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Cláusulas pétreas, peculiaridades, alcance da imutabilidade e inovações na CF de 1988

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Agenda 19/06/2009 às 00:00

6. Alcance da proibição de abolir normas constitucionais pela limitação material.

A extensão da proibição de reforma, prevista no parágrafo 4° do art. 60 da Constituição Federal de 1988 (Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: ...) é questão que merece bastante atenção, principalmente pelo sentido a ser adotado por sua última expressão (abolir). Assim, o tema será abordado em dois enfoques, em uma acepção restritiva e, em segundo momento, entendendo-se com aplicação ilimitada.

6.1. Alcance restrito da proibição de abolir

A proibição de emendas constitucionais, caso de entendida a expressão "tendente a abolir" no sentido literal (interpretação gramatical ou literal), atinentes a atingir alguma das normas previstas no art. 60, § 4°, da CF/88, pode ser interpretada apenas no sentido de tornar defeso sua abolição, mas admitindo alterações, desde que não venham a extingui-las.

Como exemplo, uso a hipótese da proibição da pena de morte, a qual só é aceita, excepcionalmente, no caso de guerra declarada, nos termos do art. art. 5º inciso XLVII, alínea "a", combinado com o art. 84, inciso XIX, ambos da CF/88. Na eventualidade de haver uma proposta de emenda constitucional com a finalidade de possibilitar a pena de morte aos condenados por crime de latrocínio, excluindo tal caso da proibição, pode-se afirmar que não haverá uma abolição dessa garantia individual, mas, por certo, restará caracterizada uma redução de sua incidência.

Outro entendimento para defender a tese da imutabilidade restrita é no sentido de sustentar que a sociedade, com o passar do tempo, sofre alterações em seu modo de vida, em seus valores, etc., por força de vários fatores, dentre eles a evolução científica e as alterações sociais. Grande exemplo é que, por muito tempo, não havia igualdade de direitos entre o homem e a mulher, nem direito a voto tinha, o que já não ocorre nos dias atuais. Pode-se até falar em persistentes distinções fáticas, alegando-se que a maioria dos cargos de chefia em empresas ainda são ocupados por homens, mas para o direito é observada uma plena igualdade de direitos e obrigações, o que é regulado no art. 5°, inciso I, da CF/88, sendo que tal isonomia, mesmo ainda não se refletindo perfeitamente na vida profissional, certamente já trouxe grandes alterações em todos os aspectos. Esses fatores podem indicar que não se deve ter regras inalteráveis, tendo em vista que impossibilitam o direito de acompanhar as modificações ocorridas na sociedade.

Aliás, esse entendimento é contra o próprio limite absoluto de revisão de certas regras constitucionais, pois nenhuma norma poderia impedir o Direito de acompanhar as mudanças sociais.

Há, ainda, uma terceira percepção sobre o tema, sustentando a possibilidade de o legislador revisional ultrapassar os limites absolutos mediante uma técnica chamada de "dupla revisão". Referido método dar-se-ia da seguinte forma: no primeiro momento a revisão incidiria sobre as próprias normas imutáveis, eliminando ou alterando os limites e, em um segundo procedimento, realizar-se-ia a mudança que antes era impossibilitada.

Essa técnica, na verdade, apresenta-se como uma burla ao sistema jurídico, tanto que, apesar de o doutrinador J.J. Gomes Canotilho referir, com propriedade, a possibilidade de sua ocorrência, em seguida, afasta sua aplicação, conforme trechos que transcrevo de seus ensinamentos, claro que tratando da Constituição portuguesa [18]:

(...)

A existência de limites absolutos é, porém, contestada por alguns autores, como base na possibilidade de o legislador de revisão poder sempre ultrapassar esses limites mediante a técnica da dupla revisão. Num primeiro momento, a revisão incidiria sobre as próprias normas de revisão, eliminando ou alterando esses limites; num segundo momento, a revisão far-se-ia de acordo com as leis constitucionais que alteraram as normas de revisão. Desta forma, as disposições consideradas intangíveis pela constituição adquiriram um caráter mutável, em virtude da eliminação da cláusula de intangibilidade operada pela revisão constitucional. Assim, os limites de revisão constantes dos arts. 286.° §§ da Constituição poderiam ser ultrapassados se o legislador de revisão abrogasse, em primeiro lugar, estas normas, e, posteriormente, estabelecesse as alterações julgadas necessárias, de acordo com a lei de revisão sobre normas de revisão.

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A tese do duplo processo de revisão, conducente à relatividade dos limites de revisão, parece-nos de afastar. Já atrás, ao tratarmos da tipologia das normas constitucionais, tínhamos para o facto de as normas de revisão serem qualificadas como normas superconstitucionais. Elas atestariam a superioridade do legislador constituinte, e a sua violação, mesmo pelo legislador de revisão, deverá ser considerada como incidindo sobre a própria garantia da Constituição. A violação das normas constitucionais que estabelecem a imodificabilidade de outras normas constitucionais deixará de ser um acto constitucional para se situar nos limites de uma ruptura constitucional. Neste caso, sim, as disposições dos arts. 286.° e seguintes serão simples proibições ineficazes em face de alterações constitucionais directamente dirigidas à ruptura constitucional. Por outro lado, a supressão dos limites de revisão através da revisão pode ser um sério indício de fraude à Constituição (fraude à la Constitution, Verfassungsbeseitigung) de que falaremos a seguir. Finalmente, em termos jurídico-constitucionais, não se compreende bem a lógica da dupla revisão ou procedimento de revisão em duas fases. As regras de alteração de uma norma pertencem, logicamente, aos pressupostos da mesma norma, e daí que as regras fixadoras das condições de alteração de uma norma se coloquem num nível de validade (eficácia) superior ao da norma a modificar. Acresce que o princípio básico atrás referido sobre as fontes de direito (cfr. supra) vale também aqui: nenhuma fonte pode dispor do seu próprio regime jurídico arrogando-se um valor que constitucionalmente não tem.

De qualquer modo, a impossibilidade da dupla revisão não é um elemento impeditivo de alterações substanciais, constitucionalmente legítimas. Os limites materiais devem considerar-se como garantias de determinados princípios, independentemente de sua concreta expressão constitucional, e não como garantias de cada princípio na formulação concreta que tem na Constituição.

6.2. Alcance ilimitado da proibição de abolir

Conforme já esclarecido no início do presente estudo, o Poder Constituinte originário, com a imposição de limites materiais expressos ao Poder Constituinte derivado, impossibilitando-o de deliberar sobre propostas de emendas tendentes a abolir quaisquer das matérias constantes no art. 60, § 4º, incisos I a IV, da CF/88, teve como finalidade evitar alterações de pontos entendidos como fundamentais para a Carta Magna, de modo que não se modifique sua essência em revisões futuras. Por isso, parece que a concepção da palavra "abolir" que se apresenta com maior afinidade ao anseio do constituinte originário é no sentido de impossibilitar qualquer alteração das chamadas cláusulas pétreas, pois uma abolição parcial já estaria alterando parte de algo que se pretende evitar que seja modificado.

Essa, inclusive, é a posição do doutrinador Ives Gandra Martins [19], na lição que segue:

(...)

O segundo aspecto diz respeito à expressão "tendente a abolir". Muitos vêem na referida expressão apenas um limite máximo (abolição) e não um limite médio (manutenção das cláusulas pétreas ou alteração). Para estes uma alteração conceitual de cláusula pétrea, sem aboli-la, não estaria vedada pela Constituição. Acrescentam, tais intérpretes, a inteligência de que o nível de generalidade a que se referem os quatro incisos do § 4º se interpretados de forma elástica tornaria toda a Constituição imodificável, o que seria um contra-senso.

Tenho para mim que a melhor interpretação é aquela pela qual qualquer "alteração" implica abolição do "dispositivo" alterado, o que vale dizer, não só cuidou o legislador supremo em "abolição completa" de qualquer das cláusulas, mas também da abolição parcial por alterações tópicas dos referidos privilégios.

Desta forma, qualquer alteração implicaria uma abolição parcial.

O Supremo Tribunal Federal, na primeira ação declaratória de constitucionalidade, houve por bem realizar a conformação genérica das cláusulas pétreas para a concreção fática, desgeneralizando sua concepção abrangente e restringindo-as ao exame factual de caso a caso para saber se este ou aquele direito estaria ou não protegido pelos incisos do § 4º.

E na ADIn sobre o IPMF houve por bem considerar que nem todos os direitos e garantias individuais significam cláusulas pétreas na medida em que estas seriam apenas aquelas intrinsecamente vinculadas aos direitos fundamentais.

A matéria, todavia, ainda é objeto de intensa reflexão acadêmica.

Seguindo o mesmo pensamento, transcrevo os ensinamentos de José Afonso da Silva [20]:

(...)

A Constituição, como dissemos antes, ampliou o núcleo explicitamente imodificável na via da emenda, definindo no art. 60, § 4º, que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: - a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias individuais".

É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem que "fica abolida a Federação", ou "a forma federativa de Estado"; "fica abolida a República", ou "fica proclamada a Monarquia"; "fica abolido o voto direto"; "passa a vigorar a concentração de poderes"; ou, ainda, "fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação"; ou " o habeas corpus", "o mandado de segurança". A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa ou de comunicação, ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe, ainda que remotamente, "tenda" (emendas "tendentes" – diz o texto) para sua abolição.

Assim, por exemplo, a autonomia dos Estados Federados assenta na capacidade de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração. Emenda que retire deles parcela dessas capacidades, por mínima que seja, indica tendência a abolir a forma federativa de Estado. Confiar a qualquer dos Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o princípio da separação dos poderes.

De outra parte, é certo afirmar que a Lei Maior de um sistema jurídico não pode ser estagnada, de modo a não acompanhar as mudanças que ocorrem na sociedade pelo decorrer dos anos. Por outro lado, também é correto afirmar que esse conjunto de normas superiores deve, necessariamente, conceder um mínimo de segurança jurídica, estando tal fator bem exemplificado pela preocupação do legislador constituinte originário ao regular, dentre os direitos individuais, no art. 5º, inciso XXXVI, da CF/88, que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

Assim, de modo a equacionar essas duas necessidades a serem observadas, parece que a melhor solução que se apresenta é exatamente a escolhida pelo Poder Constituinte originária na elaboração de nossa atual Carta Magna. De um lado, há espaço para que certas normas sejam alteradas pelo legislador constituinte derivado, o que permite o acompanhamento, por nossa Lei Maior, das mudanças que venham a ocorrer na sociedade. De outro lado, definiu normas que não podem ser abolidas, em face da importância que representam e com o fim que se mantenha a essência da Constituição, o que, conseqüentemente, confere maior segurança jurídica em certas matérias, mais especificamente naquelas compreendidas pela limitação material.

Ainda, há certos direitos ou princípios que, mesmo decorridos vários anos, até séculos, apresentar-se-ão com a mesma importância e aplicação. Exemplo dessa afirmação é o direito à vida e todos os demais que dele decorrem, como o direito à saúde. Ora, se não há vida, não há existência e nada há a ser reclamado, questionado.

Outro fator importante a sustentar o sentido amplo da proibição de abolir certas normas constitucionais está nos interesses políticos presentes em certos casos do processo legislativo. Não há como negar a existência de lobistas na elaboração de leis, representando interesses de determinado grupo, não da sociedade em geral. Essa pressão também pode ocorrer na formação de projetos de emendas constitucionais, ainda que mais difícil tal atuação nessa hipótese, em face do maior rigor do processo legislativo no caso. Por tal motivo, apresenta-se pertinente a preocupação de preservar certas normas constitucionais, em razão de sua importância. Por isso, necessário que a proibição de serem extintas as cláusulas pétreas abranja um sentido lato, alcançando tal vedação também a impossibilidade de serem modificadas parcialmente, impossibilitando, assim, que venham a sofrer alteração por força de interesses que não representem o anseio da sociedade como um todo.


7. Possibilidade de ampliação de normas constitucionais compreendidas pela limitação material.

Importante, mais uma vez, ter em consideração a preocupação do Poder Constituinte originário ao impor limites ao constituinte derivado, tendo como intuito, conforme já salientado, preservar pontos tidos como fundamentais para a Carta Magna, evitando a modificação de sua essência por revisões futuras. Ainda, também necessário registrar que essa limitação, conforme consta no art. 60, § 4º, da CF/88, impede propostas de emendas tendentes a extinguir, ou seja, tanto a finalidade do constituinte originário, como a expressão usada na redação que regula a limitação material não vedam eventual ampliação de normas compreendidas pelas cláusulas pétreas.

Aliás, exemplo de tal conclusão é o inciso LXXVIII do art. 5º, da nossa Carta Magna, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o qual assegura a todos a razoável duração do processo, seja judicial ou administrativo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Por óbvio, com tal inclusão, teve-se ampliação dos direitos e garantias individuais, que é uma das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88).

Claro que, pelo simples fato de tal ampliação ter sido realizada pelo legislador constituinte derivado, uma vez que tal norma passou a ser inserida dentre as cláusulas pétreas, não mais pode ser abolida, em face da limitação material imposta pelo Poder Constituinte Originário.

Pelas razões já expostas, apesar de tal situação ainda não ter ocorrido em nossa Lei Maior vigente, parece não haver óbice para que se amplie, de forma direta, as hipóteses de cláusulas pétreas, ou seja, nada há a indicar que o Poder Constituinte derivado esteja proibido de incluir, através de emenda constitucional, mais alguma matéria dentre aquelas já existentes nos incisos I a IV do § 4º do art. 60 da CF/88. Assim, apresenta-se possível, por exemplo, a aprovação de emenda constitucional para que passe a constar o inciso V na referida norma constitucional, tendo como conteúdo "a forma de governo Republicana". Todavia, mister ressaltar que a matéria a ser inserida dentre as cláusulas pétreas não pode apresentar conteúdo antagônico com aquelas já existentes, pois isso configuraria, na verdade, um meio fraudulento de burlar a proibição imposta pelo Poder Constituinte Originário.

Sobre o autor
Evandro Luís Falcão

analista judiciário no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, especialista em Direito Público pelo IDC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Evandro Luís. Cláusulas pétreas, peculiaridades, alcance da imutabilidade e inovações na CF de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2179, 19 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13021. Acesso em: 19 mai. 2024.

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