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O Poder Judiciário e a lei.

A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense

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Agenda 21/06/2009 às 00:00

Capítulo 7

7.1. Uma certa autonomia decisória. 7.2. O princípio da reserva legal. 7.3. Justiça penal material. 7.4. Defeitos de valoração e entraves dos limites abstratos da pena. 7.5. As peculiaridades do crime de omissão de socorro. 7.6. O problema do formalismo. 7.7. Tribunal do júri

7.1. Uma certa autonomia decisória

Por tudo o que já foi dito se mostra deveras contestável a assertiva de que o juiz deve cumprir, ou cumpre efetivamente, em razão do princípio constitucional da separação dos poderes, a norma ditada pelo Legislativo ou quem suas vezes fizer. Vá lá que o faça com mais ímpeto em determinadas áreas, de maior conteúdo político, social e econômico. É possível que em certos setores se autodiscipline, pela transcendência da matéria, cercada de pressões externas de toda espécie. Pode ocorrer, mesmo, que se sinta totalmente manietado, mas então não estará mais julgando, pois o julgamento implica uma dose mínima de liberdade para uma opção.

Essa liberdade deveria desaparecer se fosse possível ao legislador prever a solução adequada para todas as situações da vida real, submetidas a julgamento. Ora, tal não ocorre, evidentemente. "É somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar pereat mundus, fiat justitia", adverte CHAÏM PERELMAN (Justice et raison, p. 80). Donde a necessidade de se conferir ao juiz, pelo contato com as peculiaridades do caso concreto, uma certa autonomia para a decisão.

Ninguém desconhece que isso representa riscos. Dos males, porém, o menor. A propósito, estamos mais ocupados em ver como as coisas acontecem e não como as teorias querem, às vezes inutilmente, modelar o mundo.

7.2. O princípio da reserva legal

Sem embargo, continuamos a advogar o "nullum crimen, nulla poena sine lege", reflexo de uma comprovada maturidade político-jurídica dos nacionais (BASTOS, J.J.C., Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, p. 61). Embora reduzido, com propriedade, às suas devidas proporções, de princípio ocasionalmente retórico (ou totalmente retórico: WARAT, L.A; CUNHA, Rosa M.C., Teoria geral do delito em instrução programada, p. 40/45), o fato é que vem surtindo, na prática, os efeitos que dele se espera. Sem reabrir o debate, adiantamos nossa incondicional adesão a esse precioso apotegma, plenamente válido para os dias de hoje, por sua conotação de garantia do indivíduo perante o Estado.

É claro que não o endossamos por amor ao princípio, pura e simplesmente. Adotamo-lo, com toda a convicção, porque temos os olhos voltados para nosso ordenamento jurídico-penal. Destarte, se nas condições atuais de nossa organização social o legislador brasileiro resolvesse abolir o latrocínio da lista dos delitos não relutaríamos em reconhecer no juiz a faculdade e o dever de uma condenação contra legem.

7.3. Justiça penal material

Se chegamos a esse ponto, eivado, quem sabe, de um certo paradoxo, fácil é deduzir o que pensamos de uma decisão que se afasta do rigorismo da lei para, em benefício do acusado, aproximar-se do que se poderia denominar de justiça material. Não a entendemos apenas possível, mas conveniente e necessária.

Por maior que seja a legitimidade dos parlamentos para a definição dos crimes e cominação das penas não se há de desconhecer que os respectivos preceitos não conseguem jamais traduzir uma exata exigência de justiça adaptada às características do evento. Devem ser encarados muito mais como proposta do que como solução. Dimanando, contudo, de onde dimanam, hão de merecer, como regra, mesmo porque o magistrado não é onisciente, uma espécie de acatamento prévio, que afinal se efetiva na falta de melhor critério. Qualquer legislação, entretanto, se apresenta com uma elevada carga de ideologia política, ou, pelo menos, de valores assimilados de toda ordem, de conformidade com a matéria regulada. Se essa ideologia política, ou se esses valores, na área penal, entram em choque, violentamente, com as concepções dominantes, favoráveis ao acusado, de que o juiz também é guardião, devem ser suplantados por estas últimas. A menos que ao juiz se negue a função e, em conseqüência, o Poder.

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A maneira de captar as "concepções dominantes" acarreta um novo problema, praticamente interminável. Relaciona-se com os riscos a que aludimos. Pode mesmo ocorrer que sirvam de capa ou véu para o prevalecimento da ideologia do magistrado, que não sai por aí a fazer sondagens de opinião pública (nem sempre, aliás, as melhores). Não nos furtamos, contudo, a reafirmar nossa posição, pois vemos no ordenamento jurídico-penal brasileiro defeitos gravíssimos que só podem ser superados pela conscientização profissional do juiz.

7.4. Defeitos de valoração e entraves dos limites abstratos da pena

Parece ajustar-se ao sistema brasileiro a observação de R. SCREVENS a propósito do Código Penal da Itália: "O objetivo do legislador italiano é limitar o poder do juiz, dando-lhe o máximo de indicações legais" (Droit pénal comparé, p. 67).

Com efeito, nosso sistema jurídico-penal não oferece ao magistrado variáveis de opções impostas pelos pormenores do caso concreto em julgamento. Os interesses sociais, confundidos com a ideologia do Código, afastariam qualquer ingerência mais ousada do magistrado. Instituídos os mínimos e máximos da pena cominada abstratamente, teriam que ser respeitados com uma reverência religiosa, inquestionável, avassaladora. Pouco adiantava que o legislador abraçasse critérios absurdos e conflitantes.

A reação do juiz, embora lenta, não se fez por esperar. Assim, quando não utiliza a ficção, ou quando não antepõe à lei um princípio qualquer, reputado superior, faz da interpretação o instrumento maleável de sua preocupação de minimizar – no que nem sempre é feliz – o fato criminoso, aplicando, então, a pena mínima, ou absolvendo o acusado. Em outras palavras, sem condições para decidir em eqüidade, face à inexistência de opções gradativamente escalonadas, acaba adotando uma solução que, na base do "sim" ou do "não", fatalmente conduz a uma injustiça. Fica somente o conforto de haver evitado mal maior.

Trata-se de sistema excessivamente rígido em suas estruturas, atenuado pela lei n.º 6.416, de 24 de maio de 1977.

Permanecem de pé, todavia, os critérios de apenação que equiparam, por exemplo, a subtração de um pacote de biscoito, cometida em co-autoria, à perda total da visão; que valorizam com o mesmo peso uma bicicleta de criança milionária, furtada mediante fraude, e as mãos do pianista ou do trabalhador braçal; que permutam, com a maior naturalidade, a deformidade permanente ou a doença incurável com a nota de cem cruzeiros subtraída, em confiança, pela empregada doméstica.

Ai do servidor público que, num momento de fraqueza, recebe alguns trocados em razão da função, por mais miseráveis que sejam seus vencimentos. A lei não vê quantidade, não distingue entre pequeno e grande valor, e, em conseqüência, lhe destina reclusão de um a oito anos, e multa de seis mil a trinta mil cruzeiros. Até recentemente era pena para ser cumprida na sua totalidade, como regra geral, vedada a concessão de "sursis".

Contudo, como anotamos alhures, se ele deixa morrer um ser humano que eventualmente precisa de seu socorro, em grave e iminente perigo de vida, podendo prestar-lhe auxílio sem o menor risco pessoal, com um simples estender de mão, e assim procedendo por desejar-lhe a morte, friamente, calculadamente, seu drama é bem menor. Dizem os doutos (nem todos) que não pratica homicídio, mas omissão de socorro, avaliada somente em três a dezoito meses de detenção (permissiva, há muito, do "sursis") ou em multa de mil e oitocentos a doze mil cruzeiros) (Omissão de socorro e homicídio, p. 24/52).

7.5. As peculiaridades do crime de omissão de socorro

Doutrina e jurisprudência se unem para minimizar os crimes que afetam a vida e a integridade física de outrem.

É o preço que pagamos pelo incompreensível medo de uma justiça arbitrária, sem freios, sem controle, sem escrúpulos. E, também, pela imprevisão do legislador no que concerne à possibilidade de um tratamento privilegiado do crime comissivo-omissivo. Mas fica somente aí a imprevisão. Porque o legislador, no pleno exercício do seu poder normativo, também considerou como causa do crime "a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (Código Penal, art. 11).

Eminentes doutrinadores, no entanto, embora reconhecendo que "o nosso direito positivo parece firmemente fundado na causalidade da omissão e silencia totalmente a respeito do dever jurídico de agir" (FRAGOSO, H.C., Conduta punível, p. 187) se apressam em negar vigência ao artigo 11, combinado com os artigos 15 e 121 ou 129, por exemplo.

Alega-se "que o dever jurídico de agir, nos crimes comissivos por omissão, não pode ser o que resulta da norma penal relativa aos crimes omissivos puros. Em tais casos, a própria norma penal estabelece a sanção para a inobservância da ordem, sendo cabível qualquer outra conseqüência penal pelos resultados da omissão (idem, p. 189).

Pouco importa se o artigo 135 retrata crime tipicamente de perigo, com dolo de perigo: "A ocorrência do dano não se compreende na volição ou dolo, pois, do contrário, não haveria por que distinguir entre tais crimes e a tentativa de crime de dano" (Exposição de Motivos do Código, n.º 43, in fine). O que importa, custe o que custar, e até mesmo a contradição evidente com paralelas afirmações acerca da exegese do artigo 135 (FRAGOSO, H.C., Lições de direito penal, parte geral, p. 196; parte especial, vol. 1, p. 99), é o reforço da função da garantia do tipo.

Somos os primeiros a admitir a altaneira preocupação de antepor a lei ao arbítrio judicial, diante, principalmente, das desastrosas conseqüências de eventual erro de julgamento acerca do elemento moral do crime. Entretanto, não nos furtamos a vislumbrar na doutrina esposada o visível caráter inventivo, haurido em argumentos extra-legais, com certo grau de razoabilidade, mas em franca oposição ao nosso ordenamento jurídico-penal.

Consola-nos o fato de outros eminentes autores advogarem ponto de vista diverso (BRUNO, A., Direito Penal, vol. 4, p. 254; FARIA, B., Código penal brasileiro comentado, vol. 4, p. 133; LUNA, E. da C., Estrutura jurídica do crime, p. 225 e 226; MARQUES, J.F., Tratado de direito penal, vol. 4, p. 333/334; RIBEIRO, J.S, Código penal comentado, vol. 3, p. 179; VERGARA, P., Delito de homicídio, p. 146) e a certeza de que as peculiaridades do caso concreto (se um dia, infelizmente, existir algum), pela sua monstruosidade, haverão de redespertar no julgador o direito e o dever, desta feita com inteiro amparo legal, de simplesmente fazer justiça.

Em verdade, é a ausência de soluções intermediárias que obriga a doutrina a retificar o alcance da lei, como se dá com a teoria do dever jurídico de agir. O legislador concorre, inconscientemente, para a escolha de soluções que não seriam, a rigor, as mais adequadas.

7.6. O problema do formalismo

Outras vezes, apegado ao ritualismo, a tabus formalistas, é o próprio juiz que, talvez mais legalista que a própria lei, entrega em holocausto sua liberdade e consciência, que ditariam a solução correta.

Imaginemos alguém que pratica tentativa de homicídio. O Ministério Público, no entanto, eventualmente procurando um caminho mais rápido (o procedimento, em regra, é lamentável), o denuncia por lesão corporal grave. Mas qual, aparecem falhas na perícia, falta o compromisso legal, as assinaturas são ilegíveis, não bastam fortes probabilidades científicas, só consta o nome de um experto, o texto é lacônico etc. Os sortilégios e magias da devoção ritualística reduzem o evento à dimensão de uma lesão corporal leve. Completa-se a cerimônia, se o réu é primário, com a apenação no mínimo legal (3 meses de detenção). Depois o inevitável: concessão de "sursis" ou liberdade plena, irrestrita, pelo reconhecimento da prescrição.

Observações semelhantes dizem respeito aos desastrosos efeitos da distinção entre crimes de ação pública e ação privada. Já se nota um certo esforço – espécie de ressurreição – no sentido de se evitar, por simples e religioso amor ao rito, ou às doces palavras da lei, injustiças das mais chocantes, em detrimento da vítima e dos mais caros interesses sociais. A segurança jurídica, até então confundida, em certos setores, com a divinização de textos meramente formalísticos, cede lugar às pressões de ex-devotos, contestadores, rebeldes, na doutrina e na jurisprudência, com razão preocupados com a nocividade intrínseca dos fatos reconhecida pelo próprio Código.

O Brasil é um país que nega à vítima de um estupro, ou a seus familiares, o direito de recorrer ao Ministério Público, se não são necessitados nos termos da lei. É um resíduo de sadismo legislativo. Já que a vítima sofreu tanto, dada a barbaridade do delito, com graves e esperadas repercussões em seu psiquismo, deve contratar advogado, desfazer-se de um terreno, de uma vaquinha, e viver os azares da ação penal privada. É a única maneira de alcançar uma duvidosa sentença condenatória. Ou, no que concerne à lei, de desencorajar uma demanda...

Dignas de transcrição, a propósito, algumas das conclusões de João José Leal inseridas em precioso trabalho a que intitulou "A ação deve ser pública, sem exceções":

b) A ação penal privada constitui-se num ônus indesejável para o ofendido, que além do prejuízo moral e às vezes material, deverá despender parte de seu patrimônio para processar criminalmente o seu ou o ofensor de um seu dependente. c) Por estabelecer uma distinção burguesa e capitalista entre ofendido rico (que deverá custear as despesas) e ofendido pobre (que gozará do benefício da justiça gratuita), a ação penal privada não mais se coaduna com os princípios modernos da democracia social, que defende a igualdade jurídica para todos. d) Ensejando uma série de possíveis irregularidades ou de nulidades de ordem processual, a ação penal privada não se revela aconselhável, eis que desvirtua a justiça penal de seus fins mais legítimos. Na verdade, uma série de requisitos relacionados especificamente a este tipo de persecução criminal dificulta seu exercício pelo particular, favorecendo somente o delinqüente, que poderá ser beneficiado com a extinção da punibilidade por decadência, perempção ou perdão (in Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, vol. 1, p. 103/104).

7.7. Tribunal do júri

E já que temos falado, aqui e ali, de segurança jurídica, não custa lembrar, incidentemente, o nefasto papel desempenhado pela instituição do júri. Vinculada, por determinação constitucional, aos crimes dolosos contra a vida, que deveriam merecer maior proteção, conseguiria desorientar o mais ingênuo e fanático de seus defensores se ele se desse ao trabalho de consultar os volumes de jurisprudência com ela relacionados.

Há limites para a ficção jurídica. E se existe um órgão que dela usa e abusa em escala hipertrófico-patológica este órgão tem um nome: é o tribunal do júri. Afora as muitas exceções de praxe, tem cumprido fielmente a função de legitimar o homicídio, por mais bárbaro que se afigure, ou de conferir-lhe atenuantes terrivelmente falsas, fenômeno que só pode ser explicado por despreparo, ignorância ou má-fé, e quase nunca por uma razoável preocupação de fazer justiça.

Trata-se, aliás, de assunto antigo. A última coisa que se pode alegar é a falta de experiência na matéria. Já ponderava FILINTO BASTOS, em 1911: "Indiquei a impunidade (...) pela proteção desenvolvida, de modo escandaloso, perante os jurados que, na maioria dos casos, a não se tratar de um celerado desprotegido ou de algum ladrão, especialmente de gado vacum ou cavalar, absolvem os réus ou lhes impõem o mínimo de pena. Referi-me à incontestável decadência do Júri, por sua defeituosa organização e pelo menosprezo em que o têm os juízes de fato, que embaraçam a constituição do Tribunal e são indiferentes à repressão legal como às observações judiciais" (Estudos de direito penal, p. 208/209).

Inútil corrigir o instituto por meios exclusivamente jurídicos, como é do nosso feitio.

Preferimos, outrossim, deixá-lo de lado na pesquisa. Ainda que se constitua no mais evidente exemplo de plena, total, completa e acabada autonomia judicante, citamo-lo apenas de passagem. Seria um exagero tomá-lo como paradigma. Mas vale a observação final: a instituição persiste, para nosso orgulho democrático. Acima de tudo os princípios. Pouco importa se, na prática, redundem na concretização da "democracia do homicídio".

Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. O Poder Judiciário e a lei.: A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2181, 21 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13013. Acesso em: 23 dez. 2024.

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