Capítulo 8
8.1. Segurança jurídica e justiça formal. 8.2. Separação dos poderes e criação judicial. 8.3. A interpretação como atividade cognoscitiva. 8.4. Vontade criadora do direito. 8.5. Julgamento com independência. 8.6. Síntese final
8.1. Segurança jurídica e justiça formal
Não deixa de ser curiosa a apregoada reserva que muitos juízes fazem de sua missão. Educados para o respeito à lei, cujo apanágio chega a constituir o ponto básico de sua deontologia profissional, negam abertamente a função criadora que, no final das contas, acabam exercendo. É que a lei, impessoal e genérica, se associa não somente à segurança mas a um tipo de justiça que não pode ser desprezada: a justiça formal, a exigir o mesmo tratamento para os casos iguais ou visivelmente aparentados. Como reconhecer, pois, que se foge a tão respeitável binômio? Como admitir que a decisão decorreu muito menos de um raciocínio silogístico, tendo a lei por premissa, do que do exame imparcial de suas conseqüências? Há que se responder negativamente à questão, em compreensível autodefesa, ainda que a história persista em provar o contrário.
8.2. Separação dos poderes e criação judicial do direito
Sim, tinha que sofrer um desgaste, e daí ser reinterpretada, a teoria da separação dos poderes. Seus antecedentes filosóficos e as primeiras aplicações práticas, após a Revolução Francesa e os códigos napoleônicos, não deixavam dúvida de que a lei – encarnação da razão e do próprio direito natural – promulgada pelo Poder competente, como representante da nação, haveria de impor-se por si mesma diante dos outros Poderes. Portanto, deveria o Judiciário limitar-se à sua constatação, vedada qualquer exegese, ou, pelo menos, qualquer interpretação que se afastasse dos limites impostos pelo texto. O melhor método teria que ser o lógico-gramatical. A busca do "pensamento do legislador" já seria em si perigosa, apenas se justificando quando visível a imprecisão do texto. O importante, de qualquer forma, seria o respeito integral ao que fora estatuído pelo legislador.
Pois bem, os erros que o princípio acarretava e os abusos supervenientes, levados ao apogeu na Alemanha Nazista, concorreram para que se atenuasse sua força retórica e, mais do que isso, para que sofresse radical cirurgia, estético-reparadora, a ponto de tornar-se quase irreconhecível.
Os primeiros retoques, confessados e requisitados, decorriam da impossibilidade de se prever, para submetê-la a controle prévio, a infinita variedade das situações da vida gregária. Impunha-se a contribuição judicial, ainda que pelo recurso à reta razão, direito natural, analogia, princípios gerais de direito, etc.
O caminho estava aberto para outras incisões, certamente mais profundas. O direito, por exemplo, residiria nos costumes e na jurisprudência neles baseada. Ou se ligaria à idéia de fim, porque instrumento de uma vontade e da luta por sua implantação. Teria que ser interpretado, e aplicado, com base nas circunstâncias reveladoras de seu fim.
Os choques de interesses estariam longe de encontrar a solução, de um modo automático, em regras pré-fixadas. O caso concreto revelaria ao juiz, não raro, a necessidade de "construir" a norma a ele ajustável. Para tanto, nem sempre bastava o emprego dos métodos tradicionais. As constantes transformações da vida social demandavam o reconhecimento de outras fontes, descobertas através da chamada "livre investigação científica".
Um pouco mais e o círculo se completa: acima de tudo os fatos sociais e a relatividade dos valores; a condição psicológica do juiz; a negação da metafísica e de direitos naturais absolutos; o "direito justo" e por isso livre de quaisquer amarras legais.
Explica-se: deixa a lei de ser fetichizada. Desce de seu pedestal. É feita por seres humanos, que não conseguem a tudo abarcar em fórmulas estereotipadas. Que obedecem, além disso, a critérios que logo ficam envelhecidos ou incapazes de se adaptarem às necessidades decorrentes da crescente complexidade da vida comunitária. A situação concreta, geradora do "problema", se mostra incapaz de se encaixar na solução apriorística e pretensamente inserida num plano sistemático.
Por trás de tudo o aspecto voluntarístico da interpretação, em contraste com o seu caráter meramente cognitivo. Assim como o legislador se move com certa liberdade dentro dos quadros da Constituição também o juiz se vê diante de mais de uma possibilidade, a requerer uma opção que vai redundar, inevitavelmente, na criação do direito (norma individual). O mesmo não se poderia dizer do teórico ou doutrinador, que se teria de limitar a apontar os sentidos possíveis da norma geral (KELSEN, Hans. Théorie pure du droit, p. 453/463).
8.3. A interpretação como atividade cognoscitiva
Impõe-se, no entanto, segundo entendemos, uma ressalva. Em sentido estrito, interpretar uma lei é revelar o sentido e alcance de seus termos. É processo que se prende ao conhecimento, e não à vontade. Trata-se apenas de "atividade cognoscitiva através da qual se indaga e se descobre a vontade da lei, aplicando-se um conjunto de regras e princípios" (FRAGOSO, Heleno. Lições de direito penal, parte geral, p. 90). Por outro lado, preceito comezinho de lógica impede se admita que o legislador queira e não queira, ao mesmo tempo. A solução da lei, no fundo, mesmo adaptada às circunstâncias, é uma só. O que ocorre são as naturais dificuldades ligadas ao processo interpretativo: a primeira delas diz respeito ao objeto, à roupagem normativa (problemas de lingüística, por exemplo) e a segunda ao agente da interpretação, que não pode se libertar de suas limitações pessoais, das peculiaridades do caso, dos valores incorporados à sua personalidade.
8.4. Vontade criadora do direito
Daí, portanto, as inevitáveis divergências, o que não elimina um razoável consenso acerca dos chamados "casos típicos". Os debates se cingiriam à "zona cinzenta", de um modo geral. E, como o juiz não pode deixar de decidir, há que se reconhecer que, na prática, nada obstante seu esforço de imparcialidade, de consulta aos valores dominantes, sua vontade acaba sendo criadora de direito. E isto tanto diretamente, no caso concreto, como indiretamente, através da publicação de acórdãos, quando integrante de tribunal superior. Na hora de fundamentar o veredicto não lhe parece difícil inverter o raciocínio. A solução que lhe pareceu correta, ou seu princípio norteador, ao invés de ponto de partida, passa a constituir a conseqüência da premissa fornecida pelo texto da lei.
O direito, diz-se então, quem o faz é a experiência, e não a lógica. Direito se constrói, pedra por pedra, de acordo com as circunstâncias e em função dos valores que a lógica do razoável, do humano, se encarrega de revelar.
Condescendentemente, aceita-se de certa forma o "sistema", porém com a ressalva de não se fechar jamais, porque fruto da capacidade de abstração, de generalização, é verdade, mas sempre como produto inacabado, suscetível de enxertos, adaptações.
Mais. A lei, se injusta, deve ser afastada. Direito injusto, para alguns, deixa de ser direito. Além isso, a lei não enseja a tão propalada segurança jurídica. Sua linguagem, como se viu, está longe de assemelhar-se à linguagem simbólica da matemática ou da lógica formal. As divergências doutrinárias e jurisprudenciais em face do mesmo texto certificam-lhe a imprecisão dos termos, as ambigüidades e incoerências. Declarações internacionais podem ser assinadas por países de ideologias opostas. Seus termos vagos se adaptam a todos os matizes (PERELMAN, Chaïm. Droit, morale et philosophie, p. 71).
As férias de um juiz, um ocasional afastamento, representam derrota ou vitória. E aquele jurisconsulto antes tão citado perde, aos poucos, terreno e autoridade. É lei sociológica: o respeito ao texto normativo é inversamente proporcional à sua petrificação no tempo.
8.5. Julgamento com independência
Reviravolta, pois, no próprio conceito de separação de poderes.
É que julgar, em suma, é optar entre valores. Se se pretende conferir ao Judiciário o "status" de autêntico Poder então não se lhe pode exigir mentalidade e atitude mecanicistas. Todo o poder emana do povo e não apenas o Poder Legislativo. A dignidade da função judiciária impõe-lhe, exatamente, essa independência. O acerto das decisões vai depender principalmente do estofo moral de seus integrantes, assim como a boa lei depende da personalidade dos legisladores.
Quando possível e conveniente, decide-se contra a lei, se esta não atende a elementar princípio de justiça. Recorre-se, destarte, à ficção, destinada a dar aparência de legalidade à sentença: finge-se que a solução se encaixa em determinado preceito, uma boa redefinição de conceitos já se mostrando capaz de atingir o mesmo objetivo.
Outras vezes, nada de encenações. Basta opor o "summum jus, summa injuria" ao "dura lex, sed lex" e assim afastar, com elegância, a decisão incômoda e constrangedora.
Age-se, pois, com ou sem ficção, exatamente como se vem fazendo há milênios, no incessante trabalho de construção do direito.
8.6. Síntese final
Se tivéssemos, agora, de concluir, diríamos em síntese final que:
I – O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, à semelhança de outros Tribunais, e da própria Corte Suprema, vem decidindo conscientemente contra a lei em processos criminais em que, a seu juízo, o valor justiça deva preponderar. Serve-se, para tanto, de dois recursos ou técnicas fundamentais: o da ficção jurídica, destinada a emprestar aparência de legalidade à decisão (ficção quanto à prova dos fatos e ficção quanto a seu enquadramento legal), e o da adesão a preceito não escrito, reputado superior e por isso prevalente. As expressões preferidas, na criação dessa antinomia, são as de política criminal e summum jus, summa injuria.
II – A decisão contra legem constitui fenômeno universal, observável em todas as áreas do direito. Aumenta à medida que o texto legal se petrifica no tempo. Desmentindo, na prática, o princípio retórico da separação dos poderes, nos moldes em que era originariamente concebido, acabou concorrendo para que este sofresse reinterpretação compatível com a nova realidade. Admitida dentro de certos limites, jamais identificáveis, confere ao Judiciário o status de autêntico Poder, com todas as suas conotações políticas, econômicas, sociais e ético-jurídicas.
Capítulo 9
Sumário: 1. Direito como fato histórico. 2. Pluralismo jurídico. 3. Lei, ideologia, intérprete. 4. Decisão contra a lei. 5. Jogo de trocas recíprocas.
1.Direito como fato histórico
No capítulo do crime continuado – um dos temas da dissertação – já chamávamos a atenção para o tópico que mais nos preocupava, referente aos limites da decisão judicial. Ficou evidenciado que, para a resposta, pouco adiantavam as teorias de gabinete, desapegadas de base empírica.
É que o direito, se existe como fato histórico, como realidade palpável, haveria sempre que prevalecer diante de quaisquer outras pretensões apriorísticas, por mais racionais que se apresentassem. Assim sendo, conviria como ponto de partida abandonar qualquer espécie de reducionismo epistemológico e, ao mesmo tempo, buscar nas diversas correntes interpretativas as fontes de inspiração e de explicação, ainda que circunscritas, tantas vezes, ao plano meramente ideológico.
Difícil, com efeito, senão quase impossível, ascender a nível mais elevado, de cunho científico ainda mais rigoroso. É que o direito, quer como fato, quer como norma, quer como valor, a suscitar enfoques relativamente particularizados, refoge em sua síntese, em sua unicidade, em sua dinamicidade, aos rígidos espartilhos de teorias preestabelecidas. O direito é e, não, deve ser.
Tal afirmação, é bom que se ressalte, está longe de incompatibilizar-se com a amálgama didática entre fato, valor e norma. Dizer que o direito é não significa, em absoluto, reduzi-lo ao simples fato. Que fato? O fato histórico da criação legislativa, da decisão judiciária, do comportamento humano em geral. É que tais fatos deixam sempre entrever, com maior ou menor facilidade, sua carga valorativo-normativa. A lei, como norma, está presa a um valor, mas pode e deve ser encarada igualmente como fato concreto, como algo certo e definido no tempo e no espaço. Mesmo que por força de expressão, de sabor metafórico, uma lei nasce, cresce, definha, morre. Uma lei se pesa, se avalia, se julga, se aplaude, se cumpre, se descumpre. Respeitadas certas diferenças, é o que ocorre com a sentença judicial, com a decisão administrativa, com a conduta humana.
Além disso, é preciso ter sempre em mente que os valores, não raro, não passam de abstrações que os próprios fatos se encarregam de revelar em seu conteúdo concreto. Apresenta-se, com estes, a faceta material que arrasta consigo sua nova configuração ou delimitação. O valor, é claro, permanece, mas sempre condicionado, com variável elasticidade, à força contagiante dos próprios acontecimentos, reveladores, por seu turno, uma vez acatados, de uma nova conscientização, de um novo modo de encarar as coisas.
Daí termos admitido, a certa altura, a compatibilidade de uma interpretação "verdadeira" com sua "mobilidade". E não poderíamos pensar de modo diverso. Mero instrumento de controle social, não pode a lei decretar ou impedir o que está fora do seu alcance. Só se controla o que é controlável. Determinados fenômenos de ordem sociológica, à semelhança do que se passa com os fenômenos físicos, escapam a qualquer pretensão normativa. Conflitos sociais, crises econômicas, problemas psicológicos podem ser, quando muito, detectados. A lei, quem sabe, os ameniza, refreia ou acelera. Por si só, é incapaz de resolvê-los, mesmo que os súditos se dêem conta de suas vantagens. Além do mais, o legislador é parte integrante do contexto, o que significa dizer que sofre os seus efeitos, por mais bem intencionado que se revele.
2. Pluralismo jurídico
Impossível, assim, pelo menos em termos práticos, disciplinar por via legislativa, de modo estanque e definitivo, matérias intrinsecamente informes, cambiantes, voláteis. É por isso mesmo que o próprio legislador, se apercebendo do processo, e diante de outras dificuldades, se limita em muitas áreas a usar de fórmulas por demais vagas e abstratas, numa tentativa de abranger, em constante atualização, situações na verdade imprevisíveis. É assim que os sempre citados conceitos de "bons costumes", "mulher honesta", "pudor" etc. se adaptam sem maiores problemas tanto aos novos fatos como à letra e ao espírito da lei. Objetivamente: o mesmo evento, em épocas diversas, é capaz de ofender ou não a norma, sem que esta sofra o menor arranhão no que concerne à sua correta exegese.
Outras vezes, todavia, seja por defeito de técnica, seja principalmente por expressa intenção de impor seu próprio ponto de vista, emprega o legislador fórmulas bem menos maleáveis. No campo criminal, por exemplo, fixa os limites das penas e o início etário da responsabilidade; nega valor escusante ao erro de direito; disciplina o aborto, o homicídio eutanásico, as formas qualificadas de crime etc.
Não importam as razões que o levam a agir dessa forma. O que importa é saber que, paralelamente às suas razões, subsistem outras igualmente ponderáveis. Razões que se corporificam e se concretizam na própria realidade social. Pluralismo fático, pluralismo ético, pluralismo jurídico-normativo.
Emerge do contexto a figura do juiz, encarregado exatamente – é sua função – de dirimir os conflitos. Conflitos aqui e agora, localizados, com ingredientes e matizes próprios. O posicionamento do legislador constitui apenas um dos dados, embora o mais importante, em regra, entre todos os que exsurgem do imenso tabuleiro. Nenhum deles há que ser desprezado, mormente quando se consubstanciam nas condições materiais que serviriam de suporte e justificativa para uma das possíveis soluções de ordem prática. Preferível, às vezes, seguir o ritmo silencioso da evolução ético-social; ouvir os bastidores e, não, o palco iluminado, mas ilusório, do rígido esquema legislativo.
Facílimo compreender que, por detrás de tudo, ou como denominador comum, está o homem. Legislação, sentença, comportamento: tudo constitui, no fundo, obra humana, criação humana.
Portanto, quem quiser saber o que é o direito, consulte o que o homem faz. Olhe em seu redor. Se por acaso encontra leis que definem, ou pensam definir, o que é obrigatório, facultado ou proibido, convém continuar observando. Isto é, convém verificar se seus destinatários e, especialmente, os órgãos encarregados de dar-lhes execução, agem em tal sentido.
É claro que, nesse mister, entram em cena aparatos mais rigorosos. A começar, por exemplo, com o problema da linguagem natural, utilizada pelo legislador. Estaria o intérprete capacitado a captar a mensagem com extrema precisão, como numa equação matemática? Não, respondem os lingüistas. As expressões da lei, afora tantos outros pormenores, se ressentem de vagueza e de ambigüidade, embora se admita a existência de zonas de luminosidade (em que é bastante clara a aplicação do termo), de nebulosidade (zona cinzenta, controvertida) e de escuridão (em que é visível a exclusão do termo).
Pois bem, se esta era a posição dos lingüistas, deveriam parar por aí. Esse posicionamento encontrava ressonância no exame crítico do instrumental do jurista. Tornavam-se então compreensíveis as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais, mormente quando ligadas às "zonas cinzentas".
Posturas mais livres, todavia, teriam que ser rechaçadas. Vislumbrar meros significantes nas palavras da lei e, na seqüência, afirmar o caráter totalmente retórico dos princípios da separação dos poderes e da tipicidade, dentre outros, assim como não enxergar qualquer sentido na expressão "decisão contra a lei" é assumir, em nome da coerência, um radicalismo incoerente. Seria preferível negar a existência de zonas de luminosidade e de escuridão e transformar tudo em zona de nebulosidade. Caberia, no entanto, perguntar: que gênero de palavras usam os analistas de linguagem? Por que pretendem que suas explicações podem tudo aclarar, recusando porém a mesma chance aos órgãos legiferantes?
Indagações desse tipo, se são válidas no plano teórico, crescem de importância quando se parte para o exame e conseqüente constatação de uma flagrante e substancial uniformidade interpretativa dos compêndios em face de casos hipotéticos ou concretos de fácil assimilação. Na área do direito penal, por exemplo, tudo fica mais nítido. Não parece aceitável que o mais simples dos mortais, diante do enunciado descritivo da legislação, ainda faça confusão entre os casos corriqueiros de furto, estupro e homicídio.
Admissível, pois, a verificação de uma zona fronteiriça no campo de aplicação do direito sem que se tome partido antecipadamente, porque insuscetível de comprovação científica, por esta ou por aquela corrente hermenêutica. Entretanto, aceitar outras zonas, de aquém e de além-fronteira, e assim mesmo transferir para o intérprete toda a responsabilidade no preenchimento do conteúdo da lei, que se apresentaria, sempre, como mero significante, é desconhecer - data venia - a realidade prática do processo comunicacional.
Assim, os princípios da separação dos poderes e da reserva legal não se revestem de caráter totalmente retórico, o que não implica conceder-lhes, necessariamente, caráter científico. Como simples regras de aplicação do direito, inseridas portanto no âmbito das instituições, não podem merecer tal epíteto. Sob esse ângulo, têm e terão sempre um embasamento político-filosófico. Agora, a questão de se saber se podem ser, ou são, efetivamente cumpridos, comporta uma abordagem científica, confiada de modo particular à lingüística e à sociologia. Conforme já ressaltei, a resposta é parcialmente positiva, embora volte a reconhecer o tom polêmico da proposição.
3. Lei, ideologia, intérprete
A verdade é que essas premissas teórico-metodológicas no campo da lingüística se confirmavam e se renutriam, a cada instante, na práxis. Conviria procurar outros elementos acaso concorrentes para uma explicação do fenômeno decisório.
Com efeito, uma vez analisados, como modelo, os acórdãos criminais do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, com ênfase para aqueles que se afastavam, conscientemente, quer das lições elementares da doutrina, quer de seus próprios precedentes judiciais, revelou-se convincente a presença de fatores de ordem filosófico-psicológica e histórico-social. Linguagem da lei, personalidade do juiz e valores dominantes entrecruzavam-se dialeticamente na apreensão explicativa da sentença. Quanto maiores as características de vagueza e de ambigüidade, maiores as chances de projeção, na exegese da lei e no veredicto, da personalidade do juiz e dos valores predominantes. Na medida, porém, em que diminuem os defeitos assinalados também se reduz a parcela de contribuição judicial, seja pessoalmente, seja como veículo de novas idéias ou estruturas ético-sociais. Chega-se mesmo a um ponto em que se verifica, em regra, nos casos de fácil assimilação, o prevalecimento da solução genérica preestabelecida, detalhe que não pode causar espanto num sistema jurídico de base nitidamente legalista. Segurança jurídica e relevância da justiça formal, como valores, se aglutinam para justificar o alinhamento judicial, sem prejuízo, é claro, como ocorre em todas as demais situações, de substratos mais profundos capazes de responder à questão com maior precisão ou autenticidade científicas.
Pois bem: nem sempre, assim mesmo, a lei é cumprida à risca. Desnecessário repetir os argumentos expendidos. Veladamente, pela técnica da pesquisa do "espírito" da lei, ou pelo recurso à ficção; e abertamente, pelo reconhecimento da prevalência de princípio não escrito, inconciliável com o princípio legal, resiste o magistrado às soluções estereotipadas para impor, em substituição, o ponto de vista que considera mais adequado.
Essa liberdade, como simples constatação empírica, tende a aumentar com o passar dos anos. É claro, no entanto, que pode concorrer – e concorre efetivamente – com outros fatores circunstanciais não negligenciáveis, alguns deles com força suficiente para anular seus efeitos. Mas não foi no dia seguinte ao da promulgação dos códigos napoleônicos que se forjaram as figuras do abuso de direito, do estado de necessidade, do erro invencível, do crime continuado e tantas outras. A propósito, não é o tempo em si, isoladamente, que propicia essa maior liberdade, mas a defasagem por ele acarretada entre os valores do texto e os valores novos, atrelados a uma sociedade em mudança.
Deduz-se daí, de qualquer forma, a enorme importância acordada à personalidade do juiz e à ideologia disseminada no meio social. O respeito à lei, com efeito, também se explica pela formação funcional, pelo medo ao ridículo e, inclusive, pelo reconhecimento da competência de outro poder para o equacionamento de problemas de extrema complexidade. Atende esta última hipótese, como já dissemos, a um autêntico lenitivo psicológico. Portanto, quando surge ainda assim o voluntário afastamento, a eliminar do mundo forense o puro raciocínio de lógica formal, há que se entregar o cetro ao magistrado, depositário e artífice do direito concreto, no âmbito contencioso.
Negar, na sentença, a influência de fatores psicológicos, é negar a própria psicologia e a condição humana do juiz. Negar a repercussão dos valores que abraça e das idéias diluídas no meio social é transformá-lo, gratuitamente, em máquina pensante, programada, o que constitui outro absurdo.
O magistrado possui dramas de consciência, que se tornam patentes quando tem que enfrentar a antinomia entre os valores da lei e aqueles que aceita pessoalmente. Em certas oportunidades, vai ao ponto de confessá-los na sentença, onde manifesta enfim sua preferência ocasional. As mesmas situações, anos antes, ou em outra latitude, receberiam no entanto tratamento diferenciado.
4. Decisão contra a lei
É claro que nem tudo o que não está escrito corresponde a algum princípio contrário à lei. Não é sem razão que, no afã de disciplinar a matéria, se permite com as exceções de praxe o recurso aos princípios gerais de direito, costumes, analogia etc. É o que se poderia chamar de tentativa de ampliação lógico-sistemática do critério legislativo. Haveria, então, princípios não escritos autorizados pelo legislador, ínsitos ao sistema. Princípios implícitos, praeter legem, correlacionados com as decisões do mesmo nome.
Com isso, volta-se ao problema, gravíssimo, das zonas de luminosidade, nebulosidade e escuridão, transferidas para um plano bem mais abstrato. Princípios praeter legem seriam, em teoria, aqueles princípios inferidos do sistema legal ou, então, aqueles princípios cuja evidência axiomática dispensa sua explicitação nos textos. Como identificá-los? Inevitável, na prática, a dose mínima de subjetividade, à semelhança do que ocorre quando o intérprete preenche de conteúdo os textos vagos e ambíguos. Mas o esforço é dobrado: nunca estão expressos, é preciso "descobri-los" e, além disso, fixar-lhes o sentido e alcance. Tarefa difícil, ficando sempre a sensação de dúvida e de incerteza quanto a seu exato posicionamento em face da lei. Ninguém contesta que podem servir de cobertura ou disfarce para uma decisão que, na realidade, se revelaria contra legem.
Por sinal, seria mesmo admissível essa categoria teórica intermediária? Seriam aceitáveis as categorias opostas "decisão contra a lei" e "decisão de acordo com a lei"?
Ora, a partir do instante em que se apregoa a capacidade de seu artífice – o próprio legislador – de atribuir à lei, previamente, um certo significado, um certo conteúdo, a implicar o caráter cognoscitivo da interpretação, já não é mais possível fugir do aludido esquema conceitual. E, depois, mais uma vez a observação dos fatos vem confirmar a validade da proposição. Quer dizer, inexiste ao menos o consolo, por parte dos que refutam a dicotomia, de ver sua teoria ratificada no mundo empírico do comportamento humano.
5. Jogo de trocas recíprocas
Nas razões das sentenças, analisadas em conjunto ou separadamente, devem ser buscadas as motivações expressas ou implícitas. Mais ainda: no momento histórico, nas circunstâncias de toda ordem, na filosofia de vida do juiz e, é claro, na estrutura da própria sociedade. Na verdade, os fatores se interpenetram mutuamente. Inútil apontar, em novo dogmatismo cientificista, uma "causa" única determinante. Pode-se, quando muito, partir para esquematizações didáticas, mas na medida em que se ganha em extensão se perde em profundidade. O direito, como fato concreto, é refratário às grandiloqüentes construções teóricas. Essencialmente dinâmico, acompanha em regra as transformações econômico-sociais, assim como para elas contribui, num contínuo jogo de trocas recíprocas.