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O Poder Judiciário e a lei.

A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense

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21/06/2009 às 00:00
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Nas razões das sentenças, devem ser buscadas as motivações expressas ou implícitas. Mais ainda: no momento histórico, nas circunstâncias de toda ordem, na filosofia de vida do juiz e, é claro, na estrutura da própria sociedade.

SUMÁRIO

. Apresentação. Introdução. Parte I – A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. 1. Furto privilegiado. 2. Cheque pré-datado. 3. Cheque: composição amigável. 4. Crime continuado. 5. Erro de fato e ficção jurídica 6. Política criminal. 7. Subjetivismo judicial e concurso aparente de normas. 8. Furto qualificado pelo abuso de confiança. 9 Ausência de prova. Parte II – O poder judiciário e a lei. 1. Separação de poderes, ciência e justiça. 2. O poder judiciário em face da lei. 3. Linguagem e direito. 4. Interpretação e aplicação do direito. 5. Personalidade do juiz e foro criminal 6. Técnicas judiciais para uma decisão contra a lei. 7. Sistema jurídico-penal brasileiro: outros detalhes de ordem legal, doutrinária e judicial. 8. Em torno da criação judicial do direito: síntese final. 9. Revisão crítica e observações complementares. Bibliografia.

APRESENTAÇÃO

1. Esta obra corresponde, sem alterações de vulto, à dissertação de mestrado defendida junto ao Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, em 1979. Não lhe acrescentei, como pretendia inicialmente, qualquer capítulo novo. Convenci-me de que o tema escolhido – a decisão judicial contra a lei – permanece atualizado em si mesmo, por sua própria natureza. Preferi, então, preservar-lhe a estrutura, pois importante é o contexto histórico, são as ideias e concepções do momento, surgidas na empolgação da pesquisa ou garimpadas na doutrina e na jurisprudência.

2. O fato é que a hermenêutica jurídico-penal me acompanha desde o ingresso na carreira de magistério na Universidade Federal de Santa Catarina, precedido que foi de um trabalho com o sugestivo título de Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, de 1965. Na sequência das aulas senti o peso da responsabilidade inerente à exposição e abordagem de um direito penal diversificado, controvertido, contraditório, para espanto e surpresa de alunos que aguardavam respostas certas, de cunho teórico-dogmático. Felizmente, e quase ao mesmo tempo, pude contar com as atividades de Advogado da Justiça Militar do Estado, na área criminal, bem como de Membro do Conselho Penitenciário, que me reforçaram a percepção de divergências interpretativas a demandar explicações mais abrangentes.

3. Aproveito o ensejo para renovar minhas homenagens aos funcionários, colegas e docentes da Pós-Graduação em Direito, sob a Coordenação, na época, pela ordem, dos professores Acácio Garibaldi de Paula Ferreira S.Thiago e Paulo Henrique Blasi. Da mesma forma, e de modo muito especial, aos professores Osni de Medeiros Régis (Orientador), Osvaldo Ferreira de Melo e Luis Alberto Warat, integrantes da Banca Examinadora

4. Os anos se passaram e ainda hoje permanece explícita minha preferência por uma visão crítico-metodológica do direito penal, de que constitui exemplo a presente dissertação de mestrado. Quase tudo que depois escrevi se traduz em tentativa de aperfeiçoamento das observações então esboçadas.

5. Não descarto a validade dos inúmeros esforços da doutrina em termos de sistematização do ordenamento jurídico. De prévia organização teórica não pode afastar-se quem exerce o magistério ou labuta no foro criminal. Em contrapartida, insisto em apontar as limitações e fragilidades de toda e qualquer aventura dogmática, ao mesmo tempo em que proponho a desobstrução dos caminhos que ocultam as raízes ou categorias básicas do direito penal: força, poder, vontade, liberdade.

6. Ainda não perdi a esperança de que as atuais gerações de juristas despertem para a compreensão do caráter histórico-sociológico do direito. Se isso acontecer, acredito que novos horizontes se lhes abrirão aos olhos finalmente comprometidos com uma possível reconstrução ético-valorativa da própria dogmática jurídico-penal.


INTRODUÇÃO

O direito como fato concreto, como acontecimento real, como norma ditada pelo juiz, na esfera contenciosa, quase não é reproduzido nos livros de doutrina. Principalmente no Brasil. Daí a necessidade de serem consultados os volumes de jurisprudência.

Mas é pouco. Também a jurisprudência carece de interpretação mais abrangente, de análise crítica, permissivas de melhor compreensão do fenômeno decisório. Há uma psicologia da decisão, uma lógica da decisão, uma sociologia da decisão.

Contudo, o material a analisar – o texto dos acórdãos – não se presta, assim tão facilmente, a inferências e deduções, mormente quando o que se indaga é se há uma efetiva correspondência com a vontade expressa da norma legal.

Não bastassem os problemas da linguagem natural utilizada pelo legislador, que dizem da impossibilidade teórica, em hipóteses várias, de segura interpretação lógico-dogmática, há sempre as dificuldades inerentes à omissão das circunstâncias, de toda ordem, que concorrem para o veredicto. Tem-se que enfocar uma simples parcela, ou seja, os argumentos expendidos, e deles extrair detalhes que, à primeira vista, jamais transpareceriam. Nesse mister é indispensável o recurso aos doutos, o confronto com outros julgados, para não se dar a idéia de um trabalho no vazio. O consenso interpretativo se mostra muito importante quando está em discussão o afastamento, ou não, da lei.

2. A primeira parte da dissertação.

Interessamo-nos principalmente, na primeira parte da dissertação, pelos acórdãos que aparentavam distanciar-se das lições elementares dos compêndios no que concerne a uma correta exegese ou mecânica aplicação da lei. Mais ainda: teria de ser um distanciamento consciente, desejado, pouco importando se encoberto pela técnica da ficção. Possíveis descuidos, hipóteses controvertidas ou de alta indagação, polêmicas intermináveis e, ao reverso, hipóteses corriqueiras, de matemático enquadramento legal, cumprido à risca, tudo isso deixamos de lado.

É claro que, nessa triagem, tínhamos de contar com critérios pessoais. Sob esse aspecto é de se ressaltar que a maior preocupação residia na possibilidade de, em contrapartida, tornar perceptíveis as características procuradas. Não sabemos se alcançamos esse objetivo, se bem que tenhamos para tanto concentrado nossa atenção e nossos esforços.

A leitura do trabalho, no entanto, pode dar a imagem de aleatória escolha de arestos, ou de que uma boa parte dos demais ensejaria observações análogas. Certo, há vários outros que seriam suscetíveis do mesmo tipo de análise, mas exigiriam muito mais tinta e muito mais papel, o que seria desnecessário para os fins pretendidos, além de propiciar menor chance de aceitabilidade.

O fato é que a triagem foi feita segundo uma ótica mais ou menos rígida, em cima, inclusive, de antecedente atividade seletiva. A propósito, quando nos voltamos para o paciente exame de cada um dos acórdãos publicados nos últimos anos pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na área criminal, com passagens por decisões anteriores, o que menos tínhamos em mente era seu eventual caráter repetitivo, a conferir-lhe ares de autêntico precedente jurisprudencial. Não, o que mais importava era a singularidade do caso concreto, representativo de um desafio à norma geral preestabelecida.

3. A segunda parte da dissertação

A segunda parte da dissertação traduz o cuidado de reforçar as observações esparsas em torno dos acórdãos analisados. Espécie de complementação ou, mesmo, de ampliação teórico-dogmática, a ponto de abranger outros campos do direito, sem embargo da presença preponderante, ainda aí, dos aspectos jurídico-penais.

Haveria que se buscar, na decisão contra legem, algum significado. Deixar de fazê-lo seria desperdiçar o tempo dedicado à pesquisa, que definharia completamente na simples menção de contrastes e desacordos. Valiosas, portanto, as lições dos especialistas. Seu aproveitamento se revelou evidente, pelas luzes que lançavam sobre a matéria.

Os comentários isolados da primeira parte encontrariam eco nas explicações, variadas, e de ordem bem mais geral, trazidas à colação.

4. Para finalizar.

Apesar das lacunas, das imperfeições, a obra deixou-nos a impressão de algum proveito pessoal. Não teria sentido guardá-lo conosco. Daí os melhores votos de que se estenda a todos os que, para felicidade nossa, não se entediarem com sua leitura.


PARTE I

FURTO PRIVILEGIADO

1.1.A velha orientação. 1.2 A nova orientação. 1.3 As armas do juiz.

1.1. A velha orientação

O legislador de 1940, depois de descrever o furto, denominado simples, no art.155, caput, previu um aumento de pena no § 1º (furto noturno) e, logo a seguir, no § 2º, assim estatuiu:

Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

Uma das discussões acerca da exegese do dispositivo diz respeito à possibilidade de estendê-lo à forma qualificadora de furto. O Tribunal de Justiça de Santa Catarina firmou a regra de que tal não pode ocorrer:

O Dr. Juiz de Direito, desacertadamente a nosso ver, aplicou à espécie sub judice o art. 155, § 2º, do Código Penal. Consoante vêm, reiteradas vezes, julgando os tribunais, o de Santa Catarina inclusive, no furto qualificado não tem cabimento tal aplicação. O inciso em questão, já por sua colocação no corpo do artigo, ainda pelo seu teor, tem em vista, tão só, os furtos de pequeno porte praticados por indivíduos despidos de maior periculosidade. A pena que o magistrado pode substituir é a que se comina ao furto simples (art. 155, caput, do Código Penal) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.078, da Comarca de Concórdia. Des. Ferreira Bastos, Relator. 1965/1966, p. 592).

De fato, a intenção do legislador de limitar o benefício ao furto simples e ao furto noturno é de rara evidência. Decorre a assertiva de uma constatação: a de que o texto correspondente (§ 2º) está colocado logo após o caput e o § 1º. Somente às duas figuras, portanto, ao furto simples e ao furto noturno, é que acena a lei com o privilégio. Pelo mesmo princípio,

A circunstância do repouso noturno é uma agravante do furto simples, incabendo no furto qualificado. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.528, da Comarca de Tubarão. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1968, p.500).

Crime de furto qualificado. É incompatível com essa espécie de furto a hipótese prevista no parágrafo primeiro do artigo 155 do Código Penal. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.470, da Comarca de Campos Novos. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1968, p. 528).

Agora, o que carece de reparo é o quantum da reprimenda imposta pelo Magistrado, visto como, consoante jurisprudência consolidada nesta Câmara, a agravante do repouso noturno só tem aplicação nos casos de furto simples, incabendo nos de furto qualificado, que é o dos autos. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.405, da Comarca de Criciúma. Des. Rubem Costa, Relator. 1973, vol. 2, p. 423).

O ilustre Dr. Juiz de Direito fixou em dois anos a pena-base, embora os antecedentes de EC e LC autorizassem maior quantidade. Mas no que não andou acertadamente o digno Dr. Juiz a quo foi quando a aumentou de oito meses em razão do § 1º do mencionado art. 155, pois conforme pacífica jurisprudência, "a agravante do repouso noturno só tem aplicação nas hipóteses de furto simples, sendo incabível quando se trata de furto qualificado. [Jurisprudência Catarinense, 1973, vol. 2, pág. 423 e 1972, vol. 2, p. 1260]. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.489, da Comarca de Criciúma. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1976, vol. 13, p. 419).

MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, vol. 2, p. 302/303), que apresenta uma série de argumentos no sentido da proibição legal, lembra que "se admitíssemos a aplicação no § 2º ao 4º, por identidade de razões ou princípios teríamos que admitir também que a este se aplicaria o § 1º. A réplica a isso parece-nos difícil. Mas o § 1º agrava a pena de um terço, de modo que se alguém praticasse furto com abuso de confiança (qualificação), durante o repouso noturno (§ 1º), poderia ser condenado ao máximo de oito anos com o acréscimo de um terço, o que daria pena superior ao máximo do roubo (art. 157)".

Ao furto qualificado não se aplica, pois, dissera antes o mesmo autor, a diminuição do § 2º do art. 155: "A disposição técnica do Código mostra-nos isso. No § 2º ele se refere a pena que não pode ser outra que a do furto simples, mencionada antes. Não pode ser a cominada dois parágrafos depois. Elementar conhecimento técnico faria então o legislador colocar esse parágrafo em último lugar. Não houve descuido do legislador". (ob. cit., pág. 301). É igualmente a opinião de NÉLSON HUNGRIA e HELENO FRAGOSO.

Escreveu o primeiro: "Como já foi observado, o diminuto valor da coisa subtraída não exclui o furto; mas a lei não deixa de tê-lo em conta, para um temperamento da sanção penal: identifica no caso um furtum privilegiatum, isto é, autoriza o juiz a reconhecer no pequeno valor, e desde que primário o agente, uma atenuante especial ou minorante da penalidade cominada quer ao furto simples, quer ao furto noturno (abstraído o furto qualificado)". (Comentários ao código penal, vol. 7, pág. 29).

Segundo HELENO FRAGOSO, o § 2º do art. 155 outorga ao juiz "uma faculdade para corrigir, pela eqüidade, a rigorosa sanção cominada ao crime de furto. Aplica-se ela tanto ao furto simples como ao furto noturno..." (Lições de direito penal, vol. 1, p. 244). Volta ao assunto em sua Jurisprudência Criminal, nº 63: "O § 2º do art.155 não se aplica em caso de furto qualificado. Na hipótese de subtração com destreza da importância de Cr$ 65,00, entendeu o juiz de aplicar o disposto no § 2º do art. 155, considerando estarem configurados os seus pressupostos. A 2ª Câmara Criminal do T.J. da Guanabara, na Ap. Crim. 34.362, relator o des. Thiago Ribeiro Pontes, decidiu em contrário, afirmando que aquela disposição não se aplica ao furto qualificado. Decisão correta. O citado dispositivo de lei aplica-se somente ao furto simples e ao furto noturno" (pág. 51).

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina vem sendo fiel a esse entendimento:

Não ocorre a minorante do art. 155 § 2º. Mesmo que se considerasse de pequeno valor as coisas furtadas, o que não é o caso, pois custaram ao ofendido mais de duzentos cruzeiros novos – e se tivesse como possível, no furto qualificado, contrariando prestigiosas opiniões, a aplicação do citado permissivo legal (...) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.715, da Comarca de Palhoça. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1969, p.. 569).

Não o impressionavam acórdãos de outras plagas, favoráveis à extensão do benefício:

Embora seja tranqüila a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto à aplicação do § 2º, do art. 155, do Código Penal, nos crimes de furto qualificado, o contrário vem sendo decidido por outros Tribunais, inclusive por esta Colenda Câmara Criminal, que a tem repelido. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.233, da Comarca de Florianópolis. Des. Miranda Ramos, Relator. 1971, vol. 2, p. 796).

Em 1972, porém, talvez porque houvesse encontrado melhor solução, já não recusou validade à tese que sempre rejeitou. Tratava-se de réu menor, condenado a 2 anos de reclusão e um cruzeiro de multa, por furto qualificado (art. 155, § 4º, inciso IV, do Código Penal):

Pede-se a aplicação do art. 155, § 2º, por ser pequeno o valor da coisa subtraída. Realmente, o valor do furto não chegou ao salário-mínimo da região, verificando-se, ademais, que a maior parte da mercadoria foi restituída ao legítimo dono. No entanto, é mais indicado, na espécie, e de melhor política criminal, manter a pena imposta, concedendo-se ao réu, que é menor e primário, para se lhe dar uma oportunidade de reingressar no justo caminho, o benefício do sursis...(Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.955, da Comarca de Porto União. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1169).

A Primeira Câmara Criminal, se voltou a reafirmar o velho ponto de vista, deixava claro, no entanto, que o caso concreto não permitia decisão diferente:

Desse modo, não há falar em abrandamento da punição, pois a pena privativa de liberdade já foi fixada no mínimo e, outrossim, mesmo que se entenda, em tese, aplicável, no furto qualificado e continuado, o privilégio estabelecido no § 2º, do precipitado art. 155, para o furto simples, circunstâncias especiais do caso impossibilitaram o tratamento benigno (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.646, da Comarca de Lages. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 13, p. 373).

A mesma Câmara teve o cuidado, em outro acórdão, de esclarecer na respectiva ementa que a desclassificação "para privilegiado" era inadmissível "na espécie":

Furto continuado e qualificado pelo concurso. Desclassificação para privilegiado. Inadmissibilidade na espécie. Ainda que, por interpretação liberal e extensiva, se considere cabível a desclassificação do furto continuado e qualificado pelo concurso para a modalidade privilegiada, não se pode, entretanto, admiti-la se circunstâncias especiais ocorrentes não a recomendam.

Que circunstâncias especiais eram essas? Conforme consta do corpo do acórdão,

Os fatos ocorreram em zona rural, de poucos recursos policiais, onde sabidamente os crimes contra o patrimônio, em regra, ocasionam generalizada inquietação, mormente se repetidos; as coisas furtadas tinham apreciável valor e não foram inteiramente recuperadas; e, por sobre isso, inegável a periculosidade dos réus, embora primários. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.794, da Comarca de Maravilha. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 13, p.377).

1.2 A nova orientação

Assim, já se podia imaginar que, mais cedo ou mais tarde, haveria de surgir o "caso concreto" que justificasse uma posição desapegada da antiga orientação. Esta, ainda que consentânea com o ponto de vista do legislador – o texto da lei continuava o mesmo – estava perdendo, pouco a pouco, o prestígio original.

Por isso, quando dois réus foram condenados por furto qualificado pelo concurso de agentes, sendo um deles primário, com 19 anos de idade, e o outro reincidente específico, não teve dúvida a Primeira Câmara Criminal em manter a sanção do primeiro, nada obstante recurso da Promotoria Pública, inconformada com a decisão que reduziu a pena de 2 anos para 8 meses, com base no § 2º do art. 155. Reza a ementa:

Furto privilegiado. Delito qualificado pelo concurso de duas pessoas, sendo um agente primário e outro reincidente específico. Ínfimo prejuízo da vítima. Aplicação do § 2º do art. 155, C.P. Admissibilidade. A qualificação do furto, por si só, não desautoriza a aplicação do § 2º do art. 155 do Código Penal, que deve ser avaliada frente às circunstâncias especiais do caso, do valor do prejuízo sofrido pela vítima e, notadamente, das personalidades dos transgressores. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.641, da Comarca de Balneário Camboriú. Des. Tycho Brahe, Relator. 1976, vol. 14, p. 461).

A douta Procuradoria manifestou-se "pelo provimento do recurso com o decorrente ajustamento das penas impostas". Portanto, mesmo na espécie, não admitia uma reviravolta no entendimento jurisprudencial, fruto de uma desapaixonada exegese dos dispositivos legais.

Pouco adiantou. Decorridos mais de 30 anos de vigência do Código, já se podia, finalmente, pelo menos em relação a um dos réus, olhar de frente o rigorismo da lei para afastá-la no caso concreto:

.... o adotar, pura e simplesmente, indiscriminadamente, sem a avaliação das circunstâncias que impregnam cada caso, a orientação jurisprudencial suso invocada, "quando possível reconhecer o furtum privilegiatum, é incorrer no summum jus, summa injuria, conforme decidiu a Câmara Criminal, em acórdão da lavra do eminente Des. Marcílio Medeiros (apelação criminal nº 13.510, da comarca de Criciúma, julgada em 15-12-1975). A espécie dos autos comporta uma dúplice solução, determinada, cada qual, pelas condições pessoais dos apelados, e considerando, em relação a cada um deles, o valor, aliás não mencionado nos autos, das coisas furtadas. Ao acusado JC, ao tempo do crime com 19 anos de idade, primário, deve ser, pelo furto de duas latas de conserva um pouco enferrujadas, imposta a pena de 2 anos de reclusão, além da multa cabível ? Ora, não se pode afirmar tivesse a vítima, em função do furto, sofrido qualquer prejuízo. Assim, ante a primariedade do réu e ao ínfimo prejuízo da vítima, é aplicável, excepcionalmente, o art. 155, § 2º, do Código Penal, inobstante a ocorrência de delito qualificado, visto que "a qualificação e o caráter continuado da infração não arredam, por si só, a aplicação do § 2º, do art. 155, do C.P., devendo ser considerado, além das circunstâncias especiais do caso, o valor do prejuízo sofrido pela vítima" (Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, vol. 35, pág. 78) (idem, pág. 462).

Em síntese: em se tratando de réu primário, menor, que pratica furto qualificado de duas latas um pouco enferrujadas, não convém seguir a lei, sob pena de iniqüidade.

Sublimamos a frase: não convém seguir a lei. E foi isso, afinal, o que ocorreu. O esforço, aliás compreensível, no sentido de justificar para a espécie a minorante do § 2º do art. 155, invocando-se para tanto o caráter excepcional de sua aplicação, não consegue encobrir o afastamento da lei. Há clareza no acórdão: a rejeição do furtum privilegiatum importaria adesão ao summum jus, summa injuria. Assim, visível a criação de uma antinomia entre o princípio da lei e o princípio de justiça material, recurso extremo de que dispõe o magistrado quando não pretende transformar-se em instrumento passivo de uma determinação legal ocasionalmente draconiana.

O juiz, no fundo, julga a lei, ou da inevitabilidade de sua aplicação. Tanto isto é verdade que o furto dos mesmíssimos objetos importou para o co-réu uma punição visivelmente elevada: 5 anos e um mês de reclusão, além de multa de Cr$ 12,00. Em outras palavras, pareceu juridicamente correto conceder a um dos acusados os benefícios possíveis, legais e extra-legais; e, ao segundo, todos os rigores da lei. Este, em primeira instância, fora condenado à pena de 5 anos e 1 mês de reclusão, reduzida para 4 anos e 2 meses por força da regra do § 2º do art. 155. Mas não mereceu condescendência:

Se, quanto ao acusado C, agiu corretamente o magistrado ao aplicar o favor legal, já o mesmo não pode ser asseverado quanto ao acusado G, que, por ser reincidente específico, não podia, frente aos termos categóricos do cânone penal aplicado, ser beneficiado, pois "O benefício do art. 155, § 2º, do CP, só deve ser outorgado a transgressores de boa personalidade" (Julgados, supra referido, vol. cit., pág. 220), e não se pode pretender como de boa personalidade quem, como este acusado, além de reincidente específico, amplamente documentado nos autos, contava, ainda, com a prática de outro delito e posterior condenação (idem, ibidem).

Por maus antecedentes, inclusive reincidência específica, deixava o co-réu de beneficiar-se dos favores do § 2º do artigo 155 e, pior ainda, deveria ter sua pena calculada com base no famigerado nº I do art. 47 (acima da metade da soma do mínimo com o máximo)

E assim foi feito. Desta vez, nada de invocação do summum jus, summa injuria. Teria a douta Primeira Câmara achado realmente justa a condenação correspondente a 5 anos e 1 mês? Do ponto de vista da justiça formal, não resta a menor dúvida. No que concerne à convicção de haver aplicado a pena adequada, sob o prisma da justiça material, o assunto não ficou bem esclarecido. É que, ao fundamentar-se a decisão, fala-se agora em expressa proibição de lei, em "termos categóricos do cânone penal". Se a vantagem é privativa do criminoso primário, na expressão do Código, não poderia estender-se ao reincidente, àquele que denota má personalidade. Por maior que fosse a boa vontade da egrégia Câmara, não teria condições de, num passe de mágica, transformar o reincidente em primário. Dura lex, sed lex, diria ela agora, a título de velada censura ao MM. Juiz a quo...

1.3. As armas do juiz

O que se pode concluir de tudo isso é que o julgador dispõe, pelo menos, de duas armas bem distintas: summum jus, summa injuria e dura lex, sed lex. A primeira é utilizada, indiscriminadamente, ainda que ao arrepio de texto expresso de lei, pelo juiz que se preocupa, acima de tudo, com a justiça material, isto é, com a justiça adaptada —segundo sua concepção pessoal — ao caso concreto. O que vale é o problema, a requerer uma solução única, em função de seus dados e circunstâncias. É claro que não se dispensa uma argumentação, cuja solidez, por sinal, passa a constituir o ponto de honra de seu artífice. A segunda, relacionada com o fiat justitia, pereat mundus, importa um posicionamento prévio de inteira dependência para com o ordenamento jurídico. Obrigação do juiz é interpretar e aplicar a lei, pura e simplesmente, pouco importando sua opinião a respeito do respectivo conteúdo e as possíveis conseqüências de uma automática subserviência. Respeita-se, com isso, onde houver, o princípio da separação dos poderes, além de se exercitar, com absoluta imparcialidade, a regra da justiça formal.

Há posições intermediárias. Uma delas se revelou, exatamente, com a "dúplice solução" apregoada no venerando acórdão analisado. Mas é preciso ler nas entrelinhas. A extensão do citado § 2º foi aceita sem mais problemas porque havia precedentes de outros tribunais, a indicar que inexistia uma total segurança a respeito da sua impossibilidade. Os velhos argumentos não pareciam, assim, tão resistentes; e se o caso concreto suscitava uma decisão benigna, a solução seria o abandono do princípio, ainda que em caráter excepcional. Já o mesmo não poderia ocorrer se o réu é reincidente. Havia prova nos autos, mais do que segura, em tal sentido. Ora, a redução prevista no parágrafo é privativa do réu primário, daria muito na vista passar por cima do texto legal. Inexistiam precedentes. Quem se arriscaria a ser o primeiro? Quem se atreveria a decidir abertamente contra a lei? O Juiz a quo o fez, só que um erro não justifica o outro — acrescentaria, quem sabe, a douta Câmara.

A propósito, em outro processo, quando a condição de reincidente impedia os favores do requerido dispositivo, não se relutou em seguir à risca a letra da lei, embora com censuras ao seu rigorismo:

Decidiu com acerto a respeitável sentença de fls. ao reconhecer, com base em indícios fortes e convincentes, que não comportam outra conclusão, ter efetivamente o apelante, conforme relatado na denúncia, furtado de uma gaveta do armazém de propriedade de AP, na cidade de Antônio Carlos, uma cédula de cem cruzeiros. Todavia, quanto à pena, embora reincidente genérico o réu, atendido o pequeno valor do furto e a circunstância de encontrar–se ele embriagado, portanto sem a exata compreensão do alcance e gravidade dos seus atos, é de ser reduzida a um ano e um dia, isto é, um dia somente acima do mínimo legal. Não se faz maior redução, ou se substitui a reprimenda, visto tratar-se, como já exposto, de reincidente. Excessivamente rigoroso o Código Penal em matéria de delitos contra o patrimônio, de molde a não permitir, num caso como o dos autos — furto de pequena quantia praticado por um bêbado — a aplicação do benefício estabelecido no art. 155, 2º, constrangendo Juízes e Tribunais a impor ao agente pena por demais elevada em relação ao delito praticado. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.108, da Comarca de Biguaçu. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 435).

Se o texto se mostra claro, se manifesta é a intenção do legislador de afastar do réu primário o alcance de sua regra, o máximo que se faz, ou que se pode fazer, em determinadas circunstâncias, é deixar registrado na sentença ou no acórdão a desaprovação judicial. Quanto ao acusado, que sofra os efeitos do legem habemus.

Mas quando a "clareza" não chega a obter por parte de todos a unanimidade de pontos de vista, e o exame das conseqüências práticas das possíveis decisões afeta a sensibilidade do aplicador da lei, procura-se, desde logo, uma saída para o impasse. Tem que ser, de preferência, uma saída honrosa, baseada na lei, mesmo que o legislador manifeste seu espanto com tanta engenhosidade.

É por isso que se consegue, sem maiores problemas, como ocorreu em 1970, desclassificar um furto duplamente qualificado (CP, art. 155, § 4º, incisos II e IV) para o furto privilegiado do art. 155, § 2º. Só que os réus eram primários e, melhor ainda, menores de 21 anos:

A solução aventada, na decisão transcrita, é de ser aplicada ao caso dos autos, por isso que, também aqui, resultou evidenciado que os apelantes, ao se apossarem do veículo não revelaram a intenção de dele se apropriarem. Ao contrário é indisfarçável que pretenderam e tão somente, usá-lo, nos passeios que empreenderam, pelas ruas da cidade, circunstância essa que, por si só, afasta a hipótese do furto do automóvel. No entanto, servindo-se, arbitrariamente, do veículo consumiram a gasolina e óleo existentes no carro, verificando-se, quanto a estes, o crime de furto. Não é outra a solução proposta pela Procuradoria Geral do Estado, quando assinala que, na espécie, "não se pode deixar de reconhecer que o furto foi de ínfimo valor, visto como não ultrapassou do combustível consumido na circulação do veículo pela cidade, o que, juntamente com a qualidade de primários dos acusados, justifica a incidência do § 2º do já referido art. 155, como pleiteiam os apelantes". Assim, pelas razoes expostas, dá-se provimento em parte ao recurso para, desclassificando o crime, condenar os réus como incursos no art. 155, ou seja, para "furto de pequeno valor" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.997, da Comarca de Porto União. Des. Miranda Ramos, Relator. 1970, p. 491).

Em nenhum momento do venerando acórdão se afirmou ter desaparecido o concurso de agentes. Bem ao contrário, a co-delinqüência, que justificaria, no entanto, a aplicação do art. 155,§ 4º, IV, foi apregoada do começo ao fim, sem maiores problemas. Reconheceu-a expressamente a Primeira Instância. Agiu de modo contrário a Câmara Criminal, com a maior naturalidade, limitando-se a desclassificar a figura delituosa para o art. 155, § 2º, pelos motivos já expostos. Primariedade e pequeno valor da coisa subtraída concorreram, decisivamente, para a pena definitiva de 1 ano de reclusão, convertida em detenção com sursis.

Difícil, praticamente impossível, afirmar se houve simples descuido, recurso à ficção ou consciente e propositada eliminação da forma qualificada, pela prevalência do furto privilegiado. Casos semelhantes ocorrem aqui e ali, suscitando as mesmas dúvidas. O fato é que ainda recentemente voltou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por sua Segunda Câmara Criminal, acatando parecer da Procuradoria, a esclarecer que

O concurso de agentes, que é incontestável, era suficiente para justificar o enquadramento no parágrafo 4º, art. 155. De nenhuma valia a afirmativa da primariedade e do pequeno valor das coisas furtadas, porquanto a qualificativa é decorrente da forma de perpetração do delito, quando o agente demonstra maior persistência à pratica de seu objetivo ilícito e, portanto, maior necessidade de repressão. Assim, nos termos em que o problema foi colocado, nada há que se fazer. (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 14.502, da Comarca de Caçador. Des. Tycho Brahe, Relator. 1977, vol. 17, p. 487).

Capítulo 2

2.1. Ausência de fraude 2.2. A grande revelação 2.3. Redefinição aclaratória

2.1. Ausência de fraude

De conformidade com o disposto no art. 171, § 2º, VI do Código Penal incorre nas mesmas penas do estelionato quem emite cheque sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento.

Interpretando o dispositivo, esclarece NÉLSON HUNGRIA que "se o agente emite o cheque apenas para fornecer um documento de dívida, cientificado o tomador da inexistência (ou insuficiência) de provisão, não será subjetivamente reconhecível o crime." (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 241). Mais adiante: "Já nos referimos acima ao caso em que o tomador, ao receber o cheque, está ciente da ausência de provisão: deve entender-se que o aceitou apenas como um título de dívida, e, assim, ou foi o próprio emitente que lhe deu tal ciência, e não haverá o dolo específico do crime, ou, ainda que silente o sacador, deixará de haver o crime, porque o que a lei tutela, na espécie, é o cheque como instrumento de pagamento, e não como título probatório de dívida" (idem, p. 242).

Eis a lição de MAGALHÃES NORONHA: "... é claro que o beneficiário que aceita um cheque, com data posterior à da emissão, fica ciente da inexistência de fundos do emissor. A pós-data é confissão deste que não possui cobertura no momento e por isso mesmo pede um prazo para realizá-la. Passando-se assim os fatos, como poderá mais tarde o portador, na cobrança, alegar que foi iludido, que estava na crença de que havia fundos, se, na realidade, o que houve foi promessa do emissor de pagar naquele dia? É como se o tomador ou credor de uma letra de câmbio, não paga no dia do vencimento, se fosse queixar à polícia por não ter sido reembolsado". (Direito penal, vol. 2, 1963, p. 536/537).

Na esteira desse entendimento, decidiu a Egrégia Câmara Criminal de Santa Catarina, em 1968, que

a emissão de cheque pós-datado faz presumir o conhecimento da indisponibilidade de fundos da parte do sacador. O crime de estelionato somente é punível a título de dolo, específico e genérico: aquele configurado pela ciência da impossibilidade de efetuar o pagamento, este resultando da intenção de obter lucro em detrimento do patrimônio alheio (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.533, da Comarca de Jaraguá do Sul. Des. Nogueira Ramos, Relator. 1968, p. 563). Ficou então esclarecido que ‘o que a lei penal pune no nº 6 do § 2º, do artigo 171, é unicamente a emissão fraudulenta de cheque sem suficiente provisão para pagamento. Quando feita aquela como garantia de negócio realizado, uso que já se faz freqüente, escapa da sanção penal, constituindo, antes, transação de natureza civil’ (idem, p. 565).

Pouco importava se o automóvel adquirido fora logo em seguida vendido em outra cidade pelo apelante, que, aliás, tinha sido condenado na forma do art. 171, caput, e, não, do respectivo § 2º, VI.

Em recurso de habeas corpus deixou-se igualmente assinalado que

se o cheque foi emitido como instrumento de dívida e não como ordem de pagamento à vista, inocorre o crime de fraude no pagamento por meio de cheque.

Eis os fatos principais:

Pelo que consta dos autos, a 28 do mês de outubro próximo passado (1967), o recorrido L.V. efetuou, na cidade Blumenau, avultada compra de mercadorias, pagando-as através de cheques contra o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo S.A. Alguns desses cheques foram datados de 28, outros do dia 29 e os demais pós-datados, inclusive um com vencimento previsto para 30 de dezembro do corrente ano. Na oportunidade da emissão, ao que declararam os próprios prepostos das firmas vendedoras, ficou assentado que os títulos datados de 28 e 29 de outubro seriam apresentados dias após essas datas. Todavia, no mesmo dia 29, suspeitando de L., o gerente de uma das casas vendedoras dirigiu-se ao Banco sacado, e verificando aí que o mesmo não tinha fundos no estabelecimento em apreço, queixou-se à autoridade policial e cientificou as demais firmas interessadas. L. foi preso e com ele foram também presos B.V. e S.L, que o acompanharam nas compras, lavrando-se na Delegacia de Polícia o respectivo auto de prisão em flagrante. (Jurisprudência do TJSC, Recurso de Habeas Corpus nº 880, da Comarca de Blumenau. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1968, p. 84 e 85).

Foi o gerente de uma das casas que, apressadamente, impediu se tomasse conhecimento da existência de fraude, certamente não confessada pelas partes. Se os cheques deveriam ser apresentados em data posterior e se a pretensa vítima violou o acordo, que desnaturava os títulos, como apregoar a prova do indispensável elemento subjetivo? Valeu a atitude por seu aspecto prático, uma vez que as mercadorias foram devolvidas, mas não serviu como expediente suscetível de desvendar o que precisava ser desvendado.

Decisão correta, ao que tudo indica. Entretanto, em face dos termos genéricos do art. 171, caput, que define o estelionato, seria preferível que se deixasse explícito, na ementa, o motivo inspirador: ausência de dolo.

Outros acórdãos se seguiram. Na verdade, não eram revolucionários, havia precedentes do Pretório Excelso. Note-se que, algumas vezes, a hipótese de cheque entregue em garantia de pagamento de dívida era capitulada, na denúncia, no art. 171, § 2º, VI, o que facilitava a absolvição:

A existência de fraude, pois, no ato da transação, não cabia mesmo admitida e sem fraude não há o delito pretendido. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.225, da Comarca de Joinville. Des. Rubem Costa, Relator. 1970, p. 581).

Observe-se o detalhe: sem fraude não há o delito pretendido, ou seja, precisamente o de fraude no pagamento por meio de cheque. Desnecessário reproduzir os argumentos expendidos.

Outras vezes, porém, e isto é sintomático, hipóteses idênticas eram enquadradas, para possível condenação, no caput do artigo. Pouco adiantava:

Emissão de cheque pós-datado. Sabendo o recebedor que não havia fundos na data em que lhe foi entregue, transforma-se ele em título de crédito, deixando o fato de ser estelionato. (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.770, da Comarca de Tubarão. Des. Waldir Taulois, Relator. 1969, pág. 701).

2.2. Mudança de orientação

O tema já estava ficando monótono, cansativo, quando surge uma novidade:

Habeas corpus. Prisão Preventiva. Pacientes que conseguiam "comprar" veículos automotores para revenda, dando aos respectivos proprietários, como entrada, pequena parcela em dinheiro e emitindo, a fim de satisfazer o restante do preço estipulado, cheques pré-datados, com o propósito declarado de não efetuar, na ocasião oportuna, depósito bancário das importâncias correspondentes. Figura de estelionato na modalidade prevista no caput do art. 171 do CP. Conveniência da medida preventiva, para assegurar a aplicação da lei penal, suficientemente justificada. Ordem denegada (...). Segundo noticiam os autos apensados, os pacientes, em conluio, conseguiram adquirir, em lugares diversos, veículos automotores, dando aos respectivos proprietários, como entrada da "compra", pequena parcela em dinheiro e emitindo, para satisfazer o restante do preço estipulado, cheques pré-datados, mas já com o propósito (fls. 34) de não efetuar, como de fato não efetuaram, na ocasião oportuna, o depósito bancário das correspondentes importâncias. E tão logos os veículos iam sendo adquiridos, por tal meio fraudulento, eram eles vendidos em outras praças. Assim, obtinham vantagem ilícita, em prejuízo do patrimônio alheio. (Jurisprudência Catarinense, Habeas Corpus nº 5.577, da Comarca de Dionísio Cerqueira. Des. Rubem Costa, Relator. 1976, vol. 14, p. 317).

Decisão corretíssima. E a grande, a enorme lição que dela deflui — afora seu caráter técnico-jurídico — consiste no fato de que há um limite para o grau de paciência do julgador. O tema, até então, era versado principalmente à luz do § 2º, n. VI, e os tratadistas e a jurisprudência já haviam, quase em uníssono, chamado a atenção para a impossibilidade de fraude na emissão de cheque como garantia de pagamento. A hipótese valia, por extensão, para o próprio caput do artigo, que exige, com todas as letras, se obtenha vantagem ilícita "induzindo ou mantendo alguém em erro".

Ora, como poderia o tomador ser induzido em erro se sabia que estava recebendo um cheque desnaturado, com data falsa? Se os seus termos eram claros no sentido de que, naquele momento, o pedaço de papel não valia nada, absolutamente nada?

Relembrando: foi esse o caminho seguido pelos venerandos acórdãos citados, pelo menos no seu enunciado formal. Parece supérfluo voltar a transcrevê-los.

A jurisprudência tem sido liberal nessa questão de cheque sem provisão de fundos, e isto é o resultado de uma experiência que não é só do Brasil, mas do mundo inteiro — dizia, num de seus votos, o eminente Ministro Evandro Lins e Silva. Ainda recentemente, lendo um livro do membro da Corte de Cassação da França, Casamayor, há pouco editado, verifiquei que o problema é também muito agudo na França e em muitos países, de modo a congestionar os serviços da Justiça Criminal. Mostra esse autor que no Japão já foi excluído do Cód. Penal esse crime, que hoje é punido com sanção administrativa severa, para evitar que não aconteça o que está ocorrendo, inclusive aqui no Distrito Federal, segundo informações que tenho, onde há um volume imenso de processos por cheque com insuficiência de fundos em poder do sacado. A verdade é que o cheque se desvirtuou, na sua aplicação prática. Hoje, ele é utilizado abertamente para garantia de dívida, em substituição às promissórias. (VENTURA, Paulo. Crimes contra o patrimônio, p. 160/161).

A respectiva ementa era curta e fulminante:

Estelionato – Cheque – Garantia de dívida. Se o cheque foi entregue como garantia de dívida, para desconto futuro, e não como ordem de pagamento à vista, não se configura o delito de estelionato. (idem, pág. 157).

Todos esses argumentos ruíam de repente. As peculiaridades do caso concreto, sub judice, clamavam por uma condenação. Entre a desmoralização do cheque, verdadeiro fato consumado, e o aviltamento da justiça, como virtude, havia uma diferença enorme. Impunha-se, por outro lado, conciliá-la com o direito.

No fundo, nada mais fácil.

Releia-se, por exemplo, a seguinte passagem:

(...) mas já com o propósito (fls.34) de não efetuar, como de fato não efetuaram, na ocasião oportuna, o depósito bancário das correspondentes importâncias. E tão logo os veículos iam sendo adquiridos, por tal meio fraudulento (...).

Muito simples, portanto. Se os gregos e troianos reclamam a presença de fraude, seja como fato típico, seja como elemento subjetivo, basta descrever o evento e, nele, identificar a má-fé. Já não mais se tratava de inexistência de erro porque a vítima sabia ser o cheque antedatado. Não, o erro da vítima consistia no fato de acreditar que o emitente, estando bem intencionado, honraria o compromisso na época oportuna. Tanto que dele recebera um cheque (instrumento de prova) e lhe confiara, por exemplo, um automóvel!

O delito, assim, exatamente porque alusivo ao caput do art. 171, independia das formalidades requeridas para a figura do cheque como ordem de pagamento à vista. Da mesma forma ocorreria se ao invés de cheque desnaturado se assinasse, verbi gratia, uma nota promissória. Só que não era esse o entendimento da jurisprudência liderada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal.

A sutil distinção, visível no acórdão de Santa Catarina, já era sustentada por HELENO FRAGOSO:

É hoje pacífico, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que não há crime quando o cheque é antedatado. Em tais circunstâncias, não funciona o cheque como instrumento de pagamento, mas como título de dívida, qual letra de câmbio. O recebimento ou a aceitação de cheque sem fundos, em garantia de dívida, poderá eventualmente configurar o crime previsto no art. 160 C.P. É bem de ver, todavia, que pode o uso de um cheque sem fundos servir de meio fraudulento para a prática do crime de estelionato. Esta hipótese é, aliás, freqüente. O sujeito ativo do crime, para melhor convencer a vítima, entrega-lhe um cheque antedatado, como reembolso da vantagem fraudulenta que obtém. Nesse caso, configura-se o crime de estelionato, previsto no art. 171 do Cód. Penal caput, não sendo, evidentemente, a hipótese do § 2º n. VI. O cheque sem fundos funciona aqui como simples meio fraudulento, equiparado a qualquer outro artifício. (Lições de direito penal, vol. 2, p. 366/367).

A tanto não parecia chegar a jurisprudência de nosso Estado, como já ficou exposto, mas é certo que o problema se ligava, algumas vezes, à insuficiência de prova. Curiosamente, porém, preferiam-se outros argumentos, que dogmatizavam, sem abrir exceções, a impossibilidade de fraude na hipótese da emissão de cheque como garantia de dívida ou promessa de pagamento.

2.3. Redefinição aclaratória

Foi preciso um caso mais forte, berrante, assustador, para provocar, pelo menos, o reexame da matéria. Foi preciso que um grupo de estelionatários partisse para ações repetidas, contra vítimas diferentes, na base do "negócio" alto (veículos automotores), para que se procurasse com urgência o socorro do legislador, até então aparentemente impassível. Como sempre – ou quase sempre – nenhuma lei foi editada, tinha-se que contar com os mesmos textos legais.

Fez-se, como se esperava, uma redefinição: quer dizer, desde que a orientação predominante já não constituísse, por si só, uma redefinição de conceito. Porque, em caso positivo, então se teria mesmo era voltado ao estado original, ou advogado uma terceira possibilidade. De qualquer forma, e como a prova de má-fé saltava aos olhos, encontrou-se o que se pretendia, ou seja, o agasalho da lei.

Como explicar o fenômeno?

"Os juízes, quando interpretam a lei, argumentam estar produzindo definições aclaratórias dos significados dados pelo legislador – aduz, com a autoridade de especialista, LUIZ ALBERTO WARAT. Mas, em realidade, o legislador não propõe nenhum critério definitório. As normas gerais não contém propostas definitórias para seus conceitos" ( A definição jurídica, p. 47).

Em bom português, o sentido de um texto vai depender mesmo é da predisposição emotiva de seu intérprete, à luz das peculiaridades do caso concreto. É este que, no fundo, aclara a mensagem legislativa, até então concebida de modo diverso. A decisão considerada justa passa a encontrar respaldo na mesma norma que, até bem recentemente, parecia dizer coisa distinta.

Capítulo 3

3.1 O direito penal como sistema fechado 3.2 Cheque sem fundos: interpretação uniforme 3.3 A novidade jurisprudencial 3.4 Caso típico de decisão contra a lei 3.5 A desmoralização do cheque: repercussão jurídico-penal

3. 1. O direito penal como sistema fechado

Qualquer pessoa que exerça atividade no foro deve ter parado um dia para perguntar: "Afinal, o direito é a mesma coisa que a lei?" Há os que passam a vida tentando oferecer uma resposta convincente e, por mais taxativos que pareçam, provavelmente guardam consigo uma dose de dúvida e incredulidade.

NÉLSON HUNGRIA se mostrou categórico:

A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito. Sub specie juris, não existe crime "sem lei anterior que o defina", nem pena "sem prévia cominação legal". Nullum crimen, nulla poena sine proevia lege poenali. A lei penal é, assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omissa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pela analogia, ou pelos "princípios gerais do direito", ou pelo costume. Do ponto de vista de sua aplicação pelo juiz, pode mesmo dizer-se que a lei penal não tem lacunas (...) Os preceitos sobre causas descriminantes, excludentes ou atenuantes de culpabilidade ou de pena, ou extintivas de punibilidade, constituem jus singulare em relação aos preceitos incriminadores ou sancionadores, e, assim, não admitem extensão além dos casos taxativamente enumerados. Notadamente, é de enjeitar-se a teoria das "causas supra-legais de exclusão de crime ou de culpabilidade", excogitada pelos autores alemães para suprir deficiências do Código Penal de sua pátria (velho de mais de meio século), não se justificando perante Códigos mais recentes, que procuram ir ao encontro de todas as sugestões no sentido de se obviarem os inconvenientes do sistema fechado da lei penal (Comentários ao código penal, vol. 1, p. 9 e 76/77).

Simetria, pois, do direito penal, já que não há que distinguir entre causas favoráveis e desfavoráveis ao réu. E sua identificação com a lei, expressão da "vontade coletiva" (idem, p. 67), ainda que, eventualmente, consubstanciada num decreto-lei.

O respeito à lei, em qualquer circunstância, constituiria verdadeiro tabu. Todas as concessões do inesquecível Mestre, no sentido de humanização ou acomodação, eram feitas nos limites da amplitude ou generalidade do texto:

Aplique-se a "justiça do caso concreto", tanto quanto o permita a norma legal ao definir a "justiça do caso abstrato", e isto mais acentuadamente numa época, como a atual, de profunda crise político-social, a exigir uma longa transfusão de eqüidade no sistema jurídico, para evitar-lhe o desmantelo e ruína. Mas, fiquem aí os juízes. Não passem daí, pois, do contrário, estariam tomando a iniciativa de demolição da ordem jurídica. Deixar ao livre alvedrio ou variável critério dos juízes a aplicação do que eles, fora da lei, entendem por direito, seria fazer da justiça uma incerteza e uma constante ameaça à segurança dos direitos individuais e sociais (idem, ibidem)

O exame da jurisprudência nos permite afirmar que não é seguida a lição de NÉLSON HUNGRIA. E é justamente a discrepância jurisprudencial que reaviva a cada instante a indagação sobre a inevitabilidade da identificação do direito com a lei, emanada ou não do respectivo poder. Afinal, todas as dificuldades de interpretação da lei não chegam ao ponto de impedir se obtenham, aqui e ali, convergências refletoras de significativo consenso.

3.2. Cheque sem fundos: interpretação uniforme

Significativo consenso existiu, por exemplo, na verificação da inexistência de autorização legal para que se apregoasse inocorrente o crime de emissão de cheque sem fundos se veio a ser pago antes da denúncia. Para se chegar a tal conclusão, diga-se de passagem, não se gastou muito fosfato. Foi suficiente abrir o Código Penal e verificar que em nenhum momento se consignou regra em tal sentido. Assim, o artigo 48, IV, b, determina seja atenuada a pena do agente que tenha procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou reparado o dano antes do julgamento. Trata-se de preceito geral, válido para todos os crimes, que se pressupõem, obviamente, tentados ou consumados. O § 1º do art. 171, por seu turno, reportando-se ao § 2º do art. 155, somente preconiza a substituição da pena de reclusão pela detenção, sua diminuição de um a dois terços ou a aplicação exclusiva da pena de multa. Já o art. 108 se refere à extinção da punibilidade, pelo ressarcimento dano, apenas no peculato culposo.

3.3. A novidade jurisprudencial

Mas em Santa Catarina, como em outros Estados, por inspiração do Supremo Tribunal, o Eg. Tribunal de Justiça passou a decidir de modo diferente:

Por conseguinte, provado o pagamento do débito, antes da denúncia, não mais se justificava o prosseguimento do processo, na forma da jurisprudência de nossa Egrégia Corte de Justiça, e do próprio Pretório Excelso (Jurisprudência Catarinense, Habeas Corpus nº 4.921, da Comarca de Florianópolis, Des. Reynaldo Alves, Relator. 1973, vol. 2, pág. 316). Cheque sem fundos (Cód. Penal – art. 171, § 2º inciso VI). Extinção da punibilidade do crime pelo pagamento antes do recebimento da denúncia. Desnecessidade de que esse pagamento se efetue antes de oferecida a peça vestibular. Falta de justa causa para a ação penal. Decisão mantida. (...) Conforme entendimento assente no Excelso Pretório, as medidas contra os cheques sem fundo tendem a ser mais de ordem administrativa do que penal (R.T.J., 46/553), dando azo a que a composição havida entre as partes, pelo ressarcimento do dano, ocasione a extinção da punibilidade. Segundo a orientação que norteia esse entendimento, não demonstrada lesão patrimonial, a emissão de cheque sem fundos se mostra indiferente ao direito penal. Ora, não havendo crime, inexiste, como corolário lógico, justa causa para a ação penal. Mas a denúncia já estava oferecida quando os cheques foram pagos, adverte o douto recorrente. De fato. Entretanto, tal circunstância não modifica a situação do recorrido, pois a diretiva adotada é a de que a ação penal só pode ser instaurada com justa causa se o cheque não houver sido pago, valendo recordar que ela (a ação penal) não se inicia pelo oferecimento, senão pelo recebimento da denúncia (R.T.J., 59/373), e isto ainda não ocorrera (Jurisprudência Catarinense, Recurso Criminal nº 6627, da Comarca de Rio do Sul. Desª. Thereza Tang, Relatora. 1975, vol. 7/8, p. 471).

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Fala-se, primeiro, em extinção da punibilidade pela composição entre as partes. Depois se vai mais longe: o ressarcimento do dano impede se configure o próprio crime. Faz-se, porém, uma ressalva:

(...) não há confundir a emissão de cheque sem fundos com o crime de estelionato, conforme o caput do art. 171 do Cód. Penal, pois são delitos diferentes. "A assimilação de um ao outro foi instituída entre nós por causa da substância da pena, que é a mesma, e não por causa da substância da fraude, que é diversa na configuração de qualquer deles" (R.T.J. 68/716). Inaplicável, portanto, a jurisprudência desta Egrégia Câmara trazida à colação pelo recorrente, porquanto o caso focalizado no venerando aresto citado diz respeito ao tipo fundamental de estelionato (caput do art. 171), quando a indenização do prejuízo – que, salvo no peculato culposo, não figura entre os modos de extinção da punibilidade (Cód. Penal, art. 108) – não admite o trancamento da ação penal pela singela razão de que, então, o pagamento ocorre depois de já consumado o crime (R.T.J., 68/718), situação evidentemente diversa da que o ocorre na emissão de cheque sem provisão de fundos (idem, p. 417/418).

Assim, o favor jurisprudencial se cinge à emissão de cheque sem fundos, não se estendendo ao caput do art. 171, conforme, aliás, se reafirmou em outro acórdão:

Disso resulta que se se tratasse de emissão de cheque sem fundos, pela jurisprudência ainda em vigor nesta Casa, o caso seria de absolvição, mas como se trata de estelionato (art. 171), o ressarcimento apenas constitui a atenuante que o Dr. Juiz de 1º grau considerou a prevista no art. 48, IV, b, do Cód. Penal, não servindo para os efeitos do § 1º do art. 171 (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 14.419, da Comarca da Capital. Des. João de Borba, Relator. 1977, vol. 17, p. 390).

Nem ao menos há necessidade de liquidar, de uma só vez, o cheque. O acordo com o lesado impede a criminalidade do fato, ou sua censurabilidade:

Fraude no pagamento por meio de cheque. Composição amigável entre as partes, como parcelamento da dívida. Despacho que rejeita a denúncia. Manutenção. Aceitando o credor, como liquidação de cheque emitido sem cobertura bancária, novas condições de pagamento, firmadas em contrato, parcelando a dívida, restou desnaturado o instituo do cheque e ilidida a própria criminalidade do fato imputado ao agente, justificando-se a rejeição da denúncia (Jurisprudência Catarinense, Recurso Criminal nº 6.662, da Comarca de Balneário Camboriú. Desª. Thereza Tang, Relatora. 1975, vol. 9/10, pág. 529).

No que, porém, assiste razão ao réu – encontrando a matéria abrigo da douta Procuradoria Geral do Estado – é de ter sido desnaturada a função precípua do cheque, dês que, sendo ordem de pagamento à vista, concordou o lesado com o parcelamento da dívida, recebendo antes da denúncia, a importância de hum mil cruzeiros, de um total de três (fls. 26 v). (...) In casu, se inexiste forma contratual de parcelamento da dívida, o lesado, ao aceitar por conta do título, antes da denúncia, a quantia já mencionada, desvirtuou a finalidade do cheque, e, destarte, resultou sem razão de censurabilidade a conduta do agente (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.968, da Comarca de Caçador. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1976, vol. 14, p. 379/380).

3.4. Caso típico de decisão contra a lei

É hora de, juntamente com outras decisões, examinar os argumentos expendidos. Pois bem, em nenhuma oportunidade se aponta o dispositivo legal que sustenta a vitoriosa orientação. É que simplesmente não existe. Não existindo, a única saída é o recurso à ficção, pouco importando se a Terra continua girando em torno do Sol...

Quer dizer, se há o desejo de absolver, e se a lei não oferece o menor amparo (muito pelo contrario), o jeito é decidir contra ela. E como não fica bem, na maioria das vezes, afirmar de público que se está decidindo contra a lei, convém manter as aparências, mesmo com o sacrifício dos conceitos mais rudimentares do direito.

Não há, data venia, outra explicação para a tese de que o crime de fraude no pagamento por meio de cheque se consuma... com o recebimento da denúncia! Sim, com o recebimento da denúncia (pelo menos em Santa Catarina), ficou bem claro nos acórdãos aludidos, que devem ser cotejados com este outro, bastante elucidativo:

Fraude no pagamento por meio de cheque. Absolvição porque ressarcido o prejuízo no curso da instrução criminal. Decisão reformada. Pago o cheque depois de recebida a denúncia, tal ocorrência serve para atenuar a pena, mas não atua como causa extintiva do crime de estelionato (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.012, da Comarca de Jaraguá do Sul. Des. João de Borba, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 470).

Reza, aliás, a súmula nº 554 do Supremo Tribunal Federal:

O pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal.

É preciso, todavia, ler nas entrelinhas. Quem se sente à vontade para transferir à vítima o poder de, recebendo o dinheiro ou concordando em recebê-lo mais tarde, extinguir não só a pena mas o crime – melhor ainda, impedir-lhe a própria configuração – nenhum constrangimento terá em propor um limite de tempo, igualmente inventivo, para a milagrosa excludente. Quem pode o mais pode o menos. O Egrégio Tribunal, em decisão livre, originária de si próprio, simplesmente criou uma regra, como poderia ter criado outra.

E o mais curioso – sem ser surpreendente – é que de forma alguma concebe sua extensão a outros delitos patrimoniais. Não, para esses delitos não há mal nenhum em acenar com a proibição da lei.

Mas por que, então, não admite a inexistência de furto com a devolução da coisa furtada? Por que insiste com a punição do estelionato cujo prejuízo foi integralmente reparado, mesmo com juros e correção monetária? Que estranho fascínio exerce sobre o desembargador catarinense, sobre o ministro do mais alto Pretório, a figura do emitente de cheque sem fundo?

3.5. A desmoralização do cheque: repercussão jurídico-penal

Nenhum fascínio, segundo nos parece. O que os impressiona, isto sim, é a reparação do dano, realizada ou prometida. O que os sensibiliza é desequilíbrio da punição criminal, a valer como um bis in idem em face do ressarcimento. O que pesa na balança, principalmente, são as avalanches de processos dessa natureza, denotativos de que o cheque já não é mesmo, perdeu o valor e a dignidade que deveria ostentar no seio da população. E aquilo que, ao contrário do que pensava o legislador, pouco a pouco se transfigura, se avilta, se deprecia, em si e por si, não deve continuar a merecer proteção jurídico-penal. A menos, claro, que não tenha havido indenização, porque então se patentearia a fraude, tornada duvidosa – eis um detalhe importante – com o referido ressarcimento.

Só que nem todos concordam, seja com os aspectos técnico-jurídicos, seja com as conseqüências práticas.

RICARDO ANDREUCCI, por exemplo, não se convence dessa última versão: "A alegação de o pagamento ser prova da ausência de dolo é, ainda que não se deseje, um subterfúgio para a não punição em razão da carência de dano" ("A propósito do conceito de pena e de ressarcimento do dano em Del Vecchio", Ciência Penal, ano 3, n.º 1, 1976, p. 59).

Comenta HELENO FRAGOSO:

Cheque sem fundos. Pagamento no curso da ação penal. Ausência de justa causa. Decidiu o STF, por sua 2ª Turma, unanimemente, que o pagamento do cheque implica em ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal, no h.c. 43.647, relator o Min. Villas Boas (Rev. Trim. Jurispr. 39/370). Esse é o desdobramento final da orientação que começou por atribuir o efeito de fazer desaparecer o crime ao pagamento realizado antes da abertura do inquérito, logo estendido ao pagamento antes de instaurada a ação penal. Quando se afirma, inexplicavelmente, que a ausência de prejuízo pelo ressarcimento constitui ausência de crime, a conseqüência lógica é a que estamos presenciando nestas últimas decisões. Ela deflui também da concepção, a nosso ver equívoca, de que a tendência da legislação é no sentido das sanções administrativas e não penais. A tendência da legislação é no sentido das sanções administrativas e penais, reforçando, e não enfraquecendo, a tutela jurídica do cheque como fabuloso instrumento de circulação de riquezas. (Jurisprudência criminal, p. 79).

Do mesmo FRAGOSO:

O que estamos vendo é a polícia transformar-se em instrumento de coação para a cobrança de cheques. (Revista de direito penal, n.º 3, jul./set. 1971, p. 96).

As críticas, ainda recentes, se avolumam, como as de PAULO L. NOGUEIRA: "Não se pode negar que tal entendimento, tecnicamente, não encontra nenhuma fundamentação legal e constitui um precedente perigoso" (Questões penais controvertidas, p. 146); e PAULO R. VENTURA: "Tal entendimento é insustentável e mesmo revolucionário no Direito Penal, já que o ressarcimento do dano não é causa de extinção de punibilidade ou exclusão de crime, não integrando, sequer, o tipo de delito. Adotado, como medida de política criminal, se converte num precedente perigoso, porque incentiva que se desnature a finalidade do cheque, passando a ser usado como título de crédito e não ordem de pagamento à vista" (Crimes contra o patrimônio, p. 121).

NILO BATISTA, em mais de uma oportunidade, enxergou detalhes positivos: "Esse entendimento jurisprudencial – contra o qual todos os estudiosos de Direito Penal se levantaram, e que é de fato tecnicamente insustentável – talvez seja julgado historicamente como inspirada criação da Corte Suprema ("Algumas palavras sobre descriminalização", Revista de direito penal, n.º 13/14, jan./jun. 1974, p. 36). Do mesmo autor: "Trata-se de criação pretoriana, que veio atender às particularidades do delito em questão; se foi criticada pela ofensa ao sistema, deve ser elogiada pela criatividade, pelo realismo com que estatuiu uma solução que atende a todos os interessados, e evita acréscimos ao congestionamento da justiça criminal" (Decisões criminais comentadas, p. 64)

Capítulo 4

4.1. Interpretação rigorosa 4.2. Limites da decisão judicial 4.3. Interpretação liberal 4.4. Ideologia do juiz 4.5. Direito concreto

4.1. Interpretação rigorosa

O cotejo do art. 51, caput, do Código Penal, que trata do concurso material de crimes, com o respectivo § 2º, atinente ao crime continuado, conduz à certeza de que este, na concepção do legislador, não passa de uma forma especial daquele. Assim, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, importa verificar se são da mesma espécie e se, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro. Impõe-se-lhe, em caso positivo, a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Em caso negativo as penas se aplicam cumulativamente.

Como vem se comportando, nos últimos anos, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina no que tange à interpretação e aplicação do dispositivo?

Dois acórdãos se sobressaem por sua severidade. O primeiro, lavrado em junho de 1957, indeferia por maioria de votos e consoante o parecer da douta Procuradoria Geral, o pedido de revisão criminal no sentido de ser reconhecida a figura do crime continuado. Segundo se assinalou,

Nem mesmo os furtos praticados nas residências dos desembargadores ON e AP, todos na mesma noite e para a perpetração dos quais se valeu o requerente da mesma escada, podem ser havidos como um delito continuado único. (...) Assim, ainda que a identidade na maneira de execução, como o emprego dos mesmos meios, tenha a maior significação – no caso, o uso de escada – e que as duas infrações aludidas hajam sido cometidas na mesma noite, ainda assim é inadmissível falar-se, na espécie, em continuação porque, aqui, a diversidade de "lugar" reveste-se da maior relevância. Infere-se dos autos em apenso que o requerente, embora não condenado anteriormente, é um profissional do furto. Ora, as "visitas" a duas casas efetuadas em seguida uma à outra, ou muito tempo depois, constitui pormenor destituído de qualquer significação para um gatuno profissional. A tendência inequivocamente revelada para a prática de crimes dessa natureza desautoriza seja ele beneficiado pela verificação de uma circunstância que no seu caso terá sido puramente acidental. Seria, na verdade, tratar com mais benignidade um gatuno inveterado do que quem tivesse furtado ocasionalmente, só porque entre os furtos decorreu lapso de tempo mais ou menos longo, valendo o absurdo para realçar a sem razão do pedido. Por conseguinte, as condições de tempo, maneira de execução e outras semelhantes demonstrarão a continuação quando o julgador não colher dos autos outros elementos mais elucidativos que afastem formalmente a sua configuração (Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Revisão Criminal nº 453, da Comarca de Florianópolis. Des. Hercílio Medeiros, Relator designado. 1957, p. 144).

Trata-se, por certo, de decisão severíssima, mormente porque os argumentos apresentados, conquanto aceitáveis, não se harmonizam, à saciedade, com os dizeres da lei. Uma vez que o dispositivo, aplicado indiscriminadamente, beneficiaria gatunos profissionais e não profissionais, podendo, inclusive, nas circunstâncias, deixar de abranger estes últimos, o que seria uma injustiça, cuidou-se de fazer desde logo a distinção. A lei, por isso, não atingiria ladrões inveterados, ainda que objetivamente presentes as condições homogêneas de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes.

No segundo acórdão, igualmente respeitável, mas rigoroso, é feita referência ao caso enfocado, considerado "idêntico ou até mais próximo da continuidade", haja vista que "ali, não obstante haver o delinqüente, na mesma noite, servindo-se da mesma escada, furtado duas residências próximas, entendeu o Tribunal, por maioria de votos, tratar-se de dois crimes distintos e não de um delito continuado, único" (Jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Revisão Criminal n.º 621, da Comarca de Curitibanos. Des. Belisário Costa, Relator. 1965/1966, pág. 739).

Eis os fatos e os motivos da decisão, com o posterior adendo de se estar diante de indivíduo de maus antecedentes:

O requerente foi condenado a seis (6) anos de reclusão e ao pagamento da multa de Cr$ 3.000, como incurso duas vezes no art. 155, § 4º, inciso IV do Código Penal. Em companhia do co-réu, J. de O, condenado também a 5 anos de reclusão, por ser de menoridade, praticou o requerente dois crimes de furto no distrito de Ponte Alta do Sul, em Curitibanos, no dia 24 de novembro de 1957. No percurso entre a sede do referido distrito e a localidade de Encruzilhada, arrombaram os acusados duas casas residenciais, cujos moradores estavam, no momento, ausentes delas, furtando roupas, utensílios domésticos, armas e outros objetos, de relativo valor. Condenados, não apelaram da decisão, e pretende agora o requerente 0 de 0, minoração de pena – sob o fundamento de tratar-se de crime continuado, na forma prevista no artigo 51, § 2º, do Cód. Penal. Não lhe assiste razão, todavia, por não estarem satisfeitos no caso os requisitos do referido dispositivo, ou sejam, as condições de tempo, lugar e maneira de execução, que configuram a continuidade do delito. Embora no mesmo trajeto ou estrada, os lugares, as casas e as pessoas furtadas foram diferentes, como também os objetos – tudo a constituir claramente um concurso material de delitos, de punibilidade cumulativa, e não apenas agravada, como pretende o requerente (idem, págs. 738/739).

A diversidade de vítimas – apesar de os crimes serem de furto – e os maus antecedentes do réu impediram o reconhecimento da forma continuada. Essa liberdade é professada por MANOEL PIMENTEL em sua conhecida obra Do crime continuado:

Ao juiz criminal, no caso concreto, compete dizer se houve ou não um crime continuado, respeitados os limites objetivos fixados pela concorrência de crimes da mesma espécie e pela homogeneidade das condutas delituosas, e a pena será imposta tendo em vista a gravidade penal, a personalidade do agente, e a sua culpabilidade diminuída, de modo a não beneficiar excessivamente o delinqüente perigoso, com tendência para a habitualidade, e não castigar severamente aquele que tenha persistido na prática dos crimes apenas porque favorecido pelas circunstâncias e situações exteriores. Entretanto, nenhum critério rígido presidirá o reconhecimento da continuação delituosa. Não serão as regras ditadas por critérios subjetivos ou objetivos, ou por ambos, que nortearão o julgador, mas sim, os critérios de necessidade, de oportunidade e de utilidade de tal reconhecimento (p. 216).

Data venia, discordamos do respeitável ponto de vista externado pelo ilustre Mestre, que, impressionado com a "impossibilidade de serem fixados critérios seguros para conceituar-se exatamente os contornos da figura", engrossa a fileira dos que transferem a tarefa ao prudente arbítrio do juiz (idem, p. 111/112). Certo, concordamos em que convém "afastar a idéia de receita de bolo, em que os ingredientes são dosados de tal forma que o resultado venha a ser sempre o mesmo, pois nem em tais casos acontece de resultar invariavelmente bem sucedido o cozinheiro" (idem, p. 115). Entretanto, força é convir que o eminente Professor, embora bem intencionado, para resolver um problema acaba criando um novo, ainda mais complexo. O que ele prega, no fundo, e daí nossa apreensão, é que se façam bolos sem receita.

4.2. Limites da decisão judicial

Incidentalmente, chegamos ao cerne da questão que mais nos preocupa neste trabalho: a que se refere aos limites da decisão judicial. É bom, pois, que se adiantem algumas considerações, a título provisório.

À semelhança de tantos outros, o crime continuado é instituto jurídico que atende aos interesses do réu. Sem sombra de dúvida, atende igualmente aos interesses da coletividade: não se há de criar entre ambos uma irredutível oposição. Regulado por lei, que lhe fixa os contornos, não pode, sem mais nem menos, transformar-se em instrumento de nocividade social – salvo se possuir duas faces, o que é inconcebível.

Perigoso, assim, sob pretexto de imprecisão legislativa, de interpretações inconciliáveis, de aplicação prática contraditória, resolver o impasse com a transferência do encargo ao prudente arbítrio do juiz, inspirado pelas luzes da necessidade, oportunidade e utilidade. Pouco importa se, na vida real, como acontece, aliás, em processos de qualquer natureza, o que vale é a posição afinal tomada pelo juiz. Não, no plano dos princípios, no campo das idéias (ideologia) não cabem concessões, a não ser para reconhecer, se for o caso, a razoabilidade dos demais pontos de vista.

Assim, a opinião de MANOEL PIMENTEL não deixa de ser razoável, porque advoga a justiça do caso concreto, justiça material, de que o juiz se torna arauto. Não deve, porém, ser acatada, e por dois motivos: a lei, bem ou mal, indicou os parâmetros do crime continuado; não cabe ao juiz, sob a alegação de "necessidade", "oportunidade" ou "utilidade", expressões terrivelmente vagas e imprecisas, restringir-lhe o campo de aplicação. Ademais, que juiz confessaria na sentença estar decidindo segundo seu "imprudente" arbítrio? O máximo que faz é uma crítica, aberta ou velada, ao conteúdo da lei, o que é bem diferente. Até mesmo quando decide contra legem – e exatamente por isso – o magistrado não se considera imprudente, mas pregoeiro de algum princípio mais elevado, que por certo considera útil, necessário ou oportuno.

Preferimos, pois, nada obstante as dificuldades inerentes à delimitação do instituto, e por se tratar de figura criada em benefício do acusado, os critérios puramente legislativos. Por impossível que pareça o alcance de tal desiderato, e por mais que se revista a assertiva de cunho meramente retórico, não vemos razão para ceder, no plano doutrinário, a critérios ainda mais vagos, imprecisos e contraditórios. Onde existe lei não pode haver arbítrio. Conquanto a decisão tomada se revele prudente, justa e ponderada (justiça material), merecedora de encômios, não vemos como aprová-la sem crítica se a norma legislativa sofreu cortes e arranhões, em nome dos interesses sociais.

Nenhum juiz, ainda que inteligente, probo, estudioso, pode arvorar-se em "dono da verdade", sentir-se capaz de, sem grandes esforços, apreender o enigmático sentido da justiça material, imaculada e pura. Daí a vantagem da lei: "Imparcial e serena, porque dispõe para todos, há de oferecer maior garantia no delicado terreno da honra, da liberdade e da própria vida do que a sentença sem freios, sem limites, nem sempre destituída de caprichos e de rancores", conforme assinalado alhures (Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira, pág. 48).

Em suma, quando está em jogo a liberdade do indivíduo, formalmente garantida por norma legal, não serão as dificuldades de interpretação que irão justificar se advoguem princípios que, na prática, haja vista a imprecisão dos novos termos propostos, transferem ao juiz um poder quase absoluto de decisão. É responsabilidade demais para uma pessoa só.

Se as mesmas leis, apesar da fixidez e imutabilidade de sua roupagem, sofrem as mais díspares interpretações, o que prejudica sensivelmente a imagem de segurança jurídica que deveriam projetar, imagine-se quanta insegurança não pode acarretar, atrelada a injustiças, abusos, distorções, a sentença pretensamente auto-suficiente, desapegada de critérios externos. A tanto, aliás, não aspira o magistrado, ciente de suas limitações.

Está para nascer o juiz enciclopédico, onipotente, infalível, cuja personalidade tenha sido forjada fora dos limites terrestres. Os valores que abraça, colhidos do seu íntimo ou dos padrões morais dominantes, nem por serem seus ou por denotarem isenção de ânimos e uma piedosa preocupação de fazer justiça, não alcançam, repentinamente, o status de perfeição e veracidade absolutas. São, ainda, valores de um ser humano, de alguém que apenas se distingue dos demais pela função específica de dizer o direito. Podem e devem ser submetidos à crítica, em termos elevados, quer pela doutrina, quer pelos tribunais superiores, nos casos concretos. E os valores da suprema instância também guardam, por certo, as mesmas características, somente prevalecendo por seu aspecto prático, pela própria natureza do direito.

O mesmo não se pode dizer, na área criminal, quando se trata de sustentar a aplicação de critérios que, embora não abraçados expressamente por lei, traduzem uma solução que se pretenda mais justa, adequada e razoável, favorável ao acusado. A assimetria do direito penal já não é mais hipótese a ser testada, teoria a ser defendida, mas se constitui, acima de tudo, no mais perceptível dos seus sinais característicos. Ou seja, se de um lado se prega o princípio da reserva legal, de outro se admite, no campo das escusas penais, uma fonte bem mais ampla, batizada com nomes variadíssimos: direito natural, bom senso, costumes, razão, lógica do razoável, política criminal, etc.

O exame da realidade não deixa por menos: é o juiz, quase sempre, que se antecipa ao legislador. O caso sub judice, gerador do problema, não o deixa inerte em sua missão. Não o desanima a insuficiência legislativa; chega a enfrentar, por vezes, o desacerto da solução previamente estabelecida. Aqui e ali vai preenchendo as lacunas que, quase sempre, resultam muito menos de um dado palpável do que de seu poder inventivo. Inteligência e sensibilidade se unem para a busca do veredicto que melhor se ajuste à situação até então impensada, ou antevista em horizontes acanhados. Dir-se-ia que o próprio fato se apresenta com a luz que, até o momento desconhecida, ilumina sua decisão.

Também no direito penal o juiz é arquiteto, construtor e artesão. E o é, sem dúvida, mesmo em matéria de incriminações, se bem que sua maior contribuição histórica, nos últimos séculos, tenha ocorrido na criação ou alargamento de institutos ligados aos exclusivos interesses da defesa. Assim, igualmente, na redefinição limitadora de figuras delituosas antes interpretadas sem parcimônia.

4.3. Interpretação liberal

É o que se verifica, por exemplo, com o crime continuado. Os precedentes do Eg. Tribunal de Justiça de Santa Catarina não evitaram que, a certa altura, se começasse a encarar o instituto com mais liberalidade. Assim, quando a reincidência específica concorreu para que se aplicasse, em primeira instância, a elevada pena de 11 anos de reclusão, relativos, tão-só, a 2 furtos qualificados, não titubeou em reduzi-la para 9 anos e 2 meses, por força do artigo 51, § 2º. E o fez sem maiores explicações doutrinárias, limitando-se a revelar a constatação de que, nada obstante favorecerem ao revisando as condições de tempo e lugar, o Juízo a quo escolhera, sem fundamentar, as sanções do art. 51 caput:

A sentença deu o réu como incurso nas sanções do artigo 51, caput, em tela, sem fundamentar a razão porque escolhera esse dispositivo mas, conforme ressaltou o revisando, os delitos que praticou foram continuados, eis que dos dois roubos que praticou pelas condições de tempo e lugar pode ser o segundo admitido como continuação do primeiro e, assim, a pena a ser aplicada seria a de um aumentado de 1/6 a 2/3. O inciso em que está incurso o réu prevê uma pena de reclusão de 2 a 8 anos e, tendo em vista a reincidência, a pena há de ser estimada entre 5 e 8 anos. A sentença orçou, pelo que se deduz, a pena em 5 anos e meio para cada delito, donde os 11 anos para os dois, aplicados na forma do artigo 51, caput. Esta pena singular de 5 anos e meio, calculada ante as circunstâncias judiciais pelo julgador de primeira instância, deve ser aumentada ante o reconhecimento da ocorrência do § 2º do artigo 51 e 2/3, ou sejam, 9 anos e dois meses (Jurisprudência do TJSC, Revisão Criminal nº 772, da Comarca de Itajaí. Des. Euclydes Cintra, Relator. 1968, p. 167).

Os maus antecedentes (reincidência específica) não mais prejudicavam a admissão do crime continuado.

Em outro acórdão já se passou a afirmar (antiga Câmara Criminal), peremptoriamente, que "a pluralidade do sujeito passivo não constitui obstáculo para o reconhecimento do furto continuado" (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 11.480, da Comarca de Itajaí, Des. Eduardo Luz, Relator. 1971, p. 862).

Pouco tempo depois, em 1972, também em Câmara Criminal, apontavam-se novos rumos, diametralmente opostos à orientação contida nos dois primeiros acórdãos citados. E o texto do Código, insista-se, permanecia o mesmo.

Eis os termos da respectiva ementa:

Crime continuado – Critério de benignidade do instituto – Reajustamento da reprimenda penal. Na apreciação do crime continuado, a condição de tempo não pode ser vista com excessivo rigor, nascido o instituto para atenuar o rigor punitivo (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal n.º 11.563, da Comarca de Lages. Des. Eduardo Luz, Relator. 1972, vol. 2, p. 1281).

Esse critério de benignidade se percebe facilmente do exame dos fatos:

Desse modo, afora o primeiro furto de dinheiro, praticado pelo apelante em agosto de 1969, os demais, realizados em janeiro, março, abril, maio e junho, nas residências, pela maneira idêntica de execução devem ser havidos como continuados, ficando reajustada a reprimenda penal para 1 (um) ano de reclusão pelo furto de dinheiro e 1 (um) ano de reclusão pelos demais furtos, com o acréscimo da continuidade de 2 (dois) meses, totalizando uma pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de reclusão, mantidas as demais cominações da sentença apelada (Idem, p. 1281).

Relembrando: antes, furtos praticados na mesma noite, ou no mesmo trajeto, contra vítimas diversas, não ensejavam, praticamente, a forma continuada. Agora não. Conquanto cometidos em oportunidades distintas, em meses diferentes, poderiam considerar-se como continuados.

Inútil o reexame aprofundado do texto do Código para saber, com absoluta certeza, quem, afinal, decidia com ou contra a lei. A linguagem natural com que esta se apresenta está longe de permitir afirmações dogmáticas. A interpretação da lei, embora única (não necessariamente imóvel) se pretende ser verdadeira, acaba dependendo, quase sempre, no dia-a-dia forense, das concepções pessoais de seus autores, apesar do esforço de imparcialidade. Estes, inclusive, como é público e notório, não estão isentos de mudança de opinião, provocada pelos mais variados fatores. Já não se trata, pois, de exegese diversa porque diferentes os protagonistas. A reviravolta de jurisprudência, mantida a composição do órgão, é bem o atestado da faceta camaleônica do texto legislado. As palavras da lei, conquanto imutáveis, parecem emitir mensagens divergentes, o que constitui um disparate do ponto de vista lógico. Em verdade, é a disposição pessoal do intérprete, são os valores ocasionais dominantes, as pressões de toda ordem que contribuem para a ênfase de determinado aspecto, ora efetivamente captado, ora meramente refletido.

Prosperaram as novas idéias acerca do crime continuado:

Os três crimes de furto imputados ao requerente foram praticados nesta cidade, na noite de 27 de dezembro de 1962, sendo o primeiro na "Lavanderia Serratine" e o segundo na firma "Machado e Cia", situadas na rua Trajano, e o terceiro no sobrado da loja "A Macedônia", na rua Felipe Schmidt, onde reside seu proprietário. Pelas condições de tempo, lugar e maneira de execução, ocorreu, realmente, na espécie, o crime continuado, desde que os delitos sendo da mesma natureza foram praticados em casas contíguas e na mesma noite (...). Como o réu é reincidente específico e são idênticas as penas, está ele sujeito a uma delas, ou seja, a de 5 anos e 15 dias de reclusão que, aumentada de um terço, totaliza 6 anos, 3 meses e 20 dias (Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 963, da Comarca de Florianópolis. Des. Alves Pedrosa, Relator. 1973, vol. 1, pág. 442).

Data o venerando acórdão de março de 1973. Como a condenação em primeira instância tinha sido de 15 anos e 45 dias de reclusão não é difícil compreender o enorme sentido, para o revisando, da pena retificada. De sua dívida penitenciária para com o Estado foram-lhe deduzidos quase 9 anos. Quais os fatores da diferença de tratamento? Hipótese quase idêntica fora reputada havia anos, pela própria Corte de Justiça, como de concurso material, a demandar a soma das penas.

Desta feita, porém, consolidava-se a tendência de não mais restringir a clientela dos autores de furtos continuados. Nela também se encaixava a categoria dos reincidentes específicos. A lei penal já se mostrava por demais rigorosa para com eles, não convinha complicar-lhes a situação com sutilezas jurídicas que, no final das contas, não resultavam de texto expresso. Retirada estratégica: o que antes se considerava necessário, útil e oportuno – a severidade da punição – sofria os embates do desgaste proporcionado pelo passar dos anos. As valorações se transmudam. Já não mais se via o ladrão comum de residências, ainda que tendente à recidiva, como o representante máximo da nocividade social. A quantidade de furtos não representava, necessariamente, o sinal supremo da incorrigibilidade, a requerer, como contrapartida meramente defensiva, uma conta de somar no cálculo das penas. Perdia o direito, cada vez mais, o sentido lógico dos números. Na mente do julgador penetravam sub-repticiamente idéias subversivas.

Que idéias eram essas?

A clareza das fontes nos induz a transcrever as palavras de seus ilustres redatores:

De seu turno, a Jurisprudência de nossos Tribunais, conforme podemos constatar (R.T. n.ºs 429, página 454; 423, pág. 432), tem se orientado, relativamente ao crime continuado, num sentido mais benéfico, já que, ao revés, aplicada a soma das penas atribuídas a cada delito, em termos de recuperação do infrator, traria, sem dúvida, conseqüências desastrosas e incondizentes com a melhor política criminal (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 12.183, da Comarca de Porto União. Des. Ary Oliveira, Relator. 1973, vol. 2, p. 407).

Mesmo que não haja um perfeito vínculo de continuidade entre as duas ações delituosas configurativas de roubo, justifica-se o reconhecimento de crime continuado, com o fim de abrandar a elevada reclusão, quando se trata de réu menor já suficientemente apenado (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 12.331, da Comarca de Porto União, Des. Ary Oliveira, Relator. 1974, vol. 5/6, p. 565).

Na conceituação do delito continuado, a condição de tempo não deve ser interpretada com rigor excessivo, uma vez que o instituto nasceu tendo como uma das suas finalidades a atenuação do rigor das penas. "De há muito abandonou a jurisprudência, aliás sem qualquer lesão à lei, a antiga exigência da identidade física dos ofendidos para o reconhecimento do crime continuado" (Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 1.037, da Comarca de Lages. Des. May Filho, Relator. 1974, vol. 5/6, p. 654. Também Jurisprudência Catarinense, Revisão Criminal nº 1.269, da Comarca de São João Batista. Des. May Filho, Relator. 1977. vol. 15/16, p. 500).

Muito embora divergente a jurisprudência no que diz respeito à aplicabilidade da continuação, em crime de roubo, é de ser o parecer acolhido. Em outra oportunidade (Jurisprudência Catarinense 5/6, pág. 585 e seguintes) esta Egrégia Câmara já teve oportunidade de examinar a matéria fixando ponto de vista de que "tratando-se de crimes lesivos a interesses jurídicos inerentes à pessoa, não é admissível a continuação", mas se se trata de delitos contra o patrimônio, em que há pluralidade de lesados pode-se, inobstante, reconhecer a continuação, porque "como o bem jurídico tutelado é puramente material, e as sanções impostas às agressões a esses bens bastante acentuadas, adotou-se, como na maioria dos tribunais o critério da benignidade precisamente para humanizar a pena (Jurisprudência Catarinense, Apelação Criminal nº 13.163, da Comarca de Lages. Des. João de Borba, relator. 1975, vol. 9/10, pág. 605).

4.4. Ideologia do juiz.

Exsurgem, do exposto, vários tópicos e preocupações: recuperação do infrator; qualidade da política criminal; impropriedade de sanções elevadas; objetivos do instituto do crime continuado; natureza do delito patrimonial; humanização da pena. Mais uma vez se dá conta o julgador de que certas concepções não podem ser desprezadas em sua missão constitucional. Com mais exatidão, de que assimilou determinadas idéias, valorizadas positivamente, e que devem ser trazidas à colação no momento do veredicto, lado a lado com a ideologia do legislador. A psicologia do julgamento, como realidade fenomênica, suplanta toda e qualquer expectativa baseada em elucubrações racionais de gabinete.

É claro que o analista só apreende uma parcela dessa realidade. Mas é claro também que ela se mostra suficiente para a constatação de que a subserviência à lei, face ao princípio da separação dos poderes, é diretamente proporcional à sua força persuasiva. Referida força persuasiva, por seu turno, há que ser encarada globalmente, isto é, nos aspectos intrínsecos (conteúdo, carga emotiva ou valorativa) e extrínsecos (circunstâncias históricas, principalmente). A linguagem natural do legislador permite, por outro lado, a constante adaptação do texto à personalidade e preferências do intérprete, o que dificulta sobremaneira, por falta de base científica, a afirmação dogmática de se tratar de posicionamento conforme ou contrário à lei. Nem mesmo se pode afastar a hipótese de uma preferência meramente ocasional, sujeita, portanto, aos azares das circunstâncias. O juiz, afinal, deve oferecer sua decisão, tem que optar dentro de certo prazo, o acúmulo de serviço e a complexidade do tema podem perfeitamente abalá-lo na pureza do raciocínio ou na consistência da própria convicção. Afora tudo isso, há que se realçar que está diante de um caso concreto, real e vivo, cuja singularidade é incapaz de se amoldar à mais sutil das distinções hipotéticas dos livros de doutrina, ou de outros casos submetidos a julgamento.

4.5. Direito concreto

São esses casos singulares que suscitam a formação do direito. Quer dizer, de um direito localizado, em primeiro lugar. A regra jurídica dele derivada pode, no entanto, fenecer ou expandir-se. Nesse último caso, à semelhança de uma semente lançada em solo fértil, encontrou condições para esse crescimento. O alargamento e a reprodução exigem espaço, morrem outras sementes, definham regras jurídicas justapostas, ou voltam ao estado de latência. O fenômeno contagia todas as instâncias, por mais avisadas e maduras que sejam. Não existe direito, existem direitos. Não existe direito penal – já que o escolhemos como modelo – mas direitos penais. É mais adequado falar em direito penal catarinense, sumariado por sua Egrégia Corte, do que em direito penal brasileiro. O Juiz de Comarca, principalmente ele, quando se enfoca o aspecto contencioso, acatando ou não as diretrizes cambiantes dos tribunais superiores, e é intuitivo que se inclina pela orientação da Corte de seu Estado, se constitui, em termos quantitativos, no depositário e artífice do direito concreto.

Capítulo 5

5.1. Preocupações sistemáticas 5.2. Exercício ilegal da medicina 5.3. Casa de prostituição 5.4. Direitos desarmônicos

5.1. Preocupações sistemáticas

FRANCISCO MUNÕZ CONDE, em sua Introducción al derecho penal, p. 181, citando ENGISCH no rodapé, faz o seguinte desabafo: "Parece mentira que numa ciência tão problemática como a do direito penal sejam as questões sistemáticas as que ocupem a atenção dos penalistas".

As preocupações sistemáticas são, porém, inevitáveis. Sem embargo, o sistema não pode "resolver todos os problemas que o conhecimento e aplicação das normas jurídicas suscitam; mas ainda que pudesse fazê-lo, nem sempre são as soluções sistemáticas as mais corretas do ponto de vista de umas justiça material; o sistema não é o fim da ciência, senão um mero instrumento, muito importante, isto sim, posto a seu serviço" (idem, p. 166).

Ademais, há uma distância enorme entre as teorias de gabinete, insuscetíveis de comprovação científica, apesar de eruditas, e a prática judiciária. Para começo de conversa, não dá para esquecer que as leis penais (fiquemos com elas) conservam, ainda, caráter nacional. São elas, pois, que devem fornecer o material para a construção do sistema. Além disso, enquanto não revogadas formalmente, conservam – o que é elementar – sua validade. Se conservam sua validade, não podem acolher teorias opostas, o que é diferente de permitirem, mormente pela generalidade de seus termos, sua adaptação às novas circunstâncias. Não é a maior ou menor imprecisão de sua linguagem que vai justificar a intromissão de premissas que dificilmente perdem o caráter artificial ou subjetivo. A importância destas reside mais em sua força persuasiva, eis que "no processo decisório, como lembra LUÍS FERNANDO COELHO, entram em jogo fatores extra-lógicos e mesmo certa dose de irracionalismo; não existe a regra certa para cada situação e nem é possível a configuração enunciativo-conceitual exata das situações que a vida apresenta" (Aulas expositivas de Teoria geral do direito. Interpretação do direito, p. 38).

Na área do direito penal, a melhor teoria é aquela cujas bases e conseqüências são compreendidas e aceitas por um analfabeto. Seremos os últimos, no entanto, a menosprezar, como na fábula da raposa e das uvas, a enorme contribuição da doutrina para o desenvolvimento da disciplina. Não se faz direito sem teoria, sem trabalho de síntese e esquematização. Nossas reservas se voltam apenas para as pretensões dogmáticas, que teriam o condão de tornar ultrapassadas, num campo visceralmente contencioso, pontos de vista até bem pouco tempo acatados e respeitados. E é por isso mesmo que preferimos a faceta valorativa do direito, sempre aberta e exposta ao choque das opiniões, de que ninguém deve abrir mão.

"É a determinação dos valores – afirma HENRI BATIFFOL – que está no centro das preocupações jurídicas contemporâneas" (La philosophie du droit, p. 78).

E se existe alguém que não pode fugir desse imperativo, em razão de suas funções, esse alguém é o magistrado. Cabe-lhe a missão de dizer o direito. No fundo, de ditar o direito, considerando que este não transparece cristalino dos textos, como normas gerais, e, mais ainda, tendo em vista que não consegue despojar-se dos valores previamente assimilados e incorporados à sua personalidade.

Nessa linha de raciocínio cabe concluir que as circunstâncias do caso concreto, submetido a julgamento, arrastam consigo a decisão na medida em que atingem as emoções e sentimentos do juiz. A decisão é uma resposta afetiva, ainda que traduza, com exatidão, a vontade do legislador. O juiz, nesse caso, quase sempre considera justa, ou razoável, a solução preestabelecida. Pode ocorrer, inclusive, que não tenha opinião formada (donde a preferência pela solução do legislador) ou que se sinta impotente, dada sua formação profissional, ou a vigente situação política, para um gesto mais ousado. Em outros casos decide contra a lei, ora servindo-se da ficção, ora recorrendo a argumentos reveladores do voluntário afastamento.

Já não é mais possível, de qualquer forma, ignorar esses detalhes, em vã tentativa de preservar a teoria de vícios e contaminações que lhe seriam totalmente estranhos ou indiferentes.

Não, todo sistema jurídico é necessariamente apriorístico, artificial. Sua beleza arquitetônica, a indicar coerência e autodisciplina, pode mostrar-se insuficiente, porque vazia de conteúdo, para os fins a que se destina. Convém, pois, que se desfaça de sua roupagem formal, e com isso perdendo substância, para apreender nos fatos singulares a imensa e variada carga valorativa. "O tecido jurídico total, que efetivamente encontramos, afirma THEODOR VIEWHEG, não é um sistema em sentido lógico. É muito mais uma indefinida pluralidade de sistemas..." (Tópica y jurisprudencia, p. 117/118), haja vista que "a raiz de tudo está simplesmente em que o problema toma e conserva a primazia. Se a jurisprudência concebe sua tarefa como uma busca do justo dentro de uma inabarcável pletora de situações, tem que conservar uma ampla possibilidade de tomar de novo posição a respeito da aporia fundamental, isto é, de ser móvel" (Idem, p. 142).

5.2. Exercício ilegal da medicina

Essa busca do justo, porque alusiva ao caso concreto e dependente da valorização pessoal, dificilmente se amoldaria a modelos prefixados. Vejamos este acórdão:

T.S. foi condenado pela sentença de fls. 47 usque 56, à pena de seis meses de detenção, sendo-lhe concedido "sursis" – como incurso na sanção do artigo 282, combinado com o artigo 51, § 2º, ambos do Código Penal. (...). Nesta Instância, o ilustre representante da Procuradoria Geral do Estado opina pelo desprovimento do recurso. A sentença, sem embargo das brilhantes considerações expendidas, merece reformada. Não há dúvida – e o próprio réu confessa – de algum tempo vinha ele "... exercendo atos típicos da competência de médicos. ..", na cidade de Palmitos "... e em outros municípios...", pertencentes à mesma comarca (fls. 47) (...). Mas se, realmente, é essa a situação, o que não pode deixar de ser reconhecido é a ocorrência no caso sub judice, do erro de fato – artigo 17 do Código Penal – a beneficiar o apelante. O réu era, constante e insistentemente, procurado por diversas pessoas. E as atendia, parece, com êxito – as informações são favoráveis – e sem receber remuneração. Se essas condições não descaracterizam o ilícito por que respondeu o apelante, conforme com propriedade salienta o digno Dr. Juiz "a quo", o certo é que exercia a atividade de "arrumador de ossos" – consta do decisório – "... em presença de facultativos...". Assim, com o beneplácito dos médicos, – acentue-se que estes não apresentaram reclamação – supondo situação permitida, porque plenamente justificada pelas circunstâncias (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.902, da Comarca de Palmitos. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1969, p. 673/674).

Eis aí, para quem tiver olhos para enxergar, um excelente exemplo de ficção jurisprudencial. Duas posições se destacam: a do Dr. Juiz a quo, homologada pela Procuradoria-Geral, de natureza legalista, e a da Câmara Criminal, que reformou a sentença para absolver o apelante. Argumenta esta última que inexistiu o crime de exercício ilegal da medicina porquanto o acusado exercia as atividades em presença de facultativos. Assim, ele supunha "situação permitida, porque plenamente justificada pelas circunstâncias".

A Colenda Câmara transferiu para a classe médica o poder de, pelo silêncio, omissão ou anuência implícita, impedir a formação do elemento moral atinente à figura delituosa em epígrafe. Mas se tal aconteceu, isto é, se o acusado passou a pensar que podia exercer atividades médicas porque os facultativos nada reclamavam, então incorreu em erro de direito, e não erro de fato. Ora, o erro de direito não escusa, convinha encontrar outro expediente, para manter as aparências. O importante era que, na concepção da Egrégia Corte, se fizesse justiça, mas justiça material, adaptada às peculiaridades do caso. Afinal, tratava-se de réu: a) constante e insistentemente procurado; b) que não recebia remuneração; c) que tinha êxito em suas intervenções; d) que agia sem oposição dos médicos. O erro de direito, que poderia inocentá-lo (ao menos como princípio), na verdade não o socorria (Código Penal, art. 16), apesar das severas críticas da doutrina: "O erro sobre a proibição, chamado erro de direito, deveria operar efeitos idênticos, porque quem atua desconhecendo o caráter ilícito de sua conduta atua sem consciência da ilicitude – que, segundo a doutrina prevalente na prática judiciária brasileira, é componente do dolo. A estúpida regra do art. 16 do CP. .." (BATISTA, N. Revista de direito penal, nº 15/16, jul./dez. 1974, p. 136). Comenta, por seu turno, BASILEU GARCIA: "O brocardo ignorantia legis non excusat, corporificando uma ficção, manda às vezes punir o verdadeiramente inocente, o que repugna ao senso de justiça. Ele afronta o princípio da culpabilidade. Convém aceitar as atenuações que tolera, e uma bem razoável é a eximente influência do erro de direito extra-penal, quando conduza a erro sobre elemento de fato da infração" (Instituições de direito penal, vol. 1, p. 277).

5.3. Casa de prostituição

A calculada substituição do erro de direito pelo erro de fato, a fim de propiciar a absolvição, antecipada em primeira instância, se deu, igualmente, no seguinte acórdão:

A manutenção de casa de prostituição, em zonas delimitadas e fiscalizadas pelas autoridades policiais, constitui erro de fato, que, nos termos do art. 17, do Cód. Penal, isenta o réu de pena (...). Diante disso, vale dizer, após cumprir tantas formalidades, para o funcionamento de seu conventilho, a ré, mulher ignorante, foi levada a acreditar que o poder público considera legal o seu indigno comércio. O Egrégio Supremo Tribunal através de inúmeras decisões, desde que se verifiquem as circunstâncias ocorrentes na espécie, reconhece a escusante do erro de fato (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 10.168, da Comarca de São José. Des. Miranda Ramos, Relator. 1965/1966, p. 661/662).

HELENO FRAGOSO, depois de cerrada crítica a decisões dessa natureza, afirmando que "o erro, em tais situações, não seria jamais de fato, e, sim, de direito" (Jurisprudência criminal, p. 90/91) retifica o dito em nome de uma ficção bem mais sutil: "A tolerância policial é, em verdade, um fato desconcertante. Pode conduzir pessoas simples e ignorantes a um falso entendimento quanto à licitude do fato, tendo o agente boa-fé e praticando a ação sem a consciência de sua ilicitude ou reprovabilidade. Esses casos devem conduzir à absolvição, por ausência de dolo, que exige a consciência da antijuridicidade da ação" (Idem, pág. 95).

Já MAGALHÃES NORONHA, com os olhos na lei, e sem a menor preocupação, na hipótese, de corrigi-la por outras vias, apresenta as seguintes observações, suficientemente claras e precisas:

Mas qualquer que seja o comportamento das autoridades, não cremos que isso leve o sujeito ativo a erro de fato, mesmo porque a espécie seria antes de erro de direito. Realmente, conquanto hoje se note um movimento entre os juristas, principalmente os alemães, para não se distinguir o erro de direito do de fato e não obstante ser várias vezes difícil extremá-los, quando, p. ex., um elemento objetivo do delito é de natureza jurídica, a verdade é que nossa lei os distinguiu (...). No erro de direito (...) não erra a pessoa sobre elementos do fato que pratica. Executa-o voluntária e conscientemente, em todos seus pormenores, mas acredita ser lícito, não ser reprimido pela lei, ou por desconhecê-la ou por conhecê-la mal, isto é, por ignorar o praeceptum ou dele ter um conhecimento falso ou errado. Consequentemente, o que se poderia dizer é que, na hipótese, a tenancière, em face da atitude da Polícia e do Fisco, acreditava não ser punido pela lei o fato e, assim, estaria laborando em erro de direito. Mas, como nosso Código claramente diz no art. 16, tal erro não aproveita. Esposou ele a parêmia error juris nocet, e, portanto, não valerá ao delinqüente (Direito penal, vol. 3, p. 330).

O mesmo Autor se mostra cético no que tange à ocorrência do próprio erro de direito:

"Acresce ainda ser difícil aceitar-se que alguém, mesmo em face daquelas circunstâncias, possa ser vítima de erro de direito. Está na consciência de todos que a prostituição é um modo imoral de vida e, por conseguinte, difícil é aceitar-se que uma pessoa considere lícito favorecer ou explorar essa imoralidade. E é sabido que o mantenedor, gerente, etc., de casa de meretrício é, em regra, atilado e vivo, pois, se o ofício prescinde de cultura, exige, contudo, solércia, expediente e sagacidade" (Idem, ibidem).

O tema comporta outro tipo de ficção:

As pessoas que depuseram no processo nada referem com relação à natureza prostibular dessa "boîte" ao tempo em que o estabelecimento pertenceu ao ora apelante. Referências nesse sentido são feitas, mas relativamente ao tempo em que a "boîte" passou a pertencer à meretriz T.A. Esta, em seu depoimento, informa que ao tempo em que a "boîte" pertencia ao apelante, "o Delegado", juntamente com policiais, fiscalizavam diariamente a "boîte" que era de propriedade do denunciado. Não era possível que, debaixo de tal fiscalização, pudesse funcionar, ao invés da "boîte", uma "casa de prostituição" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 10.414, da Comarca de São Francisco do Sul. Des. Adão Bernardes, Relator, 1967, p. 165/166).

Mais recentemente, firmou-se o entendimento de que

Carece de suporte legal a alegação de que a casa de meretrício, com a conivência policial, não constitui crime (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.883, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1146)

Lenocínio. Crime configurado. Decisão mantida. A alegação de que a exploração de casa de meretrício não constitui crime, quando há conivência da polícia, não encontra qualquer amparo na lei e nem o licenciamento para o comércio faz desaparecer a ilicitude, "pois, a prevalecer esse entendimento seria a apologia do ilícito com fundamento na ilicitude (Jurisprudência Catarinense, A. Crim. n.º 13.407, da Comarca de Joinville. Des. João de Borba, Relator. 1975, vol. 9/10, p. 610).

Casa de Prostituição. Decisão condenatória acatada, em parte (...). A alegação de que a exploração de casa de meretrício não constitui crime, quando há conivência da polícia, não encontra qualquer amparo na lei e nem o licenciamento para o comércio faz desaparecer a ilicitude, "pois a prevalecer esse entendimento, seria a apologia do ilícito com fundamento na ilicitude" (Jurisprudência Catarinense, Ap Crim. nº 13.989, da Comarca de Canoinhas. Des. João de Borba, Relator. 1976, vol. 14, p. 393).

Mas não ficou afastada a possibilidade teórica de "erro de fato":

Não cabe, portanto, no caso sub judice, a absolvição por erro de fato, de que se encontram, na jurisprudência, várias decisões, inclusive desta Colenda Câmara, pois o apelado, como se depreende do acima exposto, tinha plena ciência da ilicitude do seu vil comércio (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.883, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, pág. 1147).

Se consciente da ilicitude do negócio de casa de prostituição o agente prosseguiu em sua atividade criminosa, a alegação de erro de fato desmerece acolhida (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.085, da Comarca de Orleans. Des. Marcílio Medeiros, relator. 1975, vol. 7/8, p. 432).

Casa de prostituição – Alegativa de erro de fato repelida, porquanto claro dos autos que a ré tinha plena ciência da ilicitude do negócio (...). A alegação de erro de fato desmorona-se por si própria. O suposto consentimento do Delegado de Polícia para que a ré explorasse o lenocínio tem suporte apenas nas declarações da mesma, ressentindo-se de qualquer valia, até porque não soube sequer indicar o nome da autoridade conivente, e o procedimento policial, através de duas batidas no bordel, evidencia precisamente o contrário (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 14.042, da Comarca de Joaçaba. Des. Marcílio Medeiros, relator. 1976, vol. 14, p. 364/365).

Portanto, não abdica o Tribunal de seu direito de continuar a recorrer à ficção, embora a reserve para hipótese em que se possa admitir a efetiva existência de erro (réus ignorantes, rudes, analfabetos).

Essa posição, com base na falta de consciência do ilícito, é moderada, porque se atém à preocupação de fazer justiça. Havendo erro, impeditivo de dolo, pouco importa a sua natureza, se de fato ou de direito.

Bem mais extremada era a posição do Egrégio Supremo Tribunal Federal, que não divisava criminalidade na manutenção de casa de prostituição em zona de tolerância confinada pela polícia, ou na sua prática em hotel licenciado. O Excelso Pretório reviu seu ponto de vista, mas se não o fizesse estaria concorrendo para a revogação definitiva do artigo 229 do Código Penal: "... parece claramente que o Eg. Tribunal vem decidindo contra o texto expresso da lei, revogando praticamente o citado dispositivo do Código Penal" (FRAGOSO, Heleno, Jurisprudência criminal, p. 89).

Daí a observação de ROBERTO LYRA FILHO: "Nós, professores, devemos confessar que, muitas vezes, ensinamos o direito no sentido estático enquanto ele caminha muito mais livre nos tribunais. Para dar, apenas, um exemplo (...) eu me referiria (...) em matéria penal, às críticas que ao Supremo Tribunal foram dirigidas por juristas de formação conservadora devido a decisões que optavam, sob pretextos diversos, por uma solução, de certo modo contra legem, como no crime de casa de prostituição, praticamente aniquilado. Direito é também lei, mas nem sempre a lei é o direito" (apud SOUTO, C., Teoria sociológica do direito e prática forense, p. 108/109).

5.4 Direitos desarmônicos

Essa eventual desarmonia entre lei e direito constitui fenômeno facilmente demonstrável, mas não evita a conclusão da existência de vários direitos igualmente desarmônicos. Esses vários direitos estariam simplesmente condicionados pelo teor da sentença final, que, por sua vez, dentre outros fatores, depende da maneira com que o magistrado encara sua função perante a sociedade. Assim, no plano contencioso, o que mais importa é a decisão, e não o texto de lei. Ora, está mais do que visto reagirem os julgadores de modo diverso diante de um mesmíssimo preceito legislativo. Já não se trata, apenas, de questão vinculada às dificuldades de interpretação decorrentes da linguagem natural. Esta sempre comporta, como se disse metaforicamente, "uma zona de luminosidade (composta pelos termos onde não existe nenhuma dúvida em relação à sua inclusão na classe)" (VERNENGO, J.V., WARAT, L.A. e CUNHA, R.M.C. da, Os problemas do significado da linguagem natural, Q. 14). Se é assim, e se as discrepâncias acontecem até mesmo nessa zona de luminosidade, há que reconhecer-se, realisticamente, a enorme importância desempenhada pela personalidade do julgador, sob todos os sentidos, inclusive no que concerne à idéia que faz de sua missão, em face dos outros poderes. Os mais impetuosos não hesitam em abrir caminhos por onde o legislador se omitiu ou opôs o seu veto. A "divisão dos poderes" não os inibe de considerar prevalente a solução tópica, individualizada, e que se legitima (na falta de outro termo) por si mesma, por emanar de quem emana. Outros reagem com menos desembaraço, o que não impede – bem ao contrário – se afirme, como o faz CHAÏM PERELMAN, que "todo debate judiciário, e toda lógica jurídica, apenas concernem à escolha das premissas que serão melhor motivadas e que levantam menos objeções. É papel da lógica formal tornar a conclusão solidária das premissas, mas é o da lógica jurídica mostrar a aceitabilidade das premissas" (Logique juridique, p. 176).

Que premissas seriam essas, que descriminam, praticamente, o delito de casa de prostituição?

Ficou famosa a frase do eminente Ministro VILLAS BOAS: "Não se trata de crime contra os costumes, mas de fato tolerado e até imposto pelos costumes" (apud FRAGOSO, H.C, Jurisprudência criminal, p. 90; e NOGUEIRA, P.L, Questões penais controvertidas, p. 216). E, como sintetiza PAULO NOGUEIRA, se "existe uma tolerância declarada e consentida da parte das próprias autoridades", não se pode de maneira alguma, sob pena de incongruência, com tanta fiscalização policial e sanitária, "admitir processos contra estas mulheres", mantenedoras de casa de prostituição (Idem, p. 217).

A premissa oposta se identifica com a própria lei, com o artigo 229, devidamente interpretado. "A prostituição – argumenta NÉLSON HUNGRIA – é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social" (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 253/254).

Por isso mesmo não se pode contestar a assertiva de que o julgador, ao encontrar uma grave antinomia entre a solução legal e aquela que reputa correta, acaba, não raro, preferindo esta última. Para tanto, quando deixa de recorrer à ficção, não se furta a expor a antinomia abertamente, de conformidade com as exigências do caso concreto.

Destarte, se não hesita em enfrentar a lei nesses casos extremos, assumindo no processo importante papel político, imagine-se como não o faz, bem mais à vontade, quando o permitem a vagueza e a anemia das palavras da lei: "É bem conhecido que, em certos domínios – lembra ROBERT LEGROS – o juiz dá aos textos legais uma interpretação tão audaciosa, e até astuciosa, que o legislador aí não mais encontraria sua obra" ("Considérations sur les motifs," Revue de droit pénal et criminologie, 1970/1971, p. 5).

Aduz, a propósito, CHAÏM PERELMAN: "J. Esser constata, em sua obra mais recente, que a enumeração dos métodos de interpretação dos textos, o recurso aos precedentes e aos princípios gerais, aos fins e aos valores que o legislador procura promover e proteger, todo este arsenal de argumentos é totalmente insuficiente para guiar o juiz no exercício de suas funções, porque nenhum sistema estabelecido a priori lhe pode indicar, num caso concreto, a qual método de raciocínio ele deve recorrer, se ele deve aplicar a lei literalmente ou, ao contrário, restringir ou ampliar o alcance desta" (Logique juridique, p. 82).

Capítulo 6

6.1. Lei, segurança jurídica, ideologia 6.2. Liberdade atual dos juízes criminais 6.3. Ausência de co-autoria 6.4 Pequeno prejuízo e furto privilegiado 6.5. Ausência de condenação por "maus tratos" 6.6. Anti-legalismo e sentimentos da sociedade 6.7. Decisões motivadas

6.1. Lei, segurança jurídica, ideologia

A observação de J. ESSER, endossada por CHAÏM PERELMAN, há pouco referida, de que nenhum sistema estabelecido a priori pode indicar ao juiz num caso concreto o método de raciocínio a que deve recorrer nos traz à tona, mais uma vez, a questão da importância, fundamental e decisiva, da idéia que ele, juiz, faz de sua missão. Mesmo no sistema jurídico da família romano-germânica não passa de uma ficção a soberania absoluta da lei, fenômeno atualmente reconhecido pelos próprios defensores do positivismo (DAVID, René, Les grands systèmes de droit contemporains, p. 102/103). Os juízes manteriam uma certa independência em face da lei porque "nesses países Direito e Lei não se confundem. A própria existência de um poder judiciário, e o próprio princípio da separação dos poderes, com as vantagens que nós lhe atribuímos, estão ligados a essa independência (idem, p. 126).

Estranha metamorfose: a divisão dos poderes não deveria implicar, na expressão de MONTESQUIEU, que os juízes não seriam mais do que "a boca que pronuncia as sentenças da lei; seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor"? (Do espírito das leis, p. 160) Não lhes estaria vedada, por perigosa, toda tentativa de interpretação? (BECCARIA, César. Dos delitos e das penas, p. 35/38).

Não, os fatos, a bem dizer, desmentiam tudo isso, mas não se há de negar que a ideologia apregoada conseguiu, de certa forma, parcela de seu intento. A segurança jurídica identificada com o irrestrito cumprimento da lei, expressão da vontade popular, exigia por parte do magistrado uma espécie de sacrifício de suas concepções pessoais de justiça. Mas a verdade é que, paralelamente, pouca necessidade tinham os juízes de insurgir-se contra os preceitos legislados. Respeitavam-nos porque, até certo ponto, concordavam com os valores vigentes. Não constituíam seres incomuns, incapazes de se deixarem absorver pela engrenagem histórica, social e ideológica.

6.2. Liberdade atual dos juízes criminais

Os juízes criminais – voltemos a eles – dispõem, de fato, de ampla liberdade na escolha da decisão. Essa liberdade é ainda maior na fixação do "quantum" apenativo, independentemente do que a respeito preconiza o Código Penal. Quase infinitas são as explicações para o fenômeno. Muitas delas, sem se restringirem aos dias de hoje, já foram lembradas neste trabalho.

A proliferação de teorias, doutrinas, escolas, ou o nome que se dê a opiniões acerca de determinada temática jurídico-penal, contribuiu enormemente para que isso acontecesse.

Esse aumento, em proporção geométrica, das obras publicadas, ou a simples notícia, resumida, das microscópicas e múltiplas distinções dogmáticas, nacionais e estrangeiras, concorrem, juntamente com as já existentes, para uma absolvição prévia dos pecados ou pecadilhos acaso cometidos na decisão tomada. É difícil não encontrar, na fundamentação de uma sentença, a coincidência de argumentos já expendidos por respeitável tratadista. Nesse mister, aliás, salvo se outras são as preocupações, a última coisa que importa é o exame da adequabilidade da opinião ao sistema nacional vigente, limitada originalmente ao ordenamento jurídico alienígena.

Mencionada proliferação teórico-doutrinária, diga-se de passagem, muitas vezes importada de outras terras, só pode ter um saldo positivo. Este, contudo, seria muito mais elevado qualitativamente se os maiores de nossas letras jurídico-penais filtrassem os temas abordados, deixando de lado aqueles que não passam de variações de ordem meramente sistemática. Se bem que até mesmo essas variações, pelos artifícios de que os juristas se servem, acabem repercutindo naquilo que mais interessa: uma decisão aproximada das exigências de uma justiça compatível com a gravidade dos fatos, revalorizados à luz das concepções dominantes.

6.3. Ausência de co-autoria

Examinemos, para começar, um caso de co-autoria:

E os fatos ocorreram da seguinte maneira: WTB, o principal acusado, vendo que lhe haviam cortado o pneu de seu automóvel, agindo com deliberação e assumindo o risco do evento, dirigiu-se agressivamente contra EB, agarrando-o e rolando com o mesmo pelo chão, por estar convicto de ter sido a vítima o autor do dano em seu veículo. Serenados os ânimos, novo entrevero ocorre entre W e E, repetindo-se a cena da primeira briga. Ora, a vítima teve sua clavícula quebrada e, assim, não há como não responsabilizar WTB pelo evento. Já o mesmo não se pode dizer no que toca ao outro recorrente – HJ. É que esse cidadão, que se encontrava jogando baralho no clube, nenhuma interferência teve no primeiro entrevero e, no segundo, limitou-se, apenas, a dar um soco ou tapa que atingiu a vítima. Condená-lo, só por isso e nas condições em que os fatos ocorreram, no crime de lesão corporal de natureza grave, face à co-autoria, seria severidade excessiva, ainda mais que dúvidas sérias perduram quanto ao momento da ocorrência da fratura sofrida pela vítima, se antes ou após sua intervenção na luta entre W e E" (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.508, da Comarca de Pomerode. Des. João de Borba, Relator. 1974, vol. ¾, p. 461).

Deixemos de lado o problema das "sérias dúvidas" quanto ao momento da ocorrência da fratura, dúvidas por sinal consideradas inexistentes na instância de primeiro grau. Elas constituíram apenas uma argumentação complementar: "ainda mais que". O que importava era a valoração dos fatos praticados pelo segundo recorrente. Pois bem, pela sua insignificância não poderiam redundar numa condenação por lesão corporal grave, mesmo face à co-autoria, o que seria "severidade excessiva".

Severidade excessiva: eis aí a expressão mágica que desconhece barreiras. O MM. Juiz a quo, no entanto, a desconheceu, porque lhe parecia mais relevante o fiel cumprimento da lei. Com efeito, de conformidade com o disposto no parágrafo único do artigo 48 do Código penal, "se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuída de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido". Com esta premissa, ajustada, à perfeição, àquela do caput do artigo 48, ninguém pode deixar de chegar à sentença condenatória.

Acontece que, atualmente, o parágrafo único do artigo 48 corresponde a uma espinha atravessada na garganta do aplicador da lei penal. Raro encontrar quem não o abomine, por traduzir responsabilidade objetiva (CIRIGLIANO FILHO, R. "Inovações da parte geral do código penal de 1969", Revista de Informação Legislativa, nº 27, 1970, p. 52; COSTA JUNIOR, Paulo José da, "Direito penal da culpa", Ciência Penal, 1, 1975, p. 79/81; MEDEIROS, Marcílio, "O novo código penal", Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Santa Catarina, nov./1972, p. 60/62). Na dificuldade que acarreta uma reinterpretação, porquanto inconvincente, uma das saídas é colocá-lo de lado, como se não existisse. A sensibilidade do intérprete diante do caso concreto, ao captar a "severidade excessiva" que lhe é inerente, erige esta última em princípio norteador da decisão. Em suma, não deve ser aplicada a lei excessivamente severa.

6.4. Pequeno prejuízo e furto privilegiado

Ressalte-se que, na espécie, a solução de eqüidade ou de política criminal ficou apenas implícita, no sentido de que não foi mencionada expressamente no acórdão. Noutros, porém, a expressão aparece, conquanto os efeitos sejam os mesmos:

Embora de certo valor a coisa subtraída, se o lesado foi ressarcido de grande parte do prejuízo, restando recuperar importância bem inferior ao salário mínimo, é possível, conforme as circunstâncias e tratando-se de réu primário, aplicar o art. 155, § 2º, do Código Penal (...). Cuida-se, como sustenta um dos arestos citados, de uma solução ditada pela política criminal, "pois a lei penal foi excessivamente rígida em relação à punição dos crimes contra a propriedade, criando situações de clamorosa injustiça quanto à apenação, rigidez essa que tem sido obviada pelo esforço jurisprudencial no sentido de encontrar uma conciliação entre os interesses sociais e a oportunidade que os delinqüentes primários devem ter para a volta ao bom caminho" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.885, da Comarca de Sombrio. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1972, vol. 2, p. 1.148 e 1.149).

O acórdão em pauta é datado de 1972. A tese nele contida foi rejeitada três anos depois. Era um caso, porém de vários réus (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.710, da Comarca de Balneário de Camboriú. Des. Ary Oliveira, Relator. 1975, vol. 7/8, p. 452). Em 1973, por sinal, tinha sido reafirmada, mas com o adendo de que a espécie em julgamento não comportava sua aplicação – réu de maus antecedentes, embora primário; ausência de devolução espontânea (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. º 12.451, da Comarca de Santa Cecília. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1973, vol. 2, p. 382/383).

O que havia de peculiar no processo criminal de 1972? Eis a resposta: "A substituição da pena, in casu, justifica-se plenamente, impondo-se ressaltar que o acusado, humilde roceiro, encontrava-se à época do fato assoberbado por problemas de toda a ordem, tendo a seu encargo o sustento de seu velho pai, atacado de grave enfermidade, e a manutenção de sua mãe e vários irmãos pequenos". Por isso, e por ser primário, de bons antecedentes, e ainda porque "o animal furtado, vendido a terceiro, foi restituído ao legítimo dono, sendo o comprador reembolsado de grande parte do preço que pagou", deu-se provimento ao recurso "para substituir a pena de reclusão por detenção, concedendo-se ao réu o benefício do sursis" (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.885, cit., p. 1.149 e 1.148).

Vê-se claramente que a condenação com sursis parecia a solução justa para o Egrégio Tribunal. Mas a pena de reclusão, na época, era incompatível com o benefício. Seria atrevimento demais estendê-lo à reclusão, não havia notícia de que alguma Corte houvesse chegado ao que facilmente se acoimaria de "heresia jurídica". Como contornar a situação? Bem, se poderia substituir a reclusão por detenção, na forma do § 2º do art. 155. É verdade que se estava diante do furto de um boi, detalhe que não correspondia à exigência de ser "de pequeno valor a coisa furtada".

Nada obstante... Quem disse, afinal, ser o juiz uma peça inerte no momento em que sente sobre si – ainda mais em grau de recurso – a enorme responsabilidade de decidir a sorte de seu semelhante? Quem afirmou não possa ou não deva ter uma visão de conjunto do ordenamento jurídico? Como proibir o magistrado de, ao se deparar com a regra do § 1º do art. 171, onde se fala em pequeno valor do prejuízo, no crime de estelionato, apreender o descompasso, o desacerto, a injustificável diferença de tratamento?

O legislador pode impor quase tudo. Entretanto, não pode prever, infinitas são as variáveis e combinações, todos os casos concretos da vida real. E, se faz distinções, não pode impedir que o intérprete as considere irrelevantes.

Tudo isso explica, mas não invalida uma simples constatação: a de que o juiz, sensibilizado com as características únicas da hipótese em julgamento, decide contra legem. E diz abertamente: questão de política criminal. Ou pode não dizê-lo, tantos são os meios de que dispõe para alcançar o mesmo objetivo.

6.5. Ausência de condenação por maus-tratos

Outro exemplo, bastante significativo:

Acordam, em Câmara Criminal, à unanimidade e de acordo com o parecer da Procuradoria Geral do Estado, conhecer da apelação e dar-lhe provimento para absolver o réu. Custas na forma da lei. E assim decidem nos termos do parecer da Procuradoria Geral do Estado que se adota como razão de decidir: "Trata-se, na hipótese dos autos, de réu que, por haver abusado dos meios de correção e disciplina, foi condenado à pena de multa, como infrator do art. 136 do Código Penal. Em razão disso, interpôs o presente recurso, através do qual pretende a reforma da sentença. Malgrado as opiniões contrárias, temos para nós que a absolvição do acusado, na Superior Instância, será mais um ato de boa política criminal. Se é verdade que o réu, no episódio relatado na denúncia, agiu com excessivo rigor, ao ponto de lesionar o próprio filho, não é menos certo afirmar-se que foi esta a primeira vez que ele assim procedeu. Também não há negar que o acusado, de acordo com o que disseram as testemunhas, é considerado um homem bom, sério, correto e trabalhador, ao passo que o menor E., por sua proverbial desatenção às ordens paternas, além de outras diatribes, vinha fazendo por merecer castigo e reprimenda. Demais disso, os maus-tratos infligidos àquele menor não tiveram o caráter de habitualidade, constituindo-se mesmo em ação isolada, explicável por sobrecarga emocional, ante a seqüência dos motivos acima referidos. O acórdão invocado pela defesa e a decisão por ela transcrita, do eminente juiz paulista, hoje desembargador do Tribunal de Alçada Criminal, Valentim Alves da Silva, indicam, com o toque da sabedoria, o caminho a seguir em situações iguais a esta. Aliás, os efeitos negativos dessa condenação já se prenunciavam no curso do processo, quando se ficou sabendo que o menor E. não ia mais à escola e andava perambulando pelas ruas, ao passo que o réu, cuja indiciação representava seriíssimo golpe à sua autoridade, não sabia como retomá-la naquela conjuntura. É fora de dúvida que o acusado, nesta altura, ainda que mereça ser absolvido, terá recebido uma dura lição e uma severa advertência, a fim de que se modere e, daqui por diante, castigue os filhos de outra maneira. Agora, insistir numa punição judicial, que perdurará por anos seguidos como um estigma e uma parede a dividir pai e filho, parece-nos, data venia, não atender de modo algum ao espírito da lei e ao interesse social (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.376, da Comarca e Campos Novos. Des. Eduardo Luz, Relator. 1971, vol. 2, p. 871/872).

O judicioso parecer, adotado como razão de decidir, vem aqui transcrito, na sua íntegra, porque se constitui num dos raros modelos de ricas argumentações convergindo, em harmonia, para um único objetivo: a justificativa, abertamente confessada, de uma absolvição contra legem. Alinhemos as razões invocadas: réu primário, de ótimos antecedentes; ação isolada, explicável por sobrecarga emocional; efeitos negativos da condenação no que concerne à educação da vítima; o processo, em si, suficientemente válido como dura lição e severa advertência; punição judicial: estigma a dividir pai e filho. Em suma: antinomia entre uma boa política criminal (espírito da lei, interesse social) e outra, eventualmente má, decorrente de uma aplicação formalista do artigo 136 do estatuto repressivo. Nem mesmo faltou o detalhe da "absolvição do acusado, na Superior Instância", como a sugerir que esta, por algum motivo que não ficou explícito, se sentiria mais à vontade para um veredicto liberto de preconceitos legalistas.

E foi o que ocorreu. A Corte de Justiça, como que sopesando, com precisão de ourives, os prós e os contras de uma condenação, acabou preferindo a segunda alternativa, atenta, de modo particular, às conseqüências práticas no caso concreto. Agindo como agiu é claro que se auto-reconheceu com o direito de afastar a lei em nome de uma indagação mais aprofundada acerca dos fundamentos da repressão criminal. O fenômeno, que se generaliza, foi anunciado, dentre outros autores, por ROBERT LEGROS: "Mas o que é mais impressionante é constatar que o juiz penal procede cada vez mais frequentemente à pesquisa dos fundamentos da repressão e dos limites do direito de punir" (Droit pénal, vol. 1, p. 70).

6.6. Anti-legalismo e sentimentos da sociedade

Referida pesquisa, é bom que se acrescente, quase sempre transparece, com mais nitidez, diante das peculiaridades do caso concreto.

Há momentos em que os fatos, se fazendo acompanhar de uma certa tonalidade, despertam o juiz de sua sina legalista para transformá-lo em fonte e porta-voz de um outro direito, liberto, assim, das parcerias habituais. A honra profissional, identificada com o legalismo, como que se transforma, se transmuda, ganhando matizes que revelam uma subitânea e radical tomada de consciência. Ao menos por um instante, já não se é o que se era, prevalece o anti-legalismo. Por paradoxal que se afigure, o fenômeno pode traduzir – e traduz muitas vezes – a par de uma eventual contribuição para a evolução do direito, o sinal de uma revolta, a coragem de um desafio, a positividade de uma oferta, o indício de uma vocação, o coroamento de uma carreira. Sem embargo, se a tanto chega o juiz, é bem provável que o faça amparado pelo prestígio social das novas idéias, de que se torna arauto. Refleteria, de certa forma, os sentimentos da sociedade (CARBONNIER, Jean, Sociologie juridique, pág. 197) porque "escravo do direito vivo, e não de sua norma imperfeita e esclerosada", como se refere HENRY LEVY-BRUHL, (Sociologia do direito, p. 35), que não vê razões, todavia, para a preferência do subjetivismo judicial.

6.7 Decisões motivadas

O problema, porém, é insolúvel, já o reconhecera o mesmo autor, HENRI LEVY-BRUHL (ob. cit., p. 77). No entanto, a necessidade de motivar a decisão, se não o resolve, pelo menos o ameniza. Dir-se-ia que o próprio legislador, proclamando essa obrigatoriedade, e o juiz, ao cumpri-la à risca, contribuem enormemente para o que se poderia chamar de "acordo de cavalheiros", com enormes benefícios para o meio social. É que a motivação da sentença tem o condão de, precisamente, fazer desaparecer o subjetivismo, ao menos como tentativa. Tudo se processa como se uma força imparcial, superior e altaneira, estivesse a dirigir os passos do juiz.

É claro que, descoberto o princípio da norma geral, tende ele a prevalecer, em nome da segurança jurídica. Está longe o dia em que o intérprete há de sentir-se plenamente livre para impor sua exclusiva e única vontade. O tratamento igual para situações iguais exige-lhe um ponto externo de referência, ainda mais porque não pode competir, em face de suas limitações, com as soluções previamente ditadas pela condensação de experiências em temas de extrema complexidade. O juiz não é um ser à parte do contexto social.

Até aí, portanto, nada de extraordinário. Mas é forçoso reconhecer que a singularidade do caso concreto suscita, não raro, sérias interrogações, dúvidas fundadas, conflitos de valores. Não basta, quando possível, apreender mecanicamente o que foi por terceiros estatuído. O exame das conseqüências é tarefa que não escapa ao mais bisonho dos aplicadores das leis. E essas conseqüências são avaliadas, em regra, de conformidade com os padrões vigentes, por sua vez enfocados segundo uma ótica mais ou menos pessoal.

Em outras palavras: arbítrio e subjetivismo judiciários são expressões que, se podem ser combatidas no plano das idéias, obtendo a contestação forte adesão emotiva, não deixam, todavia, de alcançar respaldo na realidade fenomênica. A posição contestatória vale somente por seu conteúdo retórico, o que já se constitui, em si e por si, numa das mais importantes conquistas da ideologia político-jurídica.

Daí o acerto da explicitação das motivações da sentença. E é justamente quando elas conflitam com as diretrizes legais que se percebe, com nitidez, o caráter problemático do direito contencioso: isto é, o prevalecimento da solução tópica, nem sempre conflitante, por sinal, com as pretensões sistemáticas. Os argumentos invocados viriam então cobrir com o manto da razoabilidade o que poderia tomar outro rumo se se ficasse limitado às injunções de esquemas rígidos, inflexíveis.

Em suma, é pouco, muito pouco, decidir com a letra da lei, com o desdobramento de seu espírito, e principalmente contra ela. É verdade que sua menção expressa, desacompanhada de maiores considerações, se encontra na vida forense com certa abundância, tamanho é o volume das demandas. Mas permanece o significado: aceitação de suas premissas e conseqüências práticas. Na última hipótese, porém, e até mesmo na hipótese intermediária (de contornos tão fugidios), há que se impor um esforço incomum. E como se trata de convencer despe-se o juiz de preconceitos de ordem meramente subjetiva (age em tal sentido) para realçar o que lhe parece traduzir, objetivamente, a solução correta, compatível com as circunstâncias e as escalas de valores correspondentes. Confrontadas as várias possibilidades, muitas delas em trilhas opostas, acaba vencedora aquela que parece ligar-se a um posicionamento considerado mais razoável, o que não elimina a dose de aceitabilidade da outra solução igualmente imaginada, mas deixada de lado, por inferior.

O fenômeno é particularmente dramático na área criminal, em que a carência de soluções legais intermediárias (abstraídos os recursos inventivos do magistrado) impõe o radicalismo de uma absolvição ou condenação. A Lei 6.416, de 24/5/77, representou nesse aspecto uma certa conquista.

Capítulo 7

7.1. A importância prática do subjetivismo judicial 7.2. Furto e venda da coisa furtada 7.3. Homicídio qualificado-privilegiado 7.4. Absorção do crime-meio 7.5. Liberdade judicial

7.1. A importância prática do subjetivismo judicial

Fizemos referência, linhas atrás, ao posicionamento de HENRY LEVY-BRUHL, na discussão sobre o subjetivismo judiciário. A supressão dos textos "seria um remédio pior do que o mal, pois o juiz, privado do freio que é o texto legal, seria levado a estatuir segundo suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, e o mesmo litígio estaria sujeito a ter uma solução diferente de acordo com o tribunal que o ponderasse". A experiência do passado, as exigências de segurança jurídica e o caráter democrático da norma legislativa afastavam qualquer dúvida quanto à necessidade de "que o juiz permaneça servidor da lei". Ressalva, porém, a faculdade de temperar-lhe o rigor com uma grande liberdade de interpretação (LEVY-BRUHL, Henry, ob. cit., p. 77/78).

Para E. S. DE LA MARNIÈRE, é ao jurista, "em todas as funções às quais ele pode ser chamado, que cabe não somente agir de sorte que a regra jurídica exata, lógica e objetivamente determinada, receba aplicação em cada circunstância, de modo que seja assegurada a previsibilidade da solução de todo litígio, donde uma real segurança e a liberdade do homem, mas também que as partes tenham plena consciência dessa segurança, da preeminência absoluta da lei, no sentido mais elevado do termo, da ausência de todo arbítrio da parte daqueles que terão de decidir ou fazer-lhes aplicação, de que esta última não depende em nada, a qualquer título que seja, da pretendida ou mesmo real influência de que possa dispor seu adversário, fosse ele o próprio Estado, por motivos de ordem política, ou de ordem econômica ou de ordem social" (Eléments de méthodologie juridique, p. 201/202).

É a justiça do computador, previamente alimentado... pela sabedoria divina?

Resta saber se o juiz aceita esse jogo mecanicista. Resta indagar se o juiz, mesmo diante de texto expresso, não estatui segundo suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas. Quase sempre no bom sentido, parece que o faz, principalmente em face dos insolúveis problemas de interpretação. Por exemplo, "em mais de trinta anos de vigência do CP não se conseguiu harmonia de interpretação jurisprudencial a respeito da reincidência entre furto e roubo, se genérica ou específica", afirma DAMÁSIO E. DE JESUS (Direito penal, vol. 1, p. 534). A explicação do fato reside também na "extrema severidade para com o delinqüente" (idem, ibidem) que representava a hipótese de reincidência específica.

Inevitável, pois, a parcela de contribuição subjetiva.

7.2. Furto e venda da coisa furtada

Infindável a enumeração de outros exemplos.

Vejamos:

A venda, através de documentos "frios" da coisa furtada, não configura o crime de estelionato, traduzindo tal venda simples complemento do furto, sendo por este absorvido (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.506, da Comarca de Campos Novos. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1973, vol. 2, p. 356).

Tal decisão é, de certa forma, banal. Nada tem de surpreendente. Mas se vem a ser lembrada é porque significa "uma justa preocupação: a louvável intenção de suavizar a aspereza das normas sobre o concurso de delitos (...). Força é reconhecer, então, que a ocorrência de um só crime, furto ou estelionato, o que não nos parece doutrinariamente correto, tem aceitação na Jurisprudência sob a inspiração de princípios de Política Criminal, no sentido de suavizar a aplicação da pena" (JESUS, Damásio,ob. cit., p. 113/114). É a opinião, também, de MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, v.2,1963,p. 283).

Mais uma vez, portanto, a "política criminal", elevada à categoria de princípio geral superior, concorre para que seja sumariamente desconhecida a claríssima regra do concurso material de crimes (Código Penal, art. 51). Alega-se que "subtrair, para proveito próprio, inclui a disposição subseqüente", tenha ou não, esta última, tipicidade criminosa e seja executada, quem sabe, meses ou anos depois (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.506, cit,. pág. 356). É a saída artificial, perfeitamente compreensível, com largo apoio doutrinário, para quem se recusa, eventualmente, a cometer uma iniqüidade. Nosso Código Penal, aliás, concentra o seu rigor na classe dos delinqüentes contra o patrimônio, reservando especial predileção para com o ladrão comum. Não é fácil encontrar quem faça coro a tanta má vontade.

7.3. Homicídio qualificado-privilegiado

Em matéria de concurso aparente de normas nosso Tribunal encontrou, certa feita, o caminho moderado do meio-termo, diante de um homicídio qualificado pela traição, cometido, entretanto, por motivo de relevante valor social. Fixou a pena nos limites de 12 a 30 anos e, depois, sem o menor problema, reduziu-a de um quarto, com base no § 1º do art. 121 (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 10.874, da Comarca de Santa Cecília. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1969, p. 597/598). Não se fala, em nenhum momento, em política criminal. Ao que parece, no entanto, o espírito do rei Salomão baixou à Terra, à semelhança do que teria sucedido quando se aplicou ao furto qualificado a regra do § 2º do art. 155.

7.4. Absorção do crime-meio

Ainda dentro do tema:

Peculato e falsidade ideológica. Absorção do crime menor pelo mais grave. Sentença condenatória reformada, em parte. Se as declarações falsas em documentos foram inseridas para ensejar a subtração dos dinheiros públicos, há a absorção da falsidade pelo peculato (...). É que a falsidade ideológica constituiu, na espécie, precisamente, o expediente fraudulento usado para a subtração do numerário público, fim objetivado pelos apenados (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.587, da Comarca de Capinzal. Des. Rubem Costa, Relator. 1972, vol. 2, p. 1246/1247).

Estelionato – Delito de falsidade – absorção do crime-meio – Nulidades repelidas – Condenação. O uso do papel falso ou falsificado para obter de outrem a entrega de dinheiro etc. é estelionato, absorvido o falsum (...). O delito de falsidade – in casu materializado na procuração falsificada – que permitiu o recebimento do dinheiro, foi o meio para atingir o estelionato. É por este absorvido. É conhecida a controvérsia relativa ao concurso entre o crime de falsidade documental e o crime patrimonial, quando o falsum é o meio para a obtenção da vantagem. Mas o Pleno do Supremo Tribunal Federal declarou a inexistência de concurso de crimes, proclamando tão só a existência do delito-fim – estelionato (R.T.J., vol 52/182) (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. n.º 11.587, da Comarca de Florianópolis. Des. Eduardo Luz, Relator. 1972 vol. 2, p. 1298/1299).

Não pretendemos reavivar os debates. Interessa-nos somente, nesta passagem, sublinhar o que foi dito: absorção do crime menor pelo mais grave. É de imaginar-se que assim também tenha sido considerada a falsificação documental a que alude o segundo aresto, isto é, um delito menor em relação ao estelionato.

E se a hipótese fosse inversa? Com mais precisão: e se o delito-meio fosse mais grave do que o delito-fim? Os que têm mentalidade lógica se apressariam em responder que seria inconcebível a mesma orientação. Ficariam talvez estarrecidos com estes venerandos acórdãos:

Falsificação de documento público e subseqüente prática de estelionato com o uso do falso. Absorção do primeiro crime que só serviu para obtenção da vantagem patrimonial que era o fim do agente (estelionato) (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.000, da Comarca de de Dionísio Cerqueira. Des. Ivo Sell, Relator 1976, vol. 11/12, p. 458).

Falsificação de documento público e subseqüente prática de estelionato com o uso do falso. Absorção do primeiro crime pelo segundo, porque a prática da falsificação era indispensável para o estelionato que era o crime-fim do agente (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 13.781, da Comarca de São Miguel do Oeste. Des. João de Borba, Relator. 1976, vol. 14, p. 387).

É que a falsificação de documento público, ideológica ou material, tem penas mais elevadas que o estelionato, além de não conhecer formas privilegiadas...

Fenômeno curioso: os fatos geram a regra com eles compatível –absorção do delito-fim (mais grave) pelo delito-meio (menos grave) – e esta como que deles se desliga para, na volta, com mais autonomia, abranger hipóteses bem mais amplas. Confessa-o a própria Eg. Segunda Câmara Criminal:

(...) esta Egrégia Câmara (Ap. Criminal 13.000, de Dionísio Cerqueira, de 3.6.76; e 13.781, de São Miguel do Oeste, de 23.9.76) já assentou que no concurso de crime de falso com o de estelionato, em que a falsidade funcione como crime-meio, se deva reconhecer a prevalência do crime-fim, sem se ater ao problema de qual seria o crime a que a lei comina pena maior (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. n.º 14.258, da Comarca da Capital. Des. João de Borba, Relator. 1977, vol. 15/16, p. 428/429).

Não custa repetir: "sem se ater ao problema de qual seria o crime a que a lei comina pena maior".

7.5. Liberdade judicial

Conclusão: "Dá-me uma regra, não importa qual seja, e eu farei um julgamento". Dir-se-ia que na mente do julgador, quando preocupado com a valoração dos fatos, e desde que o permitam as circunstâncias (o sentimento da própria liberdade de ação), a última coisa que pesa é a pretensa imposição de uma norma geral pré-estabelecida. Esta só tende a prevalecer se o intérprete concorda com ela (concordância em termos, por não lhe ocorrer outra melhor ou em razão das condições materiais que tem diante de si) ou se sente psicologicamente constrangido a dar-lhe execução. Essa liberdade de ação, a que nos referimos, aumenta à medida que o texto se imobiliza no tempo. O detalhe não invalida – bem ao reverso – a receptividade de novas idéias, disseminadas no meio social, com realce, é óbvio, para aquelas especificamente relacionadas com o mundo vivencial e funcional dos juristas.

7.6. Escolas de direito.

Por outro lado, e em síntese: dá para imaginar um sistema jurídico formalizado, tomando-se a lei como coordenadas, mas é ilusório pensar que surta, ou possa surtir, sequer a metade dos seus efeitos. Por isso mesmo são dignas de encômio, porque bem mais realistas, as academias de direito que, sem prejuízo de uma orientação básica, teórico-dogmática, aproximam professores e alunos dos volumes de jurisprudência. Vamos mais adiante: escolas que não se contentam com a simples formação jurídica, alimentada de si mesma, como que suspensa no ar. Escolas que, sabendo da inserção do direito num contexto mais amplo, não constroem diques nem fecham comportas. Microscópio e telescópio podem viver em harmonia. Diríamos melhor, se impossível a conciliação: ao aluno, a floresta; ao profissional, as árvores.

Capítulo 8

8.1. O exemplo clássico do famulato. 8.2. A imagem distorcida do furto doméstico. 8.3. A doutrina de Hoeppner Dutra 8.4. Persistência da posição jurídica. 8.5. A reação jurisprudencial

1. O exemplo clássico do famulato

Já expressamos nossa opinião de que o Código Penal de 1940 concentrou o seu rigor contra os autores de crimes patrimoniais, com especial atenção para com os que cometem furtos. Coerentemente, estendeu esse rigor a certos crimes contra a administração pública de efeitos lesivos ao patrimônio, ou, simplesmente, reveladores de cobiça material.

Substancial alteração dos limites apenativos haveria, por exemplo, no furto cometido com abuso de confiança (art. 155 § 4º, II). "Trata-se de circunstância subjetiva, reveladora de maior periculosidade do agente que não só furta, mas viola a confiança nele depositada", comenta MAGALHÃES NORONHA (Direito penal, vol. 2, 1963, p. 297). E logo viria o exemplo, que se tornara clássico: "O criado que fica em casa, na ausência do patrão, e subtrai objetos que aí se encontram, furta com abuso de confiança. .." (idem, ibidem).

Prelecionava NÉLSON HUNGRIA: "O caso típico é o do chamado famulato (próprio ou impróprio): o empregado doméstico ou qualquer outro locador de serviço (permanente ou acidental) subtrai objeto existente no local de trabalho" (Comentários ao código penal, vol. 7, p. 40).

Também BENTO DE FARIA: "Tal se verifica no delito praticado pelo criado, que tem a entrada livre nas dependências da casa, pela pessoa encarregada de guardar a coisa, etc." (Código penal brasileiro comentado, vol. 5, p. 24).

HELENO FRAGOSO participava do consenso: "É o caso do famulato (furto praticado por empregado), ou de alguém que se valha de relações de amizade ou de uma situação de confiança, para mais facilmente subtrair a coisa alheia" (Lições de direito penal, vol. 1, p. 246).

8.2. A imagem distorcida do furto doméstico

Não vemos, em regra, no furto doméstico o menor sinal de periculosidade. O quadro circunstancial que o caracteriza conduz exatamente a uma conclusão oposta. A consciência, como classe, da própria inferioridade econômico-social, evidenciada pelo contraste com os bens do patrão e pelo papel que se lhe reserva no âmbito restrito de suas funções corrói, com extrema facilidade, os freios inibitórios do empregado doméstico. O contato diário com dinheiro e objetos de valor que, por ironia ou fatalidade do destino, não lhe pertencem, constitui o pano de fundo da superveniente convicção de que pouca diferença fará, a quem tem muito, a perda eventual de algumas fatias.

Portanto, enquanto o deslize permanecer aí, na linha de ofensa aos bens patrimoniais, não há como reconhecer-lhe maior gravidade para, em conseqüência, reproduzi-lo em texto de lei com severas ameaças. Sua inutilidade se aliaria a uma flagrante injustiça, pouco importando se existiu ou havia motivos para existir confiança.

Conviria, pois, de uma vez por todas, eliminar essa imagem negativa acerca do furto doméstico deixada pelos melhores de nossos doutrinadores, sem que, obviamente, nenhuma culpa tenham em cartório. Trata-se de mero trabalho interpretativo, e de uma honestidade tão palpável que se chegava a afirmar, implicitamente, em total fidelidade à orientação do Código, desaparecer a figura se se tornasse evidente a maior confiança do patrão, revelada pela prévia entrega da coisa ao empregado. Não haveria mais furto, e sim apropriação indébita, de pena de reclusão reduzida à metade (FRAGOSO, H.C., ob. cit., p. 246/247; HUNGRIA, N., ob.cit., p. 40; NORONHA, E.M. ob.cit., p. 297; FARIA, B. de, ob. cit., p. 88 e 92/93).

Concretamente: se alguém, por um motivo qualquer, confiasse suas jóias à empregada doméstica, para que as guardasse em seu quarto, deixando o restante de seus bens como sempre os deixara, estaria concorrendo – é a lei! – para que a subtração de alguma quinquilharia representasse, além da multa, uma responsabilidade criminal de 2 a 8 anos de reclusão, enquanto a apropriação das jóias estaria cotada a 1 a 4 anos de reclusão, além de multa bem mais leve.

8.3. A doutrina de Hoeppner Dutra

Essa delimitação do furto com abuso de confiança, com tanta facilidade relacionado ao furto doméstico, e empregatício, não haveria de ficar assim, aceita incondicionalmente, sem uma análise mais aprofundada, capaz de levar a distinções que retratam a evolução do fenômeno jurídico.

Válida, pois, a tentativa de HOEPPNER DUTRA, no âmbito doutrinário, de restringir o campo de aplicação do dispositivo. A severidade da punição era tão clara que quanto mais gente escapasse, melhor. Desta feita, contudo, não mais haveria necessidade de expedientes ficcionistas. Sua posição, ao contrário, tem até maior embasamento legal. Não exige a lei abuso de confiança? Pois então a primeira coisa a fazer no caso concreto é verificar a sua efetiva ocorrência. Esta não poderia ser presumida por preconceitos em nenhum momento enumerados no texto normativo. É um perigo afirmar a existência de confiança em relações de domesticidade, de emprego etc., porque uma coisa não implica a outra, necessariamente. Trata-se de "circunstância de ordem subjetiva". A confiança constitui "um liame particular entre duas pessoas", decorre "de estado particular de fidelidade" (O furto e o roubo, p. 190/191).

8.4. Persistência da posição crítica

Sem embargo, continuamos a não vislumbrar a menor razão, qualquer que seja o enfoque (censura moral, periculosidade, utilidade social etc.) para se apenar com severidade dobrada o furto cometido com abuso de confiança. É até sustentável o ponto de vista de maior reprovabilidade (maior periculosidade, maior nocividade social etc.) do furto praticado às pressas, nos primeiros dias de relação empregatícia. Denotaria, pelo menos, uma predisposição delituosa. Revelaria uma personalidade que se antecipa aos efeitos deletérios de uma situação vivencial sumariamente amputada. Criminalidade precoce, ou, então, forjada em emprego anterior. Confiança ou desconfiança da vítima são pormenores que não podem afetar, em princípio, o grau de responsabilidade criminal. Se assim não fosse deveriam ser enforcados os filhos adultos que furtam de seus pais. O próprio legislador, aliás, acabou entrando em contradição, ao retirar do âmbito punitivo do furto qualificado, sem criar uma figura equivalente, hipóteses flagrantes de incondicional confiança. A propósito, estelionato e apropriação indébita são crimes que só se configuram, na maioria das vezes, porque existe confiança da vítima.

Ambos mereceram, todavia, melhor tratamento por parte do legislador. Quem poderá negar que este não se deixou impressionar pelo status de seus protagonistas, uma vez que não primou pela coerência? Quem poderá negar que o legislador jamais se imagina na pele do ladrão, a quem abomina, pela conotação de aviltamento sócio-intelectual, mas aceita, de certo modo, consciente ou inconscientemente, a imagem refinada do estelionatário e figuras similares? O estelionatário usa roupas finas, tem modos delicados e é capaz de conviver em altas rodas. O ladrão comum pertence à ralé, à classe dos miseráveis. Anda mal vestido e é semi-analfabeto. Assim, se o "golpe" do primeiro atingiu um teto elevadíssimo mas, descoberto, redunda em nenhum prejuízo para a vítima, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa (não se trata de matéria pacífica). O mesmo não ocorre com o segundo, nos termos da lei. Benefício dessa natureza é limitado pelo valor – pequeno – da coisa subtraída.

O estelionatário pode convidar um comparsa, para ajudá-lo na empreitada. O delito permanece o mesmo. Se o ladrão comum o fizer. .. furto qualificado!

O ladrão comum é rude e rústico. É capaz de destruir ou romper obstáculo à subtração da coisa. O estelionatário não passa de um cavalheiro: os obstáculos que rompe ou destrói (a desconfiança, a defesa psicológica da vítima) pertencem a um nível imaterial, bem mais elevado, portanto.

O ladrão comum é capaz de servir-se de chave falsa, que os intérpretes zelosos logo equiparam, em certas circunstâncias, à verdadeira.

O estelionatário prefere os ardis, as encenações, os artifícios, tudo isso intrinsecamente falso, é verdade, mas de uma beleza, uma capacidade inventiva merecedora, sem dúvida, de uma certa reverência.

O ladrão comum pode também, eventualmente, imitar o estelionatário, furtando com fraude. Nunca, porém, chegará aos pés deste. Uma sutil distinção legal o coloca em seu devido lugar: não lhe dá promoção e, ainda por cima, acena-lhe com as penas do furto qualificado.

8.5. A reação jurisprudencial

A lei já vem pronta. Até onde é digerida, sem sinais de rejeição, é questão difícil de esclarecer. Sabe-se apenas que conhecidos os sintomas, os efeitos, porventura contraproducentes, se tende a tratá-la com reservas. Não dando muito na vista, em nome dos interesses sociais, pode-se negar-lhe aplicação. Uma das técnicas é readquirir a consciência do poder decisório e, desconhecendo os argumentos de autoridade, redefinir os termos incomodativos. Escreveu LUIS ALBERTO WARAT: "mediante a operação de redefinição o julgador poderá efetuar interessantes deslocamentos de sentido. Eles determinam ampliações ou restrições no campo extensional, que provocarão na zona excluída ou incorporada uma alteração do signo deôntico que até então lhe correspondia" (El derecho y su lenguaje, p. 171).

É processo que se harmoniza com o desejo de adequação ideológica. Esta se produz, por exemplo, "aproveitando-se a ambigüidade por anfibologia semântica que apresentam muitos dos termos das normas gerais, que só podem carregar-se de significação através de um juízo de valoração. Os termos como "maliciosamente", "objeto obsceno", "ânimo lascivo", "abusar desonestamente" necessitarão sempre de uma definição estipulativa. Se o juiz não definisse esses termos em sua sentença, muito provavelmente deixaria a impressão de haver produzido uma decisão arbitrária" (ob. cit., p. 136/137).

Foi nessa base que decidiu a Câmara Criminal de Santa Catarina, contando já a seu favor com importantes precedentes de outras Cortes:

Não é simples relação empregatícia que configura a qualificativa do abuso de confiança (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.446, da Comarca de Joinville. Des. Trompowsky Taulois, Relator. 1971, vol. 2, p. 814).

Não se justifica, realmente, no caso, o acolhimento das qualificativas. (...) a outra, vez que simples vínculo empregatício (balconista), por si só, não significa tenha havido abuso de confiança (Jurisprudência do TJSC, Ap. Crim. nº 11.281, da Comarca de Florianópolis. Des. Rubem Costa, Relator. 1971, vol. 2, p. 858).

Vê-se que também no direito nem tudo está perdido, quando resta uma esperança. É claro que ainda haverá algum processo em que a vítima vai jurar por todos os santos que confiava até demais no acusado. Mas o juiz lhe responderá que é pouco, para uma prova robusta. E repetirá o refrão: "Não é a simples relação empregatícia. .." É o que fará. Provavelmente o fará. Convém que o faça.

Capítulo 9

9.1. Concurso material de furtos. 9.2 Corrupção ativa e corrupção passiva. 9.3. Ausência de prova da co-autoria no furto.

9.1. Concurso material de furtos

De conformidade com o disposto no artigo 386 do Código de Processo Penal, o juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I – estar provada a inexistência do fato; II – não haver prova da existência do fato; III – não constituir o fato infração penal; IV – não haver prova de ter o réu concorrido para a infração penal; V – existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do Código Penal); VI – não existir prova suficiente para a condenação.

Eis aí, presenteada pelo legislador, a mais poderosa arma de que dispõe o magistrado para uma eventual decisão contra legem, em benefício do réu. O freio desempenhado pela Superior Instância não modifica a situação, pois também ela faz uso do artifício, divergindo do Juízo a quo, quando o entende recomendável.

Dos itens apontados merece realce o nº VI – não existir prova suficiente para a condenação.

Vejamos alguns casos:

Por sentença que transitou em julgado, o suplicante foi condenado a cumprir pena de dez anos de reclusão e multa de NCr$ 5,00, como incurso dez (10) vezes no art. 155, do Código Penal (...) A douta Procuradoria Geral opinou no sentido de ser deferido o pedido, para fixação da pena em seis (6)anos de reclusão, visto a hipótese configurar o crime continuado e não o concurso material (Jurisprudência do TJSC, Revisão Criminal nº 739, da Comarca de Tubarão. Des. Rubem Costa, Relator. 1968, p. 162).

Como decidiu, na revisão criminal, o Eg. Tribunal de Justiça? Não vendo caracterizado o crime continuado, chegou, no entanto, por outras vias, à pretendida redução de pena: ausência de prova quanto a 4 delitos.

Juízo a quo e Procuradoria haviam enxergado prova suficiente dos 10 furtos. Com a diferença de que esta procurou amenizar a situação do revisando, cuja pena de 10 anos traduzia, sem dúvida, incompreensível rigorismo. Propôs o crime continuado e a pena correspondente: 6 anos. Considerando justa a nova apenação, mas não aceitando, por incabível, a tese do crime continuado, a Egrégia Corte conseguiu chegar exatamente até ela, por intermédio da clássica incerteza da materialidade alusiva a alguns delitos.

Não afirmamos, categoricamente, pois não dispomos de elementos para tanto, ter havido uma ciente e voluntária decisão contra legem. As circunstâncias do caso, entretanto, (apenação elevadíssima, a sugestão da Procuradoria, a coincidência – por outros caminhos – da solução final etc.) permitem, ao menos, uma leve suspeita, a qual, aliás, mesmo transformada em certeza, em nada alteraria o juízo de razoabilidade do veredicto.

9.2. Corrupção ativa e corrupção passiva

O seguinte aresto merece transcrição integral:

Corrupção ativa e passiva – Prova duvidosa – Absolvição decretada. Insegura a tipificação do delito, mal esclarecidas as circunstâncias da ocorrência, não se há de condenar os réus, pessoas humildes, de ótimos antecedentes, nas severas sanções dos arts. 317, § 1º e 333, parágrafo único, do Código Penal. (...) Acordam, em Câmara Criminal, por maioria de votos, dar provimento para absolver os réus. Custas ex-lege. D.S., G.B.C. e A.D.B. foram processados na comarca de Ponte Serrada, aquele como incurso no art. 317, § 1º, do Código Penal, os demais no art. 333, parágrafo único, do mesmo diploma, sendo a final condenados – D a um ano, seis meses e seis dias de reclusão, os co-réus a um ano e quatro meses de reclusão, todos também em pena pecuniária. Os réus apelaram, opinando, nesta Instância Superior, a douta Procuradoria Geral pelo improvimento. São dois os fatos de que trata o presente processo. Com respeito ao primeiro, afirma-se que o recorrente D.S., soldado do destacamento policial de Ponte Serrada, à época servindo no município de Vargeão, recebeu de C., para permitir que seu filho menor de dezoito anos dirigisse automóvel, como preço, um leitão. De outra parte, quanto ao segundo, alega-se o seguinte: A.B. dirigia sem ter em ordem a documentação do carro. Surpreendido por D., foi por este advertido da infração e, sem que o multasse, marcou o prazo de quinze dias para providenciar os papéis, liberando em seguida o veículo. Antes de prosseguir, em resposta à pergunta de se não queria gratificá-lo, B. deu ao miliciano cr$ 10,00. D. declara que recebeu o leitão como presente, não em troca de permissão para que o menor continuasse a guiar. Nenhuma determinação recebera do juiz para não admitir que menores dirigissem; quando tal ordem recebeu, logo tratou de a cumprir. A versão de C., mais positiva, apresenta, todavia, imprecisões, não permitindo certeza de qual a verdade do caso. O mesmo acontece no outro episódio. Constatando a irregularidade, o soldado concedeu a B. quinze dias para acertar os documentos, tolerância de certo modo explicável tendo em vista a localidade em que o caso ocorreu, lá nos confins de Vargeão, onde as distâncias são grandes e demoradas as providências de ordem burocrática. Em reconhecimento, talvez, não por suborno, quando já liberado o carro, deu-lhe B. a quantia de Cr$ 10,00. Os ótimos antecedentes dos réus, o semi-analfabetismo dos mesmos, a rusticidade de C. e B. aumentam as dúvidas. Insegura a configuração dos ilícitos, não se há de castigá-los por tão pouco, com tão severas sanções (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 13.076, da Comarca de Ponte Serrada. Des. Marcílio Medeiros, Relator. 1975, vol. 9/10, pág. 532).

Esta segunda hipótese já se apresenta com maior dosagem de suspeita de engenhoso artifício para, mantidas as aparências, se chegar a uma decisão contra legem, detalhe que, da mesma forma, não lhe roubaria o sentido de aceitabilidade. É que, a par da condenação na Comarca, foi ela considerada correta no parecer da douta Procuradoria Geral e no voto de ilustre Desembargador, que ficou vencido. As razões que apresentou em separado traduzem uma versão bem mais compatível com as respectivas adequações típicas.

A leitura do acórdão permite vislumbrar os fatores que levaram a Colenda Câmara Criminal a prover o recurso nos termos do art. 386, VI, do C.P.P: 1) os réus eram pessoas humildes, de ótimos antecedentes; rústicos e semi-analfabetos 2) as sanções eram severas em relação ao pouco que fizeram. Tendência, pois, de minimizar a validade das provas produzidas, o que viria evitar uma condenação considerada injusta. O summum jus, summa injuria se combina, com perfeição, a esse rigorismo na exigência de prova suficiente.

9.3. Ausência de prova da co-autoria no furto

Inteligente, para os fins pretendidos, a saída encontrada para um caso de condenação por furto qualificado pela co-autoria, com réus primários e de conseqüências mínimas. A manifestação da douta Procuradoria no sentido do improvimento do recurso não impediu se descobrisse que, "muito embora esclarecido que ambos os acusados cometeram subtração, não ficou evidenciado que eles tivessem agido mediante concurso" (Jurisprudência Catarinense, Ap. Crim. nº 12.732, da Comarca de Xanxerê. Des. Ary Oliveira, Relator. 1975, vol. 9/10, p. 579).

Ficção por desclassificação dos fatos? Não temos a respeito resposta definitiva. É bem provável que haja ocorrido, para sorte dos réus e prevalecimento de uma justiça consentânea com o real significado ético-social de suas condutas.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. O Poder Judiciário e a lei.: A decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2181, 21 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13013. Acesso em: 22 dez. 2024.

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