1 INTRODUÇÃO
Gerou repulsa e comoção a veiculação, na imprensa nacional, de notícia referente a uma menor de nove anos de idade que foi estuprada pelo seu padrasto, um trabalhador rural de vinte e três anos. Grávida de gêmeos já há três meses, pesando apenas 33 quilos e medindo menos do que 1,40 metro, a criança foi submetida a aborto em 05.03.2009, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam). Segundo os relatos reproduzidos pela mídia, ela sofria violência sexual do padrasto desde os seis anos de idade. Também sua irmã, deficiente física e hoje com catorze anos, foi vítima de abusos.
Após a constatação da gravidez, o pai da menor não consentiu com a sua interrupção por motivos religiosos, posição contrária à da mãe, que em 28.02.2009 teria autorizado o início dos procedimentos médicos para a realização do aborto. Mediante a divergência, o Instituto Materno Infantil de Pernambuco (Imip), onde a menor estava internada, preferiu não ministrar os medicamentos abortivos até que houvesse consenso entre ambos. Concomitantemente, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, tentava convencer a mãe da menina a rever sua decisão, tornando a cobertura e a pressão midiáticas sobre o caso ainda maior. Como o Imip receava a realização do aborto sem a autorização do pai da menor, decidiu ingressar com ação na justiça, para que o juiz da Vara da Infância e da Juventude decidisse a questão. Não foi preciso. A mãe da criança levou-a ao Cisam, onde o procedimento foi realizado.
Abordaremos, então os principais aspectos jurídicos atinentes à questão exposta.
2 O ABORTO LEGAL
O aborto é considerado crime pelo ordenamento jurídico brasileiro, por atentar contra o bem jurídico vida, que é o mais caro, imediato e elementar ao homem. No entanto, há duas situações em que se permite a interrupção voluntária da gravidez, realizada por médico, constantes no art. 218 do Código Penal (CP): quando necessário para salvar a vida da gestante (é o chamado aborto terapêutico, ou profilático) ou quando decorrente de estupro (aborto humanitário, ético). Nesse último caso, no entanto, deve haver o consentimento da gestante, ou, se incapaz, de seu representante legal.
2.1 Gravidez com risco de morte para a gestante
Havendo que se optar entre a manutenção da gravidez, com risco de morte ou de sérias complicações tanto para a gestante quanto para o bebê, e entre a interrupção da gravidez, com maiores chances de conservação da saúde da gestante, o sistema jurídico realiza a opção mais racional: permite o aborto. Nesse caso, trata-se de proteger a vida de um ser, em lugar de arriscar severamente a vida de dois. Não é necessário o consentimento da gestante, bastando a avaliação médica que constate o real risco de dano à vida da gestante e do feto. Apenas o médico pode realizar o procedimento abortivo, por ser o profissional capacitado para fazer a avaliação precisa do quadro da gestante, optando pela interrupção da gravidez quando julgar necessário à conservação da sua vida. Ademais, é habilitado a realizar o procedimento com segurança. No entanto, a doutrina entende que, caso haja a realização de aborto por enfermeiros ou outros profissionais, não serão eles punidos, caso a situação se enquadre na hipótese de estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa, que são causas de exclusão da ilicitude. Isso se daria, por exemplo, quando não houvesse médicos disponíveis no local para socorrer a gestante em situação de emergência, como é o caso de um sem número de lugarejos no país, onde as populações são mal atendidas pelo Sistema Único de Saúde, e não possuem condições de se deslocarem a outros lugares para serem atendidos.
No caso em tela, foram divulgadas declarações de médicos que apontaram a existência fatores de risco à saúde da menor grávida. Stevam Rios, coordenador de Alto Risco no Cisam e ex-membro do Comitê de Mortalidade Materna do Recife, afirmou que a manutenção da gravidez poderia levar à morte da menor. O obstetra Olímpio Moraes, chefe do Departamento Materno Infantil da Universidade de Pernambuco corrobora o parecer, asseverando que a gestação seria especialmente arriscada em virtude do não desenvolvimento do útero da menina, o que se agrava quando se trata da gestação de gêmeos, como era o caso.
Não precisa ser especialista para compreender os sérios riscos de saúde que seriam impingidos à menina (de nove anos, que pesa 33 quilos, ressaltamos), caso permanecesse grávida. Nessa situação, podemos enxergar a hipótese de ocorrência de aborto terapêutico. No entanto, em decorrência da grande atenção dada pela mídia ao caso, potencializado pelas declarações de membros da Igreja Católica e pela discordância do genitor da menor quanto à realização do aborto, houve receio da primeira equipe médica que atendeu a criança, que resolveu esperar decisão judicial autorizativa antes de realizar o procedimento, o que poderia trazer ainda mais prejuízos à saúde da gestante, posto que o Ministério da Saúde aconselha que só se realize aborto até a 20ª semana de gestação.
2.2 Gravidez decorrente de estupro
O estupro é crime hediondo previsto no art. 213 do CP, consistente em constranger a mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. A violência é presumida se a vítima tem até catorze anos, é alienada ou débil mental ou não pôde oferecer resistência, de qualquer modo. Assim, a própria gravidez da criança já é prova de que sofreu estupro, independentemente das circunstâncias em que a conjunção carnal ocorreu.
O consentimento é, pois, o único requisito estabelecido em lei para que seja realizado o chamado aborto humanitário, plenamente lícito nessas situações. Não há, assim, a necessidade de apoio em decisão judicial para a sua consumação. O dano à personalidade e à dignidade humana que a continuação da gravidez decorrente de prática de crime hediondo não pode ser perpetuado contra a vontade da mulher. Os diferentes setores da doutrina entendem ser essa uma hipótese de estado de necessidade, inexigibilidade de conduta diversa ou de afastamento da antijuridicidade pela lei. Qualquer que seja a posição adotada, o resultado é o mesmo, preservando a possibilidade de opção da vítima.
No entanto, para a análise do caso proposto, devemos analisar a questão do consentimento do representante da incapaz. Tratando-se de menor, devem ambos os genitores concordar? Pode haver aborto legal mediante consentimento do representante legal, mas com a recusa da criança?
Segundo o art. 1.632, parágrafo único, do Código Civil, quando os pais divergirem sobre o exercício do poder familiar, ao qual estão sujeitos os filhos menores, pode qualquer dos genitores recorrer ao juiz para solução do problema. É o que se aponta ideal nessa situação. No caso em tela, deveria a mãe da menina recorrer à Vara da Infância e da Juventude de Pernambuco, competente para conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna, em relação ao exercício do pátrio poder, quando verificada a ameaça ou violação de direito da criança e do adolescente, nos termos dos arts. 98 e 148, parágrafo único, d, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Quanto à segunda indagação, a redação do art, 128, II, do CP é bastante clara: a realização do aborto humanitário em incapaz prescinde, unicamente, do consentimento do seu representante legal. Não é necessário que haja decisão judicial autorizando o procedimento, a princípio. No entanto, caso a incapaz grávida decida levar adiante a gravidez, mediante negativa do seu representante legal, deve prevalecer a vontade da primeira, visto que a exclusão da tipicidade do aborto ético se deu para evitar a ocorrência de mais danos à personalidade da mulher violentada. Caso ela entenda que a manutenção da gravidez é o que melhor atende aos seus anseios, não há quem possa obrigá-la a interromper a gestação. Seria perpetrar violência quase tão marcante quanto a que ocasionou a concepção do feto.
Na situação inversa, qual seja, quando a menor desejar realizar o aborto ético, mas houver a negativa de seu representante legal, poderá ela recorrer à justiça da infância e da juventude, competente para designar curador especial em procedimentos judiciais ou extrajudiciais em que haja interesses de criança ou adolescente, nos termos do art. 148, parágrafo único, f, do ECA. Sendo o curador o seu responsável legal, poderá ele dar o consentimento necessário. Ressaltamos que tal procedimento, para ser realmente útil, deve ser realizado de forma bastante célere, posto que o avanço do tempo apenas torna a interrupção da gravidez mais arriscada.
É de se destacar que a realização do aborto ético é faculdade da mulher violentada, não tendo qualquer pessoa a prerrogativa de obrigá-la a tomar decisão contrária. Dessa maneira, entendemos que se o médico da rede pública decidir não realizar o procedimento unicamente por motivos pessoais, apesar de presentes os requisitos do Código Penal, poderá ser ele judicialmente demandado para realizar o procedimento, caso não haja outro profissional disponível para atender à mulher violentada.
3 DESDOBRAMENTOS DO CASO
Através de declarações feitas à imprensa pelo Arcebispo de Olinda e Recife, bem como pela advogada da Arquidiocese, vemos que a Igreja Católica pretendia ingressar com ação esdrúxula no poder judiciário, buscando obrigar a menor a permanecer grávida, não obstante a autorização de sua mãe para o aborto e o risco que a manutenção da gestação representava à sua saúde, na abalizada opinião de profissionais da medicina que entraram em contato direto com o caso.
Além de tal fato representar grande intromissão na vida privada, caso realmente ingressasse em juízo, a advogada estaria incorrendo em infração disciplinar, prevista no art. 34 do Estatuto da OAB, podendo lhe ser cominada a sanção de censura. A infração diz respeito à conduta do profissional que advoga contra literal disposição de lei, presumindo-se a boa-fé quando fundamentado na inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior. De qualquer forma, a absoluta falta de interesse na causa bastaria para que a petição inicial fosse indeferida.
Por outro lado, vem sendo noticiado que o Ministério Público de Pernambuco pretende representar contra o pai da menor, que se posicionou contra a realização do aborto, por motivos religiosos. Entendemos que essa não é a melhor solução, posto que a sua discordância não configura qualquer ilícito. Podemos não concordar com suas razões, mas o melhor a fazer é buscar caminhos alternativos, como o que apresentamos no item anterior. Caso a representação venha a ocorrer, será um ato de intolerância e fanatismo equivalente ao do Arcebispo de Olinda e Recife, que excomungou os médicos que exerceram seu dever legal e moral de dar a assistência devida a uma criança que foi violentada e engravidou.
REFERÊNCIAS
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GUANDELINE, Leonardo. Após aborto, menina deve ter alta nesta quinta-feira. O globo. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/cidades/mat/2009/03/05/apos-aborto-menina-de-9-anos-deve-ter-alta-nesta-quinta-feira-754697847.asp>. Acesso em: 05.03.2009.
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