base que a investigação preliminar, baseada no sistema inquisitivo, prevista na legislação infraconstitucional, não vincula o entendimento do magistrado, e que na fase processual quase todo o lastro probatório colhido naquela fase poderá ser refeito com a devida garantia de todos os princípios fundamentadores do sistema acusatório, não subsiste a idéia de que o sistema processual penal brasileiro é misto. Deve-se levar em conta que o inquérito policial é um procedimento existente com a finalidade de constituir a justa causa processual, para auxiliar na formação da opinião do titular da ação, não necessariamente do magistrado. Portanto, deve-se entender que o atual sistema processual penal brasileiro é sim acusatório.
Outrossim, na lição de Nucci o inquérito policial é conceituado como "procedimento administrativo realizado pela polícia judiciária para servir de sustentação à denúncia ou queixa, conferindo justa causa à ação penal" [27]. Oliveira também entende que "a fase de investigação (...) tem natureza administrativa" [28].
Ora, como se sabe, no Brasil, há basicamente três patamares processuais: o administrativo, realizado sob responsabilidade das autoridades administrativas; o cível, jurisdição competente para todas as causas patrimoniais públicas ou privadas, presidido por um juiz de direito ou federal, a depender da matéria; e o penal competente para julgar as causas penais, também presidido por um juiz de direito ou federal, conforme o interesse tutelado; sem levar em conta as justiças especiais (militar, trabalhista e eleitoral).
Dessa feita, por ser o inquérito policial um procedimento administrativo, leva-se a crer que, no atual patamar constitucional, as normas que o regem são apenas formalmente processuais, ou seja, apesar de estarem presentes no Código de Processo Penal, não é mais matéria pertinente a esta legislação, perdendo, portanto, o seu caráter de norma materialmente processual. Por isso, o inquérito processual – não obstante o seu caráter inquisitivo – deve ser entendido como uma fase meramente pré-processual.