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A Lei nº 11.923/09 e o famigerado sequestro-relâmpago.

Afinal, que raio de crime é esse?

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Agenda 06/05/2009 às 00:00

1. INTRODUÇÃO

Há muito tempo que a subtração ou obtenção, mediante violência e/ou grave ameaça de bens das pessoas tem eventualmente ocorrido com o adicional do cerceamento da liberdade da vítima pelo infrator, seja como meio usado para a realização do crime patrimonial, seja como conduta posterior, motivada pelas mais variadas razões.

Ocorre que o advento da tecnologia, especificamente aquela aplicada aos serviços bancários, acabou por intensificar tal procedimento criminoso. Com o surgimento e a disseminação dos caixas eletrônicos de autoatendimento (caixas 24 horas), elevou-se bastante a estatística dessa espécie de ocorrência. As "vantagens" assim apresentadas pelo sistema bancário aos seus clientes, acabam sendo muito mais interessantes para os próprios bancos do que efetivamente para o público. É claro que isso não é nenhuma surpresa ou exceção à regra, mas parece que muito poucas pessoas se dão conta da lesão que sofrem, travestida em supostos benefícios.

A lesão ao público inicia-se por uma forma sutil de prestação de serviços a terceiros sem contraprestação, numa discreta proximidade com uma situação de "trabalho escravo" descontínuo ou pontual e sem necessidade de uso de coação física ou moral. As pessoas são convertidas em assemelhados a "escravos" pelos bancos, através do recurso não violento do engodo, que as transforma em algo pior do que simples "escravos"; as converte em "escravos satisfeitos". Afinal, quando um cliente vai a um banco fazer um saque, um depósito, pagar uma conta etc., deveria receber o atendimento de um funcionário. No autoatendimento o cliente presta esse serviço ao banco e nada recebe em troca. Aliás, embora a proximidade com o "trabalho escravo" seja abrandada pela ausência de coação, cerceamento da liberdade etc., em certos pontos é pior. Isso porque, ao que se saiba, os antigos escravos não costumavam, além de nada receberem por seu trabalho, ainda pagarem para trabalhar. E é isso que hoje, "alegremente", todos fazem para os bancos quando utilizam o "vantajoso" autoatendimento. [1] Note-se também que a lesão à sociedade é ainda maior se for levada em consideração a eliminação dos inúmeros postos de emprego que seriam ocupados por bancários que deveriam atender aos clientes.

Mas, não é somente sob o aspecto da exploração descarada, ocultada pelo engodo do discurso da modernidade ágil, autônoma e eficiente, que o sistema de autoatendimento tem causado prejuízos às pessoas e vantagens muito maiores aos bancos. Como já mencionado, acresce-se o problema da segurança. O acesso do cliente aos terminais em locais e horários nos quais não se disponibiliza um sistema adequado de segurança, certamente é um dos motivos do assustador incremento das condutas criminosas objeto desse estudo. Ora, se os bancos pretendem ofertar serviços e facilidades a seus clientes, tendo como um dos motivos a enorme ampliação do número de usuários das agências, deveria efetuar o devido investimento, inclusive prestando sua cota de contribuição à sociedade com a respectiva criação de empregos para bancários e agentes de segurança necessários para um verdadeiro atendimento 24 horas.

Inobstante a clareza do absurdo da situação exposta, com seus consequentes prejuízos sociais em prol dos interesses de um segmento privilegiado e restrito, a verdade é que muito poucos ou quase ninguém se dá conta da realidade em geral e especificamente de seu matiz criminógeno.

O enfrentamento da questão acaba, como usualmente acontece, se reduzindo obtusamente a aparentes e meramente simbólicas reações repressivo – punitivas de cariz jurídico – penal.

O Direito Penal aparece como a "solução" mais fácil ao alcance do legislador e de maior apelo popularesco e demagógico. Para cada problema uma nova lei penal é editada como suposta solução, acalmando a mídia e a população. E ainda que o mesmo problema retorne à pauta, sempre haverá uma nova lei penal a ser elaborada, aprovada e apresentada como solução. Essas soluções aparentes vão se sucedendo, enquanto os problemas se agigantam e, quando se resolvem ou ao menos se abrandam, isso ocorre por naturais ajustes sociais que nada têm a ver com as leis penais ou qualquer medida legislativa ou governamental.

Vale sempre lembrar a lição de Alberto Silva Franco quanto à inconveniência do chamado "pampenalismo" ou uso do Direito Penal "como uma espécie de ‘panaceia’ para todos os males". Isso não só é ilusório como solução para os problemas sociais, como produz uma verdadeira "bastardização desse instrumento de controle social", podendo conduzir à sua absoluta "desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia". [2]

O mal do "Direito Penal Simbólico" tem se alastrado com terríveis consequências, pois não somente oferta soluções ilusórias, como afasta e retira o estímulo da busca de caminhos reais. Nas palavras de Zaffaroni e Batista:

"Se em lugar de procurar soluções apela-se para a reiteração de um discurso que só traz tranquilidade através de uma solução ilusória (porque se baseia em uma falsa causação social), não só não se solucionará o problema, como também acontecerá algo pior: a procura de soluções reais será desestimulada, porque o ilusório ocultará o urgente". [3]

O que torna toda essa situação ainda mais grave é a presença constante de uma espécie de cegueira por parte de toda a sociedade e até mesmo dos juristas especializados, levando-os a frequentemente não se darem conta do ridículo do discurso penal onipotente que adorna as medidas criminais simbólicas.

Percebe-se claramente que "o direito penal não incorporou a seu horizonte os limites factuais e sociais do poder punitivo" [4], de modo que reiteradamente, inclusive por obra de seus cultores e estudiosos, se autoatribui qualidades e capacidades que não tem, naquilo que Salo de Carvalho com propriedade denominou de "Narcisismo Penal". Desprovida da importante virtude de reconhecer seus limites, a ciência penal erige um ideal de crença na "eficiência do controle punitivo do delito e do desvio", que passa muito longe da realidade. [5]

Na realidade esse narcisismo que domina o Direito Penal não constitui apanágio exclusivo das ciências criminais. As ciências em geral e os avanços tecnológicos têm sido constantemente apresentados como caminho seguro para a construção de um mundo melhor. Existe um verdadeiro culto, uma inabalável fé numa certa "filosofia do progresso", a que alguns chegam a denominar de "teologia do progresso". [6] Essa crença desmedida no progresso científico em geral como praticamente ilimitado produtor do "bem" e desprovido de "mal" não é produto exclusivo de um positivismo cientificista ao estilo e da época de Auguste Comte ou Herbert Spencer. As raízes dessa fé no saber, desprezando seus limites, de forma a praticamente identifica-lo ao poder, inclusive atribuindo aos sábios a exclusiva legitimidade do exercício do poder político, remonta a Sócrates e Platão, desembocando num discurso científico que quase invariavelmente "encobre uma autêntica vontade de capacidade e de poder". [7] O narcisismo, a incapacidade de reconhecer os próprios limites, pode corroer as ciências em geral, levando a terríveis equívocos, distorções e dilemas éticos. Como bem destaca Carvalho:

"O encantamento do homem teórico com sua racionalidade, manifestação exemplar do narcisismo dos cientistas da modernidade – e dentre eles os teóricos das ciências criminais -, impediu perceber as limitações e os riscos da técnica. Ao pensar estarem domando a natureza (crime, violência) através dos instrumentos criados pela razão (direito penal, processo penal, criminologia e política criminal), foram, lentamente, dominados pelo ideal científico, o qual impediu notar que ‘dominar a ciência é determinar seu valor no sentido de controlar a exorbitância de suas pretensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver. É formular a questão dos limites". [8]

Esse narcisismo surge de forma mais pujante nas ciências criminais e, especialmente, no Direito Penal, por tratar-se de uma "ciência normativa", a qual produz e pode alterar seu próprio objeto de trabalho. As normas penais são criadas, alteradas, estudadas e aplicadas pelo próprio Direito, diferentemente das outras ciências que encontram um limite externo e indelével no fato da ausência de identidade com seu próprio objeto de pesquisa e trabalho. Por mais que um biólogo creia em sua capacidade de criar um ser humano num laboratório por reprodução assexuada, dotado de asas e capaz de voar, não o poderá fazer no presente. Mas, um legislador pode à vontade criar leis penais na crença de combater males sociais os mais variados, por mais absurdas que sejam suas pretensões.

Portanto, como bem aponta Hans Jonas, a "humildade" exsurge como uma virtude necessária enquanto "antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica" [9], a qual em nosso caso se converte na incontinência da produção legislativa criminal com sua ilusória onipotência solucionadora.

O fenômeno dos apelidados "seqüestros – relâmpago" foi mais um que gerou a reação do legislador mediante o manejo irresponsável e irrefletido (?) de um "Direito Penal Simbólico".

No decorrer deste trabalho proceder-se-á a uma apresentação do tratamento do tema em relação às normas penais, enfocando duas alterações legislativas que pretenderam (?) tratar da matéria a contento. A primeira pela Lei 9426, de 24 de dezembro de 1996, que acrescentou o inciso V, no § 2º., do artigo 157, CP, fazendo nascer uma nova causa de aumento de pena no crime de roubo "se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade". A segunda, mais recente, pela Lei 11.923, de 17 de abril de 2009, que acrescenta um § 3º., no artigo 158, CP, passando a prever modalidades de extorsão qualificada, com penal de "reclusão, de 6 a 12 anos e multa", "se o crime é cometido mediante restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica". E com as penas do "artigo 159, §§ 2º. e 3º., respectivamente", caso resulte "lesão corporal grave ou morte".

Afora as críticas já expostas quanto ao caráter eminentemente simbólico dessas alterações legislativas, pretende-se demonstrar o emaranhado legal produzido, ocasionando dificuldades interpretativas e aplicativas dos dispositivos legais, o que não contribui para a segurança jurídica e muito menos para a redução dos índices de violência e criminalidade.

Ao final serão retomadas as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto, apresentando as respectivas conclusões.


2. O FAMIGERADO "SEQUESTRO – RELÂMPAGO" E A LEI

2.1. DISTINÇÃO ENTRE ROUBO E EXTORSÃO

É inegável que quando se trata das condutas apelidadas midiaticamente de "seqüestros – relâmpago", versa-se sobre crime de natureza patrimonial e mais especificamente gravita-se entre os delitos de roubo e extorsão, quando não de extorsão mediante seqüestro.

Seria, portanto, impossível deslindar os questionamentos objeto deste trabalho sem incursionar pela tormentosa distinção levada a efeito entre trancos e barrancos na doutrina e na jurisprudência entre os crimes de roubo e de extorsão.

A extremada semelhança existente entre o roubo e a extorsão leva a literatura jurídica e a jurisprudência a divergir bastante quanto aos critérios que permitem apartar uma infração penal da outra.

Podem-se apontar, resumidamente, as seguintes orientações: [10]

Frente a essa prodigalidade de critérios a jurisprudência e o entendimento dos estudiosos são vacilantes. Em sua obra, Mirabete e Fabbrini apresentam duas decisões jurisprudenciais sobre o tema: uma adotando o critério diferenciador simplista da análise reduzida à subtração ou tradição. Se o bem é subtraído há roubo; se a vítima entrega o bem constrangida pelo agente há extorsão. Outra que ultrapassa a análise reduzida à tradição ou subtração, para exigir que em caso de tradição a vítima não esteja totalmente submetida ao agente, caso em que, independentemente da entrega, haveria roubo. [11]

Por seu turno Nucci [12] e Capez [13] deixam claros seus entendimentos quanto a configurar-se extorsão sempre que o comportamento da vítima seja imprescindível. O critério adotado por tais autores é o de que, independentemente da tradição ou não, haverá extorsão sempre que a colaboração da vítima for "conditio sine qua non" para a obtenção da vantagem patrimonial no caso concreto.

Malgrado toda essa polêmica, tem predominado doutrinária e jurisprudencialmente uma interpretação que agrega um pouco de cada um dos critérios apontados, dando ênfase à subtração/tradição, mas também ao grau de liberdade da vítima quando da entrega do bem.

É possível delinear um breve roteiro para a distinção entre roubo e extorsão, considerando o pensamento predominante:

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Em primeiro lugar o critério da subtração/tradição deixa claro que sempre que houver subtração por parte do agente trata-se de roubo. Nesses casos nada mais precisa ser perquirido, eis que o verbo do artigo 157, CP, já soluciona qualquer dúvida.

Na verdade o problema encontra-se nos casos em que há tradição do bem pela vítima. Para alguns, como já visto, seria diretamente o caso de extorsão. No entanto, esse não tem sido o entendimento prevalente. Tem sido majoritariamente defendida a tese de que quando houver a entrega do bem pela vítima, haverá apenas um indício (a ser confirmado) da presença da extorsão e não do roubo. A confirmação quanto à ocorrência de extorsão ou roubo nesses casos dar-se-á por meio da avaliação do grau de liberdade decisória da vítima no momento da entrega. Se a vítima é absolutamente constrangida pelo criminoso, entregando-lhe os bens, como um instrumento seu, como uma verdadeira "longa manus" do infrator, inobstante a presença da tradição, o crime é de roubo. Se, por outro lado, a vítima, ao entregar o bem tem certo grau de deliberação, certa autonomia de decisão, realmente haveria um crime de extorsão. Para esse pensamento nem mesmo a imprescindibilidade da colaboração da vítima no caso concreto seria decisiva e sim a sua possibilidade de tomar decisões. Mesmo que sua colaboração seja imprescindível, se o ofendido não tiver espaço para deliberar o crime será de roubo, pois que é instrumentalizado pelo agente, equiparando-se tal situação àquela da subtração. Isso porque a conduta praticada de fato pela vítima sob coação absoluta não contém valor jurídico, devido à ausência de qualquer voluntariedade.

Neste sentido a lição de Rogério Greco, alicerçada no escólio de Weber Martins Batista:

"Entendemos que o melhor critério para a distinção entre o roubo e a extorsão reside no fato de que, na extorsão, há necessidade de colaboração da vítima, conjugada com um espaço de tempo, mesmo que não muito longo para que esta anua ao constrangimento e entregue a vantagem indevida ao agente. No roubo, como dizia Carrara, o mal é imediato. Aqui, mesmo que sem colaboração da vítima o agente não pudesse obter a vantagem indevida (compreendido, aqui, o patrimônio alheio), o fato de não ter um tempo para refletir sobre a exigência que lhe é feita mediante violência ou grave ameaça faz com que o crime seja de roubo". [14]

Em posição similar encontra-se Bitencourt, afirmando:

"No roubo, o agente toma a coisa, ou obriga a vítima (sem opção) a entrega-la; na extorsão, a vítima pode, em princípio, optar entre acatar a ordem e oferecer resistência". [15]   

Pode-se sumariar esse entendimento predominante que congrega os critérios da subtração/tradição, do tempo, da imprescindibilidade/prescindibilidade da colaboração da vítima e acrescenta a análise de seu grau de liberdade deliberativa, de acordo com o seguinte quadro:

CRIMES

SUBTRAÇÃO

ENTREGA

DECISÃO DA VÍTIMA

ROUBO

OK

POSSÍVEL

NULA

EXTORSÃO

N/C

NECESSÁRIA

OK

Exemplificando, no caso de um "assalto", em que o agente obriga a vítima a entregar-lhe os pertences, mediante ameaça com arma de fogo, inobstante a entrega dos bens pelo próprio ofendido, o crime é de roubo, já que não tinha este, no caso enfocado, nenhuma capacidade deliberativa. A vítima atuava como mero instrumento nas mãos do agente. Sua conduta não era dotada da voluntariedade mínima necessária para que passasse a ter valor jurídico.

Neste sentido existe decisão jurisprudencial paradigmática assim versada:

"No assalto, é irrelevante que a coisa venha a ser entregue pela vítima ao agente ou que este a subtraia. Trata-se de roubo. Constrangido o sujeito passivo, a entrega do bem não pode ser considerada ato livremente voluntário, tornando tal conduta de nenhuma importância no plano jurídico". [16]

De outra banda, se alguém recebe um telefonema em que o interlocutor exige certa quantia em dinheiro, sob ameaça de morte da vítima, o crime certamente é de extorsão. A vítima não só entregará o valor, como o fará com certo grau considerável de poder decisório, bastante diferente daquele que é coagido com uma arma de fogo engatilhada e apontada para sua cabeça.

Percebe-se que a distinção entre roubo e extorsão não é pacífica, mas tem encontrado no último critério mencionado, que aborda a questão de forma mais abrangente, um bom norte para os aplicadores das normas.

Agora resta abordar a problemática dos denominados "sequestros–relâmpago", os quais suscitam certa perplexidade quanto ao devido enquadramento típico. Resta saber se o advento das leis que pretenderam solucionar essa questão realmente propiciou um esclarecimento para o caso ou apenas exacerbou as dificuldades.

2.2. "SEQUESTRO – RELÂMPAGO": AFINAL, QUE "RAIO" DE CRIME É ESSE?

a) A CASUÍSTICA

A reiteração de certas modalidades de condutas criminosas em que o infrator, para subtrair bens da vítima ou obter vantagens patrimoniais desta, a mantém em situação de restrição de liberdade, acabou ensejando o surgimento da nomenclatura de apelo midiático e uso no jargão policial e forense de "seqüestro – relâmpago".

Inexiste tal expressão como "nomen juris" de qualquer conduta típica prevista no Código Penal ou na legislação esparsa. Contudo, a Lei 11.923/09 teve a inconveniência e o mau gosto de utilizar o termo em sua ementa, afirmando que se destina a "tipificar o chamado ‘sequestro – relâmpago’".

Diz-se "mau gosto" porque a lei formal deve ser técnica, utilizar uma linguagem culta e não se deixar contaminar por jargões que beiram à gíria. Se a coisa continua nessa toada, qualquer dia acorda-se com uma reforma do Código de Processo Penal, referindo-se à "confissão" como "papo reto" (sic)! Ou quem sabe, numa nova Lei de Abuso de Autoridade, essa modalidade criminosa ganhe o "nomen juris" de "esculacho" (sic)! Para arrematar, poderia ser dada nova redação ao homicídio como: "Zerar" (sic) alguém!

Fala-se em "inconveniência" porque o texto da ementa, referindo-se à suposta tipificação do "sequestro – relâmpago", dá a entender que todos os casos que têm recebido esse nome informal seriam necessariamente abrangidos pelo novo texto legal.

Tal impressão é absolutamente falsa. A Lei 11.923/09 não cria um crime autônomo que seria chamado doravante de "sequestro – relâmpago". Aliás, somente menciona a infeliz expressão em sua ementa, sem criar algum novo "nomen juris". O que faz efetivamente a Lei 11.923/09, como já mencionado alhures, é apenas e tão somente acrescer um § 3º. ao crime de extorsão (artigo 158, CP). Nesse § 3º., prevê a novel legislação uma modalidade de extorsão qualificada pelo fato de ser o crime "cometido mediante a restrição de liberdade da vítima", sendo que "essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica". Nesse caso a pena sobe para "reclusão, de 6 a 12 anos, além da multa". O mesmo dispositivo prevê duas outras qualificadoras quando, nas mesmas circunstâncias, resultar "lesão corporal grave ou morte" da vítima. Para estes casos indica a lei as mesmas penas previstas no "artigo 159, §§ 2º. e 3º., respectivamente", ou seja, as penas estabelecidas para o crime de "extorsão mediante sequestro" qualificado pelos mesmos resultados.

Assim sendo, o primeiro requisito para que um caso concreto possa ser tipificado no atual artigo 158, § 3º., CP, é que se trate realmente de um caso de extorsão. É, portanto, relevante ter em mente a distinção entre esta e o roubo, vez que a Lei 11.923/09 também não revogou o artigo 157, § 2º., V, CP, que trata do roubo praticado mediante restrição da liberdade da vítima. [17]

A tudo que já era tormentoso conseguiu o legislador acrescer uma nova complicação. Torna-se impossível não dar razão a Erasmo de Roterdam quando afirma que os juristas são mestres em fazer parecer complicado o que poderia ser simples. Em suas palavras:

"Pretendem os advogados levar a palma sobre todos os eruditos e fazem um grande conceito da sua arte. Ora, para vos ser franco, a sua profissão é, em última análise, um verdadeiro trabalho de Sísifo. Com efeito, eles fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma. Que são o digesto, as pandectas, o código? Um amontoado de comentários, de glosas, de citações. Com toda essa mixórdia, fazem crer ao vulgo que, de todas as ciências, a sua é a que requer o mais sublime e laborioso engenho. E, como sempre se acha mais belo o que é mais difícil, resulta que os tolos têm em alto conceito essa ciência". [18]

Se a "mens legislatoris" era, como parece ser, a de que toda a casuística informalmente rotulada de "sequestro – relâmpago" fosse tipificada no artigo 158, § 3º., CP, certamente falhou de modo retumbante. E falhou porque não se deu conta do óbvio.

O óbvio neste caso é que uma expressão vulgar como "sequestro – relâmpago" somente pode ser dotada de caráter polissêmico, abrangendo os mais variados sentidos de acordo com o uso mais ou menos amplo dado pelo vulgo. E o legislador fez indevidamente referência a uma expressão que tal como se fosse dotada de definição segura, inequívoca e semanticamente determinável. Agiu, enfim, como se "sequestro – relâmpago" fosse um conceito ou uma definição juridicamente determinada, passando apenas a alocar-se no novo § 3º., do artigo 158, CP.

O legislador não se deu conta (incrivelmente) de que laborava exatamente no intuito de produzir uma definição jurídico – penal dessa conduta, justamente porque a considerava indefinida, carente de uma adequação típica segura e obediente ao Princípio da Estrita Legalidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Apenas a título de exemplificação, passa-se a arrolar alguns modelos casuísticos de situações que podem ensejar a aplicação do rótulo de "sequestro – relâmpago", de acordo com o uso ordinário e corrente dessa expressão popular:

b) OS ADVENTOS DAS LEIS 9426/96 E 11.923/09 E SEUS EFEITOS

Qualquer um que esteja minimamente atento às distinções entre roubo e extorsão, certamente já se deu conta de que nem todos os casos chamados popularmente de "sequestro – relâmpago" podem ser classificados na forma de uma modalidade de extorsão qualificada como pretende o legislador com a edição da Lei 11.923/09. Aliás, já deve ter percebido que, embora não seja impossível haver casos que se adequem à nova modalidade de extorsão qualificada, os eventos de maior incidência prática são afetos ao roubo com aumento de pena (artigo 157, § 2º., V, CP).

Antes de apresentar uma tipificação considerada mais correta para cada um dos casos elencados no item antecedente, é interessante proceder a uma exposição do estado da arte até o advento da Lei 11.923/09 quanto à questão da restrição da liberdade como meio para a obtenção de vantagem em crimes patrimoniais.

Uma primeira observação de relevo diz respeito ao fato de que nem sempre existiu uma majorante (causa de aumento de pena ou qualificadora) devido à restrição da liberdade da vítima como meio para a prática do roubo ou da extorsão. Foi a Lei 9426/96 que inaugurou esse tratamento do tema, especificamente para os casos de roubo. Quanto à extorsão, até a edição da Lei 11.923/09, não havia previsão de majorante para tais situações.

Anteriormente ao surgimento das respectivas majorantes a questão se resumia a discernir se deveria haver concurso entre os crimes de roubo ou extorsão com o crime de sequestro ou cárcere privado (artigo 148, CP); ou se os crimes patrimoniais sobreditos deviam absorver o sequestro como crime – meio.

O entendimento mais abalizado seria o de que se a restrição da liberdade fosse mínima, concernente apenas e tão somente ao tempo estritamente necessário para a empreitada patrimonial, o sequestro deveria ser absorvido. Porém, se este fosse perpetrado de maneira autônoma, extrapolando a condição de simples meio para a prática dos delitos patrimoniais, a melhor solução seria o concurso de crimes, gravitando a jurisprudência entre o concurso material e o formal, embora pareça ser o primeiro o mais adequado ao caso. [19]

Com o advento da Lei 9426/96, nada se alterou para a extorsão. Quanto ao roubo, porém, passou a restrição da liberdade da vítima como meio para a subtração a configurar causa especial de aumento de pena, nos termos do artigo 157, § 2º., V, CP.

Inobstante tal inovação, também naquela época não passou todo e qualquer "sequestro – relâmpago" a configurar roubo majorado. Além dos casos de extorsão, também quando o roubo não seja crime – fim e o sequestro crime – meio, segue devendo ser aplicado o concurso de crimes, conforme anteriormente consignado.

Assim, leciona Ney Moura Teles que para que o sequestro seja considerado como majorante, deve satisfazer a dois requisitos: o tempo da restrição da liberdade deve ser "curto" e essa restrição deve manter "nexo de necessidade" com a subtração. [20]

Após tantas críticas à Lei 11.923/09, é preciso reconhecer que ao menos parcialmente esta veio a colmatar certa lacuna no ordenamento penal. Trata-se do fato de que a restrição da liberdade majorava o roubo e não agravava a extorsão, sem que houvesse um motivo palpável para esse tratamento discrepante.

Por outro lado, porém, é preciso retomar a visão crítica para destacar que, com ou sem tratamento formalmente igualitário entre roubo e extorsão, a majorante em testilha foi uma inovação inútil. Isso porque, mediante uma simples constatação da realidade cotidiana pode-se verificar que na esmagadora maioria dos denominados "sequestros – relâmpago", os crimes são praticados mediante uso de arma e/ou concurso de agentes, o que já ensejava naturalmente o aumento de pena, tanto no roubo, como na extorsão (vide artigos 157, § 2º., I e II e 158, § 1º., CP). [21]

Na verdade, o que ocorria antes da Lei 11.923/09 era que a restrição da liberdade não era mencionada como majorante na extorsão e sim no roubo. Mas, ao fim e ao cabo, na grande maioria das vezes, tanto os casos de roubo como de extorsão perpetrados nessas circunstâncias eram majorados pelo emprego de arma e/ou pelo concurso de agentes. Em suma, o advento da Lei 9426/96 teve pífio efeito no roubo e não fez falta nenhuma na extorsão. A diferença era muito mais formal, atinente às palavras da lei, porque os resultados finais praticamente não diferiam nos casos concretos, seja entre o roubo e a extorsão, seja mesmo entre os crimes de roubo com restrição da liberdade ocorridos antes do vigor da Lei 9426/96 e aqueles posteriores. No fim todos eram casos, como sempre foram, de roubos ou extorsões com aumento de pena.

O surgimento da Lei 11.923/09 também não pode ser considerado como um monumento à igualdade de tratamento entre o roubo e a extorsão sob o aspecto formal.

Afinal, se o novo diploma legal incluiu a restrição da liberdade como majorante na extorsão, a exemplo do que já ocorria no roubo, não o fez de forma estritamente igualitária. É que diferem as espécies de majorantes num caso e noutro. Enquanto no roubo a restrição em destaque surge como causa especial de aumento de pena da ordem de um terço até a metade; na extorsão ela figura como qualificadora.

E essa disparidade supera o mero formalismo para adentrar em uma violação à igualdade ou à proporcionalidade, como se prefira, quanto ao "quantum" de pena previsto para cada tipo penal.

Embora se discuta na doutrina e na jurisprudência se os crimes de roubo e extorsão são infrações penais da mesma espécie [22], parece bem distante qualquer dúvida sobre tratar-se de infrações muito semelhantes, tanto nas condutas, quanto na gravidade, não se vislumbrando nenhum traço considerável para tratamento diferenciado entre elas, já que não apresentam maior disparidade seja entre o desvalor das ações ou o desvalor dos resultados. Forte indício desse reconhecimento pelo próprio legislador é a previsão de penas idênticas para o roubo e a extorsão simples.

Seguindo-se nessa indicação, o natural seria que as penas para os casos agravados continuassem a corresponder em respeito inclusive à sistemática do Código Penal.

Efetivamente é isso que acontece quando o § 1º., do artigo 158, CP, prevê um aumento de pena de um terço até a metade para os mesmos casos de concurso de agentes e emprego de arma arrolados no artigo 157, § 2º., I e II, CP. Não destoa desse sistema o § 2º., que estabelece a aplicação das penas do roubo qualificado por lesões graves ou morte para os mesmos casos na extorsão.

Agora, a Lei 11.923/09, ao criar novas qualificadoras para a extorsão, além de desigualar o que deveria ser igual sob o aspecto formal (restrição da liberdade: no roubo, causa de aumento de pena; na extorsão, qualificadora), também possibilita uma apenação em regra mais severa para os casos de extorsão perpetrados nas mesmas circunstâncias que o roubo, o que não se justifica por qualquer motivo razoável.

Vejamos alguns exemplos:

O roubo com restrição da liberdade da vítima, sem que haja lesões graves ou morte, terá uma pena que será aquela prevista para o artigo 157, "caput", CP (reclusão, de 4 a 10 anos), aumentada de um terço até a metade. Por seu turno, se o crime for de extorsão nas mesmas circunstâncias, passa a lei a prever uma pena qualificada de "reclusão, de 6 a 12 anos". Note-se que se for aplicado o patamar mínimo de aumento no roubo (um terço), o que é a grande regra, a pena será de 5 anos e 4 meses a 13 anos e 4 meses. Também em regra nesses casos será aplicada a pena mínima, o que equivale a um tratamento mais rigoroso para a extorsão na maioria dos casos (6 anos). Mesmo que se trate de um raríssimo caso de aplicação da pena máxima, a desigualdade estará presente. Agora, ao reverso, com um tratamento mais rigoroso para o roubo (13 anos e 4 meses contra 12 anos), o que também não se justifica. A mesma inversão, mas mantendo o tratamento desigual sem motivação razoável, ocorrerá no caso de aplicação do aumento máximo no roubo (metade). As penas para o roubo seriam de 6 a 15 anos, de modo que, embora as penas mínimas se igualem em 6 anos, a pena máxima para o roubo será bem superior àquela prevista para a extorsão (15 anos contra 12 anos). Em suma, não se vislumbra igualdade ou proporcionalidade possível.

Mas, o que há de mais esdrúxulo é que nos casos de roubos qualificados por lesões graves ou morte, onde houve restrição da liberdade da vítima, e extorsões nas mesmas condições, estas serão sempre apenadas com mais rigor. Nesses casos a Lei 11.923/09 manda aplicar à extorsão com restrição da liberdade as mesmas penas do crime de extorsão mediante sequestro qualificada (artigo 159, §§ 2º. e 3º., CP). Assim sendo, enquanto nos casos de roubo as penas variam entre "reclusão, de 7 a 15 anos" (lesões graves) e "reclusão, de 20 a 30 anos" (morte); nos casos de extorsão as sanções vão gravitar entre "reclusão, de 16 a 24 anos" (lesões graves) e "reclusão, de 24 a 30 anos" (morte). É realmente de se indagar: o que justifica essa discrepância? [23]

Deixando por agora um pouco de lado essas falhas grotescas da nova legislação, tem-se que, com o advento do novo § 3º., do artigo 158, CP, dever-se-á verificar em cada caso concreto se ocorreu um roubo ou uma extorsão. Em se formando juízo de roubo, aplica-se o artigo 157, § 2º., V, CP; caso contrário, concluindo-se pela ocorrência de extorsão, aplica-se o artigo 158, § 3º., CP.

Note-se que no caso do roubo a ocorrência de lesões graves ou morte afasta a aplicação do § 2º., V, do artigo 157, CP, prevalecendo o § 3º., do mesmo dispositivo. Já na extorsão deve-se atentar para que se houver lesões graves ou morte sem que o agente tenha obrado com restrição da liberdade da vítima, aplica-se o § 2º., do artigo 158, CP, que remete às penas do artigo 157, § 3º., CP. Quando ocorrerem os mesmos resultados (lesões graves ou morte), mas o agente tiver atuado mediante restrição da liberdade da vítima, aplica-se o § 3º., "in fine", do artigo 158, CP, que remete às penas do artigo 159, §§ 2º. e 3º.,CP.

Outra disparidade se verifica nesse caso por último exposto: por que um extorsionário que mata ou lesiona gravemente sua vítima sem restrição da liberdade deve ter uma pena tão diversa daquele que faz a mesma coisa, somente com o adicional da restrição da liberdade? Certamente seria demais acenar com uma violação da igualdade, já que o segundo caso tem mesmo um adicional (diferencial) da restrição da liberdade, de modo que se o desvalor do resultado é o mesmo, já não o é o desvalor da ação. Mas, será que esse diferencial poderia, com razoabilidade e proporcionalidade, ensejar uma exasperação tão intensa da pena? Não haveria no caso uma irrazoabilidade e desproporcionalidade constatável inclusive internamente no crime de extorsão, proporcionada pelas alterações desastradas da Lei 11.923/09?

Um indicador de resposta positiva para estas indagações encontra-se no tratamento dado ao crime de roubo, conforme já exposto. No caso de roubo, quando ocorrem as qualificadoras (morte ou lesões graves), a aplicação do § 3º., faz afastar a incidência do § 2º., V, do artigo 157, CP. Isso indica que o legislador considerou até certo ponto [24] desprezível a diferença entre a presença da restrição da liberdade ou não quando se operam os resultados mais graves. O tratamento dado em seguida para o mesmo caso na extorsão destoa totalmente do artigo anterior, provocando uma lesão profunda na sistemática do Código Penal. A continuar nesse rumo, logo será (se já não o é) inviável a chamada "interpretação sistemática" no "ordenamento jurídico" brasileiro, simplesmente porque "sistemática" já não existirá e sim um amontoado de dispositivos contraditórios, confusos e isolados. Talvez até nossa terminologia deva mudar. Ao invés de "ordenamento jurídico", conforme antes se fez menção, falar-se-á em "amontoado jurídico" ou "miscelânea legal"!

Finalmente, cabe salientar que nem o advento da Lei 9426/96, nem o da Lei 11.923/09 pôs cobro à possibilidade de concurso de crimes entre roubo ou extorsão e o crime de sequestro ou cárcere privado (artigo 148, CP). Nesse ponto, a Lei 11.923/09 tem a virtude de deixar claro e assentar definitivamente que os casos de aplicação do artigo 158, § 3º., CP e, por reflexo, os do artigo 157, § 2º., V, CP, são aqueles em que o sequestro é "crime – meio" para a prática dos ilícitos patrimoniais de extorsão ou roubo. Isso resta induvidoso quando o § 3º., do artigo 158, CP, exige expressamente para sua aplicação que a restrição da liberdade da vítima tenha se operado como "condição necessária para a obtenção da vantagem econômica". Não há dúvida, neste quadro, que quando o sequestro é perpetrado de forma independente, especialmente após a consumação do roubo ou da extorsão e não servindo para assegurar a subtração ou obtenção da vantagem ou mesmo para garantir a fruição do produto do crime e/ou a impunidade, não há se falar em causa de aumento de pena no roubo ou qualificadora na extorsão e sim em concurso de tais delitos com o sequestro ou cárcere privado.

Portanto, ao menos uma virtude teve a Lei 11.923/09, vez que a Lei 9.426/96 não tratou expressamente desse detalhe quando acrescentou o inciso V ao § 2º., do artigo 157, CP, deixando a missão da exigência do "nexo de necessidade" ao labor da doutrina e da jurisprudência, o que chegou a gerar certa insegurança, embora logo se tenha dispersado pelas luzes da melhor doutrina.

Nesse diapasão manifesta-se Greco, apresentando as seguintes hipóteses:

"Assim, imagine-se a hipótese na qual os agentes, depois de subtraírem os pertences da vítima, a mantenham presa no interior do porta – malas de seu próprio automóvel, a fim de que pratiquem vários roubos durante toda a madrugada, utilizando o veículo a ela pertencente, que lhes servirá nas fugas. O fato de ter permanecido privada de sua liberdade durante toda a madrugada é tempo mais do que suficiente para se configurar o crime de sequestro, que deverá ser reconhecido juntamente com o delito de roubo, aplicando-se a regra do concurso material. Agora, suponha-se que o agente, pretendendo a subtração do veículo de propriedade da vítima, depois de anunciar o roubo, a coloque dentro do porta – malas, saindo em direção a uma via de acesso rápido. Algum tempo depois, quando já se encontrava em local adequado para a fuga, quando não mais corria risco de ser interceptado por policiais que, em tese, seriam avisados pela vítima, caso esta não tivesse sido privada da sua liberdade, o agente estaciona o veículo e a liberta. Nesse caso, deverá responder pelo roubo, com a pena especialmente agravada nos termos do inciso V do § 2º., do artigo 157 do Código Penal". [25]

Também Mirabete e Fabbrini afirmam que "caso a privação da liberdade permaneça após a subtração consumada, configura-se o concurso material de crimes". [26]

Nucci apresenta uma exposição pormenorizada da questão nos seguintes termos, aduzindo que com a Lei 9426/96, "teve o legislador por finalidade punir mais gravemente o autor do roubo que, além do mínimo indispensável para assegurar o produto da subtração, detém a vítima em seu poder. Entretanto, não houve interpretação pacífica desse novo dispositivo, tendo em vista que três situações podem surgir: a)o agente segura a vítima por brevíssimo tempo, o suficiente para tomar-lhe o bem almejado (ex. disposto a tomar o veículo da vítima, o agente ingressa no automóvel unicamente para, alguns quarteirões depois, coloca-la para fora); b) o agente segura a vítima por tempo superior ao necessário ou valendo-se de forma anormal para garantir a subtração planejada (ex. subjugando a vítima, o agente, pretendendo levar-lhe o veículo, manda que entre no porta – malas, rodando algum tempo pela cidade, até permitir que seja libertada ou o carro seja abandonado); c)o agente, além de pretender subtrair o veículo, tem a nítida finalidade de privar a liberdade do ofendido, para sustentar qualquer outro objetivo, embora na grande parte das vezes, seja para subtrair-lhe outros bens. Para tanto, roda com a mesma pela cidade – na modalidade que hoje se chama de ‘sequestro – relâmpago’ – almejando conseguir saques em caixas eletrônicos, por exemplo. Na primeira hipótese, cremos estar configurada a causa de aumento – afinal, o tipo penal fala em ‘manter’, o que implica sempre uma duração razoável; na segunda, está a circunstância de aumento presente; na terceira, trata-se de roubo seguido de sequestro em concurso". [27]

Por fim é conveniente lembrar a orientação de Bitencourt, que destaca como fator de discriminação o momento em que ocorre o sequestro. Aduz que se este se dá "concomitantemente" com o roubo como seu "meio de execução" ou ao menos "garantia contra a ação policial", configura-se o aumento de pena. Mas, se o sequestro se opera "depois da consumação do roubo", trata-se de caso de concurso de crimes. Esse autor ainda chama a atenção para o necessário cuidado na análise do caso concreto, com vistas a eventual configuração do crime de extorsão mediante sequestro, desde que haja um refém detido a ser libertado mediante exigência de um resgate. [28]

Como já mencionado, reforça-se a afirmação de que toda essa orientação quanto a possíveis concursos entre o crime de roubo e de sequestro, continua valendo também para os casos de extorsão. Neste aspecto a Lei 11.923/09 somente reforçou e tornou legalmente expressa a solução que vinha sendo elaborada pela doutrina em face da redação lacunosa dada pela Lei 9426/96 ao inciso V, do § 2º., do artigo 157, CP.

c) TIPIFICANDO OS CASOS APRESENTADOS

Resta agora apontar, com base em tudo quanto foi exposto até o momento, a tipificação mais acertada para cada um dos casos apresentados na letra "a" deste item do texto, intitulado "A Casuística":

"Assim, imagine-se a hipótese, infelizmente muito comum nos dias de hoje, em que a vítima é abordada ao chegar em frente a um caixa – rápido de uma agência bancária, onde pretendia sacar, para si, determinada importância. Ato contínuo, o agente saca sua arma e a coloca em direção à cabeça da vítima, exigindo que saque todo o seu limite de crédito. A primeira indagação é a seguinte: o agente poderia sacar o dinheiro da vítima se esta não se dispusesse a fornecer-lhe a senha? Obviamente não, razão pela qual a sua anuência à exigência do agente é fundamental ao sucesso da infração penal.Contudo, devemos também nos perguntar: poderia a vítima, nas condições em que se encontrava, resistir ao agente? Aqui a resposta negativa também se impõe, pois, caso contrário, ela seria morta ou, pelo menos, agredida. Assim, embora dependendo da sua colaboração, mas não tendo a vítima tempo para refletir sobre a exigência, pois que o mal lhe seria imediato, estaríamos diante de um crime de roubo, e não de extorsão, mesmo que a própria vítima, depois do saque com o cartão, entregasse o dinheiro ao agente". [31]

Realizada a análise de cada um dos modelos propostos, percebe-se que os Casos 1, 2 e 3 são, na verdade, aqueles que mais acontecem no cotidiano criminal, sem que para chegar a essa constatação seja necessária uma investigação estatística mais apurada, tamanha a disparidade do grau de incidência perante os demais modelos apresentados, principalmente os Casos 4, 5, 6 e 8. Afinal, quantas são as ocorrências reais de coação para transferência de imóveis, de liberação da vítima pelos criminosos para ir sozinha efetivar transferências ou saques ou ainda de coação para preenchimento de notas promissórias, contratos ou documentos semelhantes. Tais hipóteses certamente não são descartáveis como impossíveis, mas são bem mais raras do que aquelas espelhadas nos Casos 1, 2 e 3. Já o Caso 7 refere-se, como já visto, ao crime de extorsão mediante sequestro.

Dessa maneira, conclui-se que a edição da Lei 11.923/09 terá mirrados efeitos práticos no dia a dia da Justiça Criminal, pois que a grande maioria dos casos que realmente acontecem e se multiplicam, superando a condição de meras hipóteses teóricas dificilmente encontráveis na realidade, são afetas ao crime de roubo, estando, portanto, ligadas ao artigo 157, § 2º., V, CP e não ao novo artigo 158, § 3º., CP.

Quando, em infeliz dicção, afirmou o legislador na ementa da Lei 11.923/09, que esta se destina a tipificar o chamado "sequestro – relâmpago", olvidou o fato de que a Lei 9426/96 já tipificava a maioria da casuística abrangida pela mencionada expressão popular. Enfim, a Lei 11.923/09, se tipificou o "sequestro – relâmpago", o fez mal e pouco.

Ressalvem-se os entendimentos divergentes, que somente dão destaque à imprescindibilidade da colaboração da vítima, de acordo com os quais o campo de abrangência da Lei 11.923/09 seria consideravelmente ampliado. [34]

No entanto, seguir tal orientação implicaria numa verdadeira revolução de toda a interpretação predominante até o momento sobre a distinção entre roubo e extorsão. E de qualquer forma um dispositivo acabaria caindo no ostracismo, só que neste caso seria o artigo 157, § 2º., V, CP. Parece que sustentar tal revolução doutrinário – jurisprudencial não vale a pena e nem merece tamanha homenagem um diploma legal tão "ordinário" como a Lei 11.923/09.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A Lei nº 11.923/09 e o famigerado sequestro-relâmpago.: Afinal, que raio de crime é esse?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2135, 6 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12760. Acesso em: 24 nov. 2024.

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