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A confusão entre pessoa física e empresa individual para efeitos de habilitação técnica na licitação à luz do Código Civil

Agenda 12/04/2009 às 00:00

Segundo a teoria do emérito comercialista RUBENS REQUIÃO a pessoa física do proprietário da firma individual se confunde com a própria firma para todos os efeitos. Para J. X. CARVALHO DE MENDONÇA "usando uma firma para exercer o comércio e mantendo o seu nome civil para os atos civis, o comerciante, pessoa natural, não se investe de dupla personalidade; por outra, não há duas personalidades, uma civil e outra comercial" [01].

Entretanto, tal generalização se mostra superada diante da reformulação do direito societário e sua inserção dentro do Código Civil, com a própria revogação do Código Comercial, a evolução dos conceitos de comerciante para empresário e a evolução das escolas européias, às quais o direito empresarial pátrio se filia, principalmente a francesa e italiana.

Dizer desavisadamente que a pessoa física se confunde, para todos os efeitos, e inclusive para comprovação de capacidade técnica em procedimento licitatório, com o empresário individual é ecoar de forma inconseqüente os conceitos fundados por José Xavier Carvalho de Mendonça e pelo memorável Rubens Requião com base no Código Comercial de 1850, que foram integralmente reformulados pelo avanço da doutrina e principalmente pelo novo Código Civil, que passou a tratar do direito de empresa, longe do Código Comercial.

Para começar com autores modernos vale inicialmente a citação de ALFREDO ASSIS GONÇALVES NETO

O Código Civil de 2002, ao trazer o empresário para o centro do sistema, definindo-o como quem exerce atividade econômica de forma organizada, para a produção ou circulação de bens ou serviços, alterou os termos da polêmica: adotou como regra geral, o exercício organizado de toda e qualquer atividade econômica, independentemente da natureza dos atos que a identifiquem, excluindo do respectivo regime, apenas, os que desenvolvem atividade intelectual (art. 966, parágrafo único) e rural (arts. 971 e 984). [02]

O que antes eram conceitos esculpidos com base no Code de Commerce francês, como a definição de comerciante, agora são trazidos pelo Código Civil de forma mais clara e condizente com a modernidade econômica. O direito comercial passa a ser o direito de empresa.

E é desse novo código e desses novos marcos que se tem que extrair as definições de empresário para análise do caso em questão, relacionadas à confusão entre empresário individual e pessoa física, mormente para efeitos de capacitação técnica de cada qual.

Diz o art. 966 do Código Civil

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único: Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Portanto, para o Código Civil é empresário aquele que exerce profissionalmente atividade econômica e organizada.

Contrariamente, segundo o parágrafo primeiro, não é empresário aquele que exerce profissão intelectual de modo organizado, ainda que com o concurso de colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir ELEMENTO DE EMPRESA.

Esse ELEMENTO DE EMPRESA a que se refere o Código Civil é o centro e o objeto jurídico de superior importância para discussão da matéria tratada.

O anteprojeto do Código Civil concedia à parte final do parágrafo único do art. 966 redação semelhante ao art. 2.238 nº 1 [03] do Código italiano a saber: "salvo se o exercício da profissão constituir elemento de atividade organizada de empresa". Assim, a redação original considerava empresário o profissional intelectual quando o exercício de sua profissão constituísse elemento de atividade organizada de empresa. Na redação final da lei foi suprimida a "atividade organizada", restando o vocábulo "elemento de empresa", até porque a atividade econômica organizada já está contida no caput. Em que pese a supressão, o texto não perdeu o sentido.

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É de suma importância caracterizar a atividade organizada de empresa. Para RUBENS REQUIÃO empresa é a organização dos fatores da produção exercida, posta a funcionar, pelo empresário. Desaparecendo o exercício da atividade organizada do empresário, desaparece, ipso facto, a empresa. Daí por que o conceito de empresa se firma na idéia de que é ela o exercício de atividade produtiva. [04]

O que ocorre é que se estabelece confusão entre empresa e sociedade empresária. Como dissemos, empresa é o exercício da atividade organizada, enquanto que sociedade empresária é o sujeito de direito que exerce a atividade.

Assim, a empresa (atividade organizada de produção) pode ser exercida tanto pela sociedade empresária (pluralidade de sócios) quanto pelo empresário individual (unicidade).

Portanto, o empresário individual deve exercer profissionalmente atividade organizada de empresa, organizando e coordenando os diversos fatores de produção, assim tidos como bens (máquinas, equipamentos, instalações, capital, etc.) e pessoas (trabalho, conhecimentos, intelectos, habilidades, relacionamentos, etc.). Estes fatores de produção são os ELEMENTOS DE EMPRESA.

Posto isto consideremos para efeito de análise que o empresário individual exerça atividades de empresa de execução de obras civis e que a pessoa física do empresário exerça a profissão de engenheiro civil, portanto profissão de natureza intelectual.

Considerando que a pessoa física em análise exerce a profissão intelectual de engenheiro civil ele jamais poderia ser considerado empresário individual na medida que o parágrafo único do art. 966 do Código Civil excepciona o seu caput, onde se encontra a definição de empresário. Em outras palavras o engenheiro pessoa física não pode ser considerado empresário individual.

Excepcionando a exceção, a parte final do mesmo parágrafo único ressalva a hipótese do exercício da profissão intelectual ser considerado empresário SE a sua atividade profissional constituir elemento de atividade organizada de empresa. Assim, o empresário individual, apesar de não ter sócios para formar, então, a sociedade empresária, não exerce a atividade empresária sozinho e com as próprias mãos. Depende ele de uma organização para tanto. Uma organização empresária contendo elementos de empresa.

Diferente é a situação do engenheiro que, ainda que em concurso com assistentes, exerça a sua profissão de engenheiro, por exemplo, projetando uma barragem. Isto não é atividade de empresa mas sim atividade intelectual inerente à profissão.

O engenheiro pode sozinho, ou com auxílio de poucos, projetar uma barragem de grande porte. Entretanto, não pode construir sozinho (com as próprias mãos) esta mesma barragem. Para construir a barragem irá precisar de uma organização de pessoas, materiais e equipamentos que, ao seu comando, irão executar os serviços da obra.

Para entender o fato ALFREDO ASSIS GONÇALVES NETO traz importante exemplificação

Sujeita-se às disposições do direito de empresa e, portanto, considera-se empresário o intelectual que contribui com seu trabalho profissional para um produto ou serviço diverso e mais complexo em relação àquele de sua habilitação, como seriam, dentre outros, (i) o contabilista em uma atividade de consultoria, cujos contornos exigem auditoria, marketing, etc., (ii) o médico que agrega à prática da medicina um SPA, onde seu paciente oferece repouso e refeições, (iii) o veterinário que, além do seu ofício, hospeda animais na viagem de seus donos, (iv) o engenheiro calculista que mantém um empreendimento de construção civil, (v) um técnico de informática que agrega à sua atividade intelectual a exploração comercial de softwares e assim por diante. [05]

Mais adiante o mesmo autor cita, de forma esclarecedora, Sylvio Marcondes

(...) cita, como exemplo bem claro a posição do médico, o qual, quando opera, ou faz diagnóstico, ou dá terapêutica, está prestando um serviço resultante da sua atividade intelectual, e por isso não é empresário. Entretanto, se ele organiza fatores de produção, isto é, une capital, trabalho de outros médicos, enfermeiros, ajudantes, etc., e se utiliza de imóvel e equipamentos para a instalação de um hospital, então o hospital é empresa e o dono ou titular desse hospital, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, será considerado empresário, porque está, realmente, organizando fatores de produção, para produzir serviços. [06]

Trazendo o exemplo para o caso em discussão, não é o empresário individual que irá dirigir o caminhão que trará a pedra para a obra, que operará o trator, a escavadeira, a enxada, procederá as compras, emitirá as notas, ou o que for necessário para a execução dos serviços, até porque seria humanamente ou cronologicamente impossível. Quem executará todas estas atividades serão os "elementos de empresa" coordenados pelo engenheiro responsável técnico.

Posto desta forma fica evidente que há uma dicotomia entre a pessoa física do engenheiro e o empresário individual. O engenheiro exerce atividade intelectual, enquanto que o empresário individual, por seus elementos de empresa, presta serviços de obras.

Dessa dicotomia surge a necessidade de individualização da comprovação técnica profissional e operacional, segundo os termos da Lei de Licitações.

A capacitação técnico-profissional de que trata o inciso I do § 1º do art. 30 da Lei de Licitações diz respeito ao profissional de nível superior registrado no órgão competente, empregado da licitante, que irá gerenciar e se responsabilizar tecnicamente pelo empreendimento. A lei exige que este profissional apresente atestados que comprovem experiência técnica anterior na execução de objetos similares.

A capacidade técnico-operacional diz respeito à comprovação de que o empresário (sociedade empresária ou empresário individual) tem capacidade para reunir de forma organizada os elementos necessários para prestação dos serviços a serem executados pela organização através de demonstração de suas experiências anteriores que comprovem a qualidade dos serviços ou obras já realizadas.

Nessa diferenciação é esclarecedora a tese de MARÇAL JUSTEN FILHO

A conjugação de esforços permanentes e a interiorização de valores comuns produz organizações estáveis, cuja existência transcendem os indivíduos que a integram. Vale transcrever o trecho de Asquini, a propósito da empresa. Afirmou que "o empresário e seus colaboradores dirigentes, funcionários, operários, não são de fato, simplesmente uma pluralidade de pessoas ligadas entre si por uma soma de relações individuais de trabalho, com fim individual; mas formam um núcleo social organizado, em função de um fim econômico comum, no qual se fundem os fins individuais do empresário e dos singulares colaboradores: a obtenção do melhor resultado econômico, na produção". [07]

Mais adiante o mesmo autor complementa:

Utiliza-se a expressão "capacidade técnica operacional" para indicar essa modalidade de experiência, relacionada com a idéia de empresa. Não se trata de haver executado individualmente uma certa atividade, produzida pela atuação pessoal de um único sujeito. Indica-se a execução de um objeto que pressupôs a conjugação de diferentes fatores econômicos e de uma pluralidade (maior ou menor) de pessoas físicas (e, mesmo, jurídicas). [08]

Diante dos argumentos listados é possível divisar cristalinamente a dicotomia entre a necessidade de comprovação de capacidade técnica-profissional, que seria a competência dos engenheiros disponíveis nos quadros da empresa, da capacidade técnico-operacional, que seria a capacidade da empresa em executar obras. O simples fato da pessoa física do engenheiro possuir atestados de capacidade técnica não estende automaticamente esta capacidade para o engenheiro empresário individual em uma confusão de competências.

Portanto, não se pode afirmar que a pessoa física e o empresário individual se confundam para efeitos de comprovação de capacidade técnica para efeitos de licitação. São competências diametralmente diferentes e que não podem cair na argumentação comum da confusão entre pessoas destas naturezas.


Referências bibliográficas

GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. São Paulo: Editora RT, 2007.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 8ª. Ed. São Paulo: Dialética, 2001.

MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Vol. II. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1953.

REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. Vol 1, 24ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

________________. Curso de direito comercial. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1973.


Notas

  1. Tratado de direito comercial brasileiro. Vol. II. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1953, p. 166.
  2. Direito de Empresa. São Paulo: Editora RT, 2007, p. 60.
  3. Art. 2.238. Se l''esercizio della professione costituisce elemento di un''attività organizzata in forma di impresa, si applicano anche le disposizioni del titolo II.
  4. Curso de Direito Comercial. Vol 1. 24ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 59.
  5. Direito de Empresa. São Paulo: Editora RT, 2007, p. 70.
  6. Ibidem.
  7. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 8ª. Ed. São Paulo: Dialética, 2001, p. 332.
  8. Idem, p. 333.
Sobre o autor
Carlos Alexandre Perin

advogado em Curitiba (PR), especialista em Direito Empresarial

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERIN, Carlos Alexandre. A confusão entre pessoa física e empresa individual para efeitos de habilitação técnica na licitação à luz do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2111, 12 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12596. Acesso em: 27 nov. 2024.

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