O recente episódio envolvendo dois respeitados Ministros da Suprema Corte pode parecer aos desavisados mero destempero verbal, a causar constrangimento tanto aos seus pares quanto ao universo de jurisdicionados.
Na verdade, oculta-se sob o ocorrido, uma disputa jurídica de grande seriedade, não somente pelas implicações doutrinárias que envolve, mas principalmente pelas repercussões que seu desfecho há de acarretar para quantos se socorrem do Poder Judiciário.
É que, nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal tem adotado um posicionamento dito "consequencialista", vale dizer, bastante atento às conseqüências práticas de suas decisões. Dito de outra forma, a razão prática passou a exercer um papel preponderante na administração da Justiça, sobrepondo-se, por vezes, às razões eminentemente teóricas. Tal orientação, a despeito de estar em linha com a modernidade, pode conduzir a desvios indesejáveis.
No arsenal "consequencialista", destaca-se um instrumento que decorreu de lenta evolução das Cortes Constitucionais dos países desenvolvidos: a chamada modulação temporal dos efeitos das decisões em questões jurídicas relevantes envolvendo o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Tal instrumento consiste em mitigar tais efeitos sempre que a declaração da inconstitucionalidade resultar na criação de situações que afrontariam ainda mais gravosamente a vontade constitucional.
Isto ocorre de modo típico quando, por exemplo, cria-se um vácuo no tempo que conduz a uma situação ainda mais injusta. Verifica-se, por conseguinte, o seguinte paradoxo aparente: o dispositivo da lei ou ato normativo declarado inconstitucional concretiza de maneira mais efetiva a Constituição da República do que nenhum ou o anterior dispositivo, que seria aplicado à situação na hipótese de atribuição do tradicional efeito retroativo. O mecanismo da modulação temporal dá ao Tribunal a liberdade para declarar a inconstitucionalidade sem com isto produzir efeitos perversos que acarretariam graves distorções na concretização constitucional. Estabelecendo a partir de quando a declaração de inconstitucionalidade produzirá efeitos, a Corte estará em condições de prevenir a ocorrência de tais situações.
No caso noticiado, que teria dado origem à discussão no Plenário da Corte, tratava-se de definir a partir de quando passaria a valer a decisão que havia declarado a inconstitucionalidade de lei que permitira que serventuários da justiça, "não remunerados" pelo Estado, como são os notários, fossem incluídos no regime de previdência dos servidores públicos do cargo efetivo. Ou seja, importava dizer se os efeitos se produziriam desde a criação da lei (ex tunc) ou apenas a partir da decisão (ex nunc).
Ao leitor incauto, a diferença pode parecer de menor importância (ex tunc x ex nunc). Mas, do ponto de vista jurídico, a distinção entre as situações criadas a partir de cada um destes efeitos atribuídos à decisão é enorme. De fato, cuidando-se de um dispositivo legal existente e válido no mundo fático desde, por exemplo, o ano de 1999, a diferença entre aplicar os efeitos da decisão (repita-se, que declarou a sua inconstitucionalidade) desde o seu nascimento (1999) é muito diverso de aplicá-los a partir da decisão de origem bem mais recente.
No Brasil, a modulação foi adotada com vistas a viabilizar a mais apurada administração da Justiça em determinados casos de extremada dificuldade diante de circunstâncias específicas apresentadas perante a Corte. Contudo, sua aplicação pelo Tribunal tem-se prestado a alguns atropelos, sendo de referir que o próprio mecanismo da modulação é objeto de duas ações que pretendem invalidá-lo como inconstitucional.
A despeito dos percalços, de uns tempos até hoje, tem sido crescente a sua utilização, especialmente quando vinculada aos argumentos consequencialistas que surgem para exame da Corte em determinadas situações específicas e pontuais, sempre como exceção e jamais como regra.
No episódio em questão, o Ministro Joaquim Barbosa pleiteou maior cautela na aplicação deste mecanismo jurídico e insinuou que o Presidente da Corte, Ministro Gilmar Mendes, pareceu querer atribuir um tratamento apressado à relevante questão jurídica então posta.
Verifica-se, do episódio, que o tempero adequado entre o consequencialismo de um lado, a nortear cada vez mais as preocupações dos Ministros do Supremo com as decisões que proferem, e a possibilidade de aplicar o mecanismo da modulação temporal dos seus efeitos, a flexibilizar a rigidez imposta por declaração de inconstitucionalidade, é dilema que está sendo enfrentado, não sem alguma dificuldade, pela Corte.
Tendo em vista que tanto o argumento consequencialista como também o mecanismo da modulação são relativamente novos no cenário jurisprudencial nacional, é importante que o Supremo se dedique com atenção ao debate em torno destes temas e que os doutrinadores pátrios cumpram sua função precípua de desbravadores da jurisprudência, debruçando-se sobre o tema, a esmiuçar-lhe as características e instâncias de aplicação.
O percurso do caminho é longo e carece de incessante debate entre os Ministros da Corte. A modulação deve ser utilizada com parcimônia na grande maioria dos casos. Constitui exceção ao princípio da nulidade absoluta da lei inconstitucional. Deve, outrossim, ser sempre utilizado em favor dos cidadãos que tenham agido com base na confiança legítima e na boa-fé. A modulação temporal não pode, em nenhuma hipótese, agravar a situação dos cidadãos, especialmente em casos que resultam da inércia do Poder Público (demora de legislar e morosidade na prestação jurisdicional).
O dilema com que se defronta a Suprema Corte, e que deu origem a episódio por todos lamentado, é um dilema muito mais amplo – em verdade, de toda a sociedade. É hora de definir se a modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais vai ser utilizada como mais um instrumento de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos ou se vai servir a interesses específicos, nem sempre de caráter republicano.