No que se refere à emenda da mora e antecipação do vencimento da dívida em contrato de financiamento com cláusula de alienação fiduciária, tem sido recorrente a subsunção dos critérios de interpretação do Decreto-Lei nº 911/69 aos princípios protetivos do Código de Defesa do Consumidor. Tão logo passou a viger a Lei nº 8.078/90, o Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema, interpretando o disposto no art. 54 da lei, neste sentido:
Também não é despiciendo ponderar que na recente Lei 8.078/90, relativa à proteção do consumidor, nos contratos de adesão, a cláusula resolutória é admitida – art. 54, § 2º – desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor (salvo nos pactos de consórcio), ou seja, ao consumidor cabe exercer a opção de, ao invés da resolução do contrato em que incorreu em inadimplemento ou mau adimplemento, postular o cumprimento da avença pondo-se em dia com suas obrigações, e efetuando, portanto, a purgação da mora em que incidira. (Recurso Especial 9.219, 4ª Turma do STJ, de 19.06.1991, Rel. Min. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, in ADCOAS, 134135/91.)
Por outro lado, o art. 7º do CDC dispõe que, em relação aos direitos básicos do consumidor, pode o Magistrado se valer do juízo de equidade, daí porque se afigura lícito reconhecer que o devedor em mora tem direito a emendá-la, considerando-se abusiva (e, portanto, não escrita) a cláusula que disponha sobre o vencimento antecipado da dívida em caso de atraso no pagamento, dês que, assim, por via reflexa, estaria sendo obstaculizado o direito de purga da mora.
Com a purga da mora não há nenhum prejuízo para o credor que, além do principal, recebe todos os encargos financeiros, ressarcido, ainda, das custas processuais e honorários de advogado. Entretanto, para o devedor que já pagou parte do preço, o impedimento à purgação da mora equivale à perda do bem, restando-lhe a risível garantia de receber o saldo que eventualmente existir após a alienação extrajudicial do bem.
Desde os primórdios do direito romano, a reparação da mora surgiu como medida de equidade para evitar as graves consequências sofridas pelo devedor. Como anotou o Ministro RUY ROSADO AGUIAR JÚNIOR:
... a simples mora não é causa de resolução, e isso porque a própria lei somente permite ao credor enjeitar a prestação, ofertada após o vencimento e a constituição da mora, se essa prestação se tornar inútil (art. 126, parágrafo único do C. Civil). (in Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor (Resolução), Rio de Janeiro, Aide ed., 1991, p. 120).
Em nota de rodapé (236), acrescenta o autor que, apesar de algumas opiniões em contrário, a maioria da doutrina estrangeira concorda com a insuficiência da mora para a resolução do contrato,
...exigindo que ela afete de maneira grave o interesse do credor.
O próprio Código Civil de 2002 consolidou o entendimento doutrinário que vigorava no sistema anterior, ao estabelecer no parágrafo único do artigo 395 que o credor só pode enjeitar a prestação, devido à mora, se essa se tornar inútil. Ora, a ninguém ocorre que o pagamento de uma, ou mais, prestações em atraso em contrato de financiamento seja inútil para o Banco ou instituição financeira.
Com a edição da Lei nº 10.931/2004 operou-se profunda alteração no regime da ação de busca e apreensão de bens adquiridos através de contrato de financiamento com cláusula de alienação fiduciária. Dentre as modificações introduzidas na lei, avulta de importância a nova redação dada ao artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69, cujo § 2º aboliu a faculdade de emenda da mora por parte do devedor fiduciante que, segundo a atual disciplina, só poderá desconstituir a liminar de busca e apreensão pagando a integralidade da dívida.
Art 3º O Proprietário Fiduciário ou credor, poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciàriamente, a qual será concedida liminarmente, desde que comprovada a mora ou o inadimplemento do devedor.
§ 1º Cinco dias após executada a liminar mencionada no caput, consolidar-se-ão a propriedade e a posse plena e exclusiva do bem no patrimônio do credor fiduciário, cabendo às repartições competentes, quando for o caso, expedir novo certificado de registro de propriedade em nome do credor, ou de terceiro por ele indicado, livre do ônus da propriedade fiduciária. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)
§ 2º No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus. (Redação dada pela Lei 10.931, de 2004)
Não há qualquer dúvida de que o legislador ab-rogou a possibilidade de emenda da mora por parte do devedor quando se referiu ao pagamento da integralidade da dívida como condição para a restituição do bem apreendido. Por força da lei, aliás, a mora foi equiparada ao inadimplemento para efeitos de resolução do contrato. Assim, dada a redação do caput do artigo 2º, do Decreto-Lei nº 911/69, que permite ao credor a venda do bem alienado fiduciariamente a terceiros para a satisfação do crédito, há quem considere confiscatória e inconstitucional, tanto a regra legal que determina o vencimento antecipado da dívida, quanto a que decreta a perda do bem adquirido pelo devedor.
Na faina de interpretação da lei, entretanto, deve-se presumir que o legislador não edita normas inconstitucionais, sendo, pois, cabível a exegese de que as modificações introduzidas pela Lei nº 10.931/2004 simplesmente não se aplicam às relações de consumo. De outra forma, não haveria outra conclusão, se não a de que o legislador editou norma inconstitucional porque o art. 170 da Constituição Federal de 1988 traz norma expressa segundo a qual a Ordem Econômica tem por fim assegurar a justiça social observando, entre outros princípios, a defesa do consumidor.
Afirma-se, por isso, que as disposições draconianas da nova lei somente são aplicáveis àqueles contratos em que não haja relação de consumo porque, em relação a estes, deve-se entender a não incidência de certas disposições normativas, a exemplo daquela que suprimiu a faculdade de emenda da mora, bem assim a que autoriza o vencimento antecipado da dívida.
Tratando-se, como se trata, de contrato de adesão, inda mais se justifica a ingerência dos princípios consumeristas na interpretação da Lei nº 10.931/2004, bem assim do contrato firmado entre as partes, sem perder de vista a razoabilidade dos critérios alvitrados na nova lei. Basta imaginar que no contrato de aquisição de um veículo pelo prazo de 60 meses o mero atraso no pagamento da 1ª ou 2ª prestação mensal acarreta, na prática, a perda do bem financiado porque dificilmente o devedor terá condições de quitar a integralidade da dívida na forma do § 2º do artigo 3º do Decreto-Lei nº 911/69, com a redação dada pela Lei nº 10.931/2004.
Vale registrar que tais contratos têm servido de mola propulsora da produção industrial do país e se destinam à aquisição de veículos e maquinários que, muitas vezes, são instrumentos de trabalho e a fonte de sustento dos devedores. Convém observar, por fim, que a admissibilidade da emenda da mora em contratos de financiamento com cláusula de alienação fiduciária firmados, mesmo após a edição da Lei nº 10.931/2004, parece ser uma decorrência natural dos princípios reitores da função social e econômica do contrato.
Neste sentido, a doutrina de MELHIM NAMEM CHALHUB
Na nova redação, o Decreto-lei nº 911/69 é omisso quanto à purgação da mora mediante pagamento das prestações vencidas, dispondo o § 2° do art. 3° que "o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor-fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.
...
A omissão, entretanto, não afasta a possibilidade de purgação da mora mediante pagamento das prestações vencidas, sobretudo considerando-se a estrutura e a função do contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duráveis e a prioridade que o direito confere à manutenção do contrato.
Com efeito, a par da prioridade que se confere à manutenção do contrato, até mesmo em caso de onerosidade excessiva (Código Civil, art. 479), a mora em contratos dessa espécie enseja a possibilidade de purgação, circunstância que faz convalescer o contrato, só se admitindo a resolução depois de esgotadas todas as oportunidades de emenda da mora.
(in Negócio Fiduciário, 3ª edição, 2006, Editora Renovar, p. 204/212)
Do ponto de vista jurisprudencial, há precedentes no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, bastando mera consulta ao sítio www.tj.rj.gov.br para se verificar que é majoritária a tese no sentido de se admitir a emenda da mora nestes casos. A Vigésima Câmara Cível TJRJ assim decidiu, recentemente (aP. CÍVEL 2008.001.48935)
CONCLUSÃO
Dessa arte, resta claro que, havendo relação de consumo, o devedor em contrato de financiamento com cláusula de alienação fiduciária tem o direito de emenda da mora, devendo o Juiz deferi-la sempre que regularmente requerida.