A atividade jurisdicional é forma de manifestação da soberania do Estado, dirigida especialmente à solução de controvérsias, a fim de aplicar o direito objetivo a casos trazidos ao Poder Judiciário, poder estatal que detém o monopólio de tal atividade.
E nesta atividade, de atuar a lei, como colocado como Chiovenda, a reclamação bem poderia ser inserida como exercício de atividade jurisdicional. Ao trazer uma lide ao Poder Judiciário, as partes esperam dele (e devem exigir) uma resposta final, apta a fazer coisa julgada, para a questão discutida. Todos os mecanismos pelos quais o Estado-Juiz atuará se inseririam como atividade jurisdicional, que assim poderia ser conceituada lato sensu.
A reclamação (que ganha, muitas vezes, o adjetivo constitucional, por estar prevista na carta magna) tem por objetivo a preservação da competência e garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l), do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, f) e dos Tribunais de Justiça Estaduais e do Distrito Federal e Territórios (admitidas em decorrência de interpretação constitucional do Supremo) se instaura quando há usurpação de atribuição de um destes Tribunais.
Como a resposta do Poder Judiciário às questões a ele trazidas devem ser dadas com caráter de definitividade e certeza jurídica, deve haver obediência a todo o regime jurídico processual para tanto. Por isso se criou tal instrumento, de preservação da autoridade dos Tribunais superiores e estaduais.
Ocorre que a Reclamação, como ressaltam diversos doutrinadores, não soluciona uma lide, não é ajuizada com o objetivo de estipulação de uma norma jurídica individual.
Ada Pelegrini Grinover, citada pela Ministra Ellen Gracie no julgamento da ADI 2.212-1/CE, ressalta que "não se trata de ação, uma vez que não se vai discutir a causa com um terceiro". Não há aquele caráter de substitutividade – vontade concreta da lei – tampouco aptidão para produzir coisa julgada – que se faz em relação ao direito material.
O próprio Ministro Carlos Velloso, no julgamento acima referido, foi claro em seu entendimento, de que "na reclamação não há autor e não há réu, não há pedido, não há contestação, não há, portanto, litígio". Ausentes os clássicos elementos do conceito de ação.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI retrocitada, decidia a respeito da competência legislativa da Constituição estadual do Ceará em estabelecer a reclamação perante o Tribunal de Justiça local; alegava-se violação ao artigo 22 da Constituição Federal, que estabelece a competência da União para legislar sobre direito processual.
O Supremo entendeu constitucional tal dispositivo, entendendo que "a natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, XXXIV da Constituição Federal".
Ver a reclamação como ação ou recurso implicaria em impossibilitar a adoção de tal instituto nos Estados e no Distrito Federal. Preferiu o pretório excelso, então, colocar o instituto como exercício do direito de petição.
A preocupação da Ministra Elen Gracie, relatora, fica clara com a seguinte passagem de seu voto:
Não vejo porque não se possa, no âmbito estadual, em nome do princípio da simetria, dotar os Tribunais de Justiça desse instrumento, para garantir a autoridade das suas decisões que, não impugnadas pela via recursal, tenham ali mesmo transitado em julgado. Ou então para preservar a sua competência, eventualmente invadida por ato de outro Juízo ou Tribunal local.
Todavia, difícil seria qualificar a Reclamação como "mero" exercício do direito de petição. A distinção entre o direito de petição e o de ação - que retira do primeiro qualquer caráter jurisdicional - é o fato de que, apesar de previsto na Constituição como direito individual, tem cunho essencialmente informal. Não se exige advogado, independe de comprovar-se qualquer lesão a interesse, bastando simples requerimento perante autoridade pública. Candido Rangel Dinamarco (A reclamação no Processo Civil Brasileiro) ataca veementemente tal qualificação, ao afirmar "absurdo pensar em medidas puramente administrativas capazes de banir a eficácia de exercício de jurisdição".
A citação, sem maiores explicações, da decisão do STF, poderia abrir a possibilidade de que o enquadramento da reclamação como manifestação do direito de petição lhe retiraria qualquer caráter jurisdicional.
Porque, como ensina o próprio Dinamarco, "cassar uma decisão é típica atividade jurisdicional", medida provocada por parte interessada, com decisão que incidira sobre um processo jurisidicional.
Não há como colocar, assim, a reclamação como medida não jurisdicional, de índole essencialmente constitucional, com algumas características bem ressaltadas por Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha (Curso de Direito Processual Civil, vol. 3, fl. 332), ao comentarem o julgamento do Supremo:
Se é certo que uma interpretação analógica poderia autorizar a reclamação perante tribunais de justiça, até como mecanismo para dar efetividade ao processo, não havia necessidade de tomar como premissa a natureza de simples petição para a reclamação;
Há atividade jurisdicional no julgamento de uma reclamação. Sua previsão constitucional explícita (para o Supremo Tribunal Federal e para o Superior Tribunal de Justiça) ou implícita (como nos casos dos Tribunais estaduais, como decorrência de poder implícito), a torna ação constitucionalmente assegurada, mas que não lhe retira de atividade típica do Poder Judiciário.
Ovídio A. Baptista da Silva (Curso de Processo Civil, vol. 1, 7ª Ed., fls. 447, 451/452) e Dinamarco, a título de conclusão, indicam que a reclamação pode ser incluída entre as medidas jurisdicionais, não recursais, de impugnação de decisões judiciais; remédios processuais, por conclusão.
Para a adoção do instituto da reclamação perante os Tribunais Estaduais, bastaria o fundamento apontado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, manifestado no julgamento da ADI 2.212/CE:
Não estou convencido de que a posição singular do Supremo Tribunal, no ordenamento judiciário brasileiro, permaneça como fundamento necessário do instituto da reclamação, a partir mesmo do momento em que a Constituição de 1988 também atribui o mesmo poder ao Superior Tribunal de Justiça que, embora em grande parte de sua competência não esteja sujeito à jurisdição recursal ordinária do Supremo, em outra parte está. Nesse contexto constitucional, não diviso a inconstitucionalidade de que se dê ao órgão de cúpula da Justiça estadual o poder que a reclamação outorga.
Assim, se a reclamação visa preservar competência e garantir autoridade, basta que o órgão judiciário tenha algum outro como seu subordinado hierárquico. A reclamação é decorrência lógica do escalonamento do Poder Judiciário, de forma que sua adoção, longe da discussão a respeito de competência legislativa, decorre da necessidade de se garantir inclusive a uniformidade do entendimento jurídico sobre questões trazidas ao Judiciário; é poder implícito necessário ao exercício de sua competência hierárquica.
O Ministro Cezar Peluso, no julgamento do RE 405031/AL, fez consideração importante a respeito da importância da Reclamação:
Só lamento que os tribunais federais não tenham nenhum meio para fazer prevalecer a autoridade das suas decisões. Acho que este é tema sobre o qual a Corte deveria repensar, mas, em todo caso, como é assentada a jurisprudência, vou, com essa ressalva, acompanhar o voto do eminente Relator.
Por fim, sedimentado o papel e a natureza da Reclamação, cumpre salientar a tendência atual do Supremo, em valorizar e objetivar ainda mais o instituto:
A reclamação constitucional – sua própria evolução o demonstra – não mais se destina apenas a assegurar a competência e a autoridade de decisões específicas e bem delimitadas do Supremo Tribunal Federal, mas também constitui-se como ação voltada à proteção da ordem constitucional como um todo. A tese da eficácia vinculante dos motivos determinantes da decisão no controle abstrato de constitucionalidade, já adotada pelo Tribunal, confirma esse papel renovado da reclamação como ação destinada a resguardar não apenas a autoridade de uma dada decisão, com seus contornos específicos (objeto e parâmetro de controle), mas a própria interpretação da Constituição levada a efeito pela Corte. Esse entendimento é reforçado quando se vislumbra a possibilidade de declaração incidental da inconstitucionalidade de norma de teor idêntico a outra que já foi objeto de controle abstrato de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal.
(Rcl 5470/PA, rel. Min. Gilmar Mendes)
Esse entendimento vai de encontro ao que colocado por Dinamarco (em artigo já citado), quando esse coloca que "só se considera transgressiva da autoridade de um tribunal a decisão que trouxer uma disposição prática conflitante com a que ele houver emitido e não a que simplesmente adotar como razão de decidir uma tese jurídica diferente, sem infirmar ou questionar o preceito contido no decisório da primeira sentença."
De forma que, em se tratando de jurisdição constitucional, até mesmo os fundamentos das decisões tomadas em controle abstrato (motivos determinantes) vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário, em clara derrogação da previsão do artigo 469, I, do CPC.
A reclamação veio ainda, com a Reforma do Judiciário, levada a efeito pela EC 45/2004, adquirir outro importante papel: garantir a eficácia dos enunciados das Súmulas Vinculantes, editadas pelo Supremo Tribunal Federal para questões constitucionais de extremo relevo. Seu cabimento é amplo, bastando que qualquer decisão – judicial ou administrativa – tenha aplicado indevidamente seu teor.
Fica reforçado, assim, o caráter jurisdicional do instituto, uma vez que não está mais dirigido unicamente a cassar uma decisão judicial, podendo também ter por objeto da anulação de um ato administrativo.
Com isso, a importância da Reclamação, especialmente na jurisdição constitucional, fica extremamente ampliada, sendo o meio mais ágil para garantir a autoridade da interpretação dada pelo Pretório Excelso ao texto constitucional.
Em casos assim, há nítida atividade substitutiva da vontade das partes, de aplicação de lei (Constituição) a casos concretos, o que torna a reclamação instituto importantíssimo para o processo brasileiro, cada vez mais impregnado de valores constitucionais.