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A ilegitimidade do Ministério Público no ajuizamento de ação civil pública em matéria tributária

Agenda 03/06/2009 às 00:00

RESUMO: O presente artigo nasceu de memorial fazendário de nossa lavra em face do Recurso Extraordinário n. 576.155, sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, cujo objeto é acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que decretou a ilegitimidade do Ministério Público na propositura de ação civil pública em matéria tributária.

PALAVRAS-CHAVE: Constitucional – Processual - Tributário – Ministério Público – Ação Civil Pública – Matéria Tributária.


1.O presente artigo tem como objeto analisar o acórdão emanado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que decretou a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em matéria tributária.

2.O aludido decisum tem ementa vazada nos seguintes termos:

TRIBUTÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERMO DE ACORDO DE REGIME ESPECIAL. TARE. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

Reconhece-se a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em matéria tributária, ante a vedação expressa do artigo 1º, parágrafo único, da Lei 7.347/85. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.

3.Ante esse aresto, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios aviou recurso extraordinário destinado ao Supremo Tribunal Federal alegando a violação do art. 129, III e IX, CF, porquanto, ao entendimento daquele órgão ministerial, não se trata de ação civil pública em defesa de direitos ou interesses de contribuintes, mas de ação civil pública em defesa do patrimônio público e do sistema tributário.

4.Dada a relevância do tema e a sua indiscutível repercussão, objetiva-se demonstrar a ilegitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública em matéria tributária e a inadequação do manejo de ação civil pública que visa provimento jurisdicional inerente à ação direta de inconstitucionalidade.

5.A jurisprudência do STF é aturada no sentido do descabimento de ação civil pública manejada pelo Ministério Público em matéria tributária. De efeito, a Suprema Corte entende inadequadas ações coletivas em matéria tributária. A saber: RREE 195.056, 216.631 e 196.184.

6.As ementas dos acórdãos dos referidos precedentes merecem transcrição:

RE 195.056 (Relator Ministro CARLOS VELLOSO, Plenário, J. 09.12.1999):

CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPOSTOS: IPTU. MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE. Lei 7.374, de 1985, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078, de 1990 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25. C.F., artigos 127 e 129, III.

I. - A ação civil pública presta-se a defesa de direitos individuais homogêneos, legitimado o Ministério Público para aforá-la, quando os titulares daqueles interesses ou direitos estiverem na situação ou na condição de consumidores, ou quando houver uma relação de consumo. Lei 7.374/85, art. 1º, II, e art. 21, com a redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625, de 1993, art. 25.

II. - Certos direitos individuais homogêneos podem ser classificados como interesses ou direitos coletivos, ou identificar-se com interesses sociais e individuais indisponíveis. Nesses casos, a ação civil pública presta-se a defesa dos mesmos, legitimado o Ministério Público para a causa. C.F., art. 127, caput, e art. 129, III.

III. - O Ministério Público não tem legitimidade para aforar ação civil pública para o fim de impugnar a cobrança e pleitear a restituição de imposto - no caso o IPTU - pago indevidamente, nem essa ação seria cabível, dado que, tratando-se de tributos, não há, entre o sujeito ativo (poder público) e o sujeito passivo (contribuinte) uma relação de consumo (Lei 7.374/85, art. 1º, II, art. 21, redação do art. 117 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor); Lei 8.625/93, art. 25, IV; C.F., art. 129, III), nem seria possível identificar o direito do contribuinte com "interesses sociais e individuais indisponíveis." (C.F., art. 127, caput).

IV. - R.E. não conhecido.

RE 216.631 (Relator Ministro ILMAR GALVÃO, Plenário, J. 09.12.1999):

MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE RIO NOVO-MG. EXIGIBILIDADE IMPUGNADA POR MEIO DE AÇÃO PÚBLICA, SOB ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ACÓRDÃO QUE CONCLUIU PELO SEU NÃO-CABIMENTO, SOB INVOCAÇÃO DOS ARTS. 102, I, a, E 125, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO.

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Ausência de legitimação do Ministério Público para ações da espécie, por não configurada, no caso, a hipótese de interesses difusos, como tais considerados os pertencentes concomitantemente a todos e a cada um dos membros da sociedade, como um bem não individualizável ou divisível, mas, ao revés, interesses de grupo ou classe de pessoas, sujeitos passivos de uma exigência tributária cuja impugnação, por isso, só pode ser promovida por eles próprios, de forma individual ou coletiva.

Recurso não conhecido.

RE 196.184 (Relatora Ministra ELLEN GRACIE, 1ª Turma, J. 27.10.2004):

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DE PARTIDO POLÍTICO. IMPUGNAÇÃO DE EXIGÊNCIA TRIBUTÁRIA. IPTU.

1. Uma exigência tributária configura interesse de grupo ou classe de pessoas, só podendo ser impugnada por eles próprios, de forma individual ou coletiva. Precedente: RE nº 213.631, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 07/04/2000.

2. O partido político não está, pois, autorizado a valer-se do mandado de segurança coletivo para, substituindo todos os cidadãos na defesa de interesses individuais, impugnar majoração de tributo.

3. Recurso extraordinário conhecido e provido.

7.A jurisprudência da Corte firmou-se no sentido de que as relações tributárias não se equiparam às relações consumeristas, porquanto o direito tributário não empolga direitos coletivos ou interesses difusos que não possam ser individualizados e encartados na categoria de direitos indisponíveis.

8.Cônscio dessa perspectiva jurisprudencial do STF, o Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, em sua manifestação favorável ao reconhecimento da repercussão geral no RE 576.155, ressaltou que não se cuida de ação civil pública proposta em favor de um grupo ou de uma classe de contribuintes, visando questionar a validade de um tributo.

9.A despeito dessa manifestação prévia, entendo, à luz do acórdão recorrido, que o tema submetido à apreciação do STF circunscreve-se à possibilidade de o Ministério Público ajuizar ação civil pública em matéria tributária.

10.Conquanto alegue a proteção do patrimônio público e da ordem econômica, o Ministério Público do DF confessa a pretensão de salvaguardar o sistema ou a ordem tributária do Distrito Federal e ataca o regime tributário especial de apuração do ICMS instituído por essa Unidade da Federação nominado TARE – Termo de Acordo de Regime Especial.

11.Com efeito, pretende o MPDFT a decretação de inconstitucionalidade das Leis distritais ns. 2.381/99 e 1.254/96, do Decreto distrital n. 20.322/99 e da Portaria n. 293/99 da Secretaria de Fazenda do DF, que deram suporte ao TARE n. 05/2004 assinado entre o Distrito Federal e a empresa contribuinte.

12.Para esse mister, o MPDFT pretendeu afastar a natureza tributária da discussão sob color de cuidar-se de proteção ao patrimônio público e à ordem econômica e tributária.

13.Sem adentrar no mérito acerca da validade do referido TARE e das normas distritais objurgadas, parece ser inaceitável a intervenção do Parquet em discussões fiscais sob o fundamento da defesa do patrimônio público ou da ordem econômica e tributária.

14.Regimes tributários nascem de escolhas políticas da Administração Pública. O alcance financeiro dessas escolhas políticas fiscais depende de uma série complexa de fatores que não podem ser perspectivados isoladamente, mas em seu conjunto e ao longo de um período de tempo que se verifique o acerto ou desacerto dessas políticas tributárias.

15.O ajuizamento de ação civil pública em face da administração tributária ante a instituição de regimes fiscais específicos sob o fundamento de defesa do patrimônio público ou da ordem tributária e econômica desborda dos limites constitucionais de intervenção do Ministério Público em defesa da sociedade.

16.A defesa do patrimônio público estatal compete à advocacia pública estatal. A defesa do patrimônio público social é do Ministério Público (art. 129, CF).

17.Discussões empolgando relações tributárias - assinala a jurisprudência do STF - não envolvem patrimônio social, mas patrimônio estatal ou patrimônio dos contribuintes. Essas questões dispensam a intervenção do Parquet.

18.Em verdade, essa pretensão esbarra no art. 129, IX, CF, que veda ao Ministério Público representação judicial de entidades públicas, visto que seu objetivo é atacar regime tributário que supostamente causa prejuízos aos cofres públicos.

19.Nesse prisma, não tem cabida enxergar violação ao patrimônio público social ou à ordem tributária, por eventuais invalidades das normas jurídicas ou por supostas perdas de arrecadação. Se assim o for, em praticamente todas as demandas fiscais há a possibilidade de "desfalques" no patrimônio estatal o que reclamaria a intervenção do Parquet.

20.Induvidosamente velar pelo patrimônio estatal não é a missão constitucional do Ministério Público. Essa atribuição compete à advocacia pública estatal, nos termos dos arts. 131 e 132, CF.

21.Daí a pacífica jurisprudência do STF contrária ao ajuizamento de ação civil pública em matéria tributária, uma vez que não se está diante de direitos coletivos ou interesses difusos, nem de direitos sociais ou individuais indisponíveis ou que não possam ser individualizados, nem da defesa do patrimônio público social.

22.Além da apontada ilegitimidade, está-se diante de ação civil pública que visa provimento jurisdicional inerente à ação direta de inconstitucionalidade.

23.Ou seja, o Parquet distrital deveria ter proposto ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local, ou ter representado ao Procurador-Geral da República para eventual o oferecimento perante o STF.

24.Tenha-se que não se advoga a superada tese da impossibilidade de declaração de inconstitucionalidade nas ações civis públicas. O que se defende é a impossibilidade desse reconhecimento na hipótese de identidade entre o pedido e a causa de pedir, como sucede na demanda sob exame.

25.Sem muito esforço, é perceptível que o MPDFT objetiva a declaração de inconstitucionalidade da legislação distrital reguladora do TARE. Esse é o verdadeiro pedido e a sua causa de pedir. Essa situação é típica da ação direta de inconstitucionalidade, na qual pedido e causa de pedir se confundem.

26.Em situação similar, que envolvia ação popular e ação direta de inconstitucionalidade por omissão, o STF, nos autos da Reclamação n. 1.017 (Relator Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, J. 07.04.2005), entendeu configurada a usurpação de sua competência, uma vez que a causa de pedir e o pedido eram próprios da ação direta por omissão. Eis ementa desse acórdão:

Reclamação: usurpação da competência do STF (CF, art. 102, I, l): ação popular que, pela causa de pedir e pelo pedido de provimento mandamental formulado, configura hipótese reservada à ação direta de inconstitucionalidade por omissão de medidas administrativas, de privativa competência originária do Supremo Tribunal: procedência.

27.Cuidava-se, naquela oportunidade, de decisão liminar em ação popular que determinava aos Chefes dos Poderes da República tomada de providências em relação ao teto constitucional das remunerações públicas, de acordo com a Emenda Constitucional n. 19/98.

28.Entendeu a Corte que se estava diante de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão revestida de ação popular, porquanto o provimento jurisdicional que se visava, dada a sua causa de pedir e o seu pedido, era de controle concentrado.

29.Nessas circunstâncias, a competência concentra-se no STF.

30.Nesta controvérsia a situação processual é a mesma: o provimento jurisdicional requestado é próprio do controle concentrado (ação direta de inconstitucionalidade) e não do controle difuso (a ação direta e não da ação civil pública), o que exigiria, desde o início, a provocação da jurisdição concentrada da Suprema Corte.

31.Em verdade, pretende o Ministério Público a nulidade do regime tributário TARE ante a inconstitucionalidade da legislação que lhe dá suporte. Indisfarçavelmente não dá para dissociar o pedido (nulidade) da causa de pedir (inconstitucionalidade), visto que a inconstitucionalidade das normas equivale a sua nulidade.

32.De modo singelo, o MPDFT pede a nulidade do regime tributário porque as normas tributárias que lhe dão suporte são nulas. Eis a absoluta identidade entre o pedido e a causa de pedir, ínsitas nas ações diretas de inconstitucionalidade ou nas ações de controle concentrado.

33.Eis porque, à luz do colacionado entendimento jurisprudencial, deva ser reconhecida a ilegitimidade do Ministério Público ou inadequado manejo de ação civil pública.

34.O julgamento do referido RE 576.155 teve início no último dia 06.05.2009. O Ministro relator RICARDO LEWANDOWSKI votou pela legitimação do MP, uma vez que, ao seu entendimento, não se está diante de controvérsia tributária típica, mas de proteção administrativa ao patrimônio público.

35.Nada obstante esse douto voto do relator, os Ministros MENEZES DIREITO, EROS GRAU e CÁRMEN LÚCIA divergiram de Sua Excelência e se manifestaram no sentido da ilegitimidade do MP no ajuizamento de ação civil pública em matéria tributária. O Ministro JOAQUIM BARBOSA pediu vista dos autos, suspendendo-se o julgamento da questão.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A ilegitimidade do Ministério Público no ajuizamento de ação civil pública em matéria tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2163, 3 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12918. Acesso em: 25 nov. 2024.

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