Apesar da pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cristalizada nas Súmulas n° 70, n° 323 e n° 547, o Fisco federal, estadual e municipal continua insistindo em suas práticas arbitrárias, geralmente alegando a necessidade de combater as fraudes dos contribuintes. Tanto a Receita Federal, como a Secretaria de Fazenda, e a Secretaria de Finanças do Município, costumam fazer exigências descabidas, ou impor determinadas restrições aos contribuintes que se encontrem em débito, ou que o Fisco unilateralmente entende que estão em débito, como forma indireta de obrigar o contribuinte a pagar um tributo, freqüentemente indevido, sob pena de sofrer um prejuízo maior, criado através de normas inconstitucionais, porque atingem os princípios da legalidade, da livre iniciativa e da liberdade de exercício de profissão, ou de atividade econômica. Assim, se o contribuinte está em débito, ou se o Fisco entende que o contribuinte está em débito, não lhe será permitido comerciar, não poderá inscrever-se no CGC, nem no cadastro do ICMS, ou não lhe será concedido o Alvará, etc.
No âmbito federal, existe a Instrução Normativa n° 82/97, que substituiu a de n°112/94, e que estabelece:
Art. 5°- "O deferimento de pedido de inscrição de matriz, no CGC, deverá ser precedido da verificação do cumprimento de obrigações tributárias, principais e acessórias, junto à SRF, da pessoa física responsável perante a SRF e dos integrantes do Quadro Societário, pessoas físicas ou jurídicas.
§1º- Não será concedida inscrição no CGC quando as pessoas físicas e jurídicas citadas no caput tiverem:
a)deixado de cumprir qualquer obrigação tributária principal ou acessória;
b) participação em outra empresa na mesma situação da alínea anterior".
No Estado do Pará, existe a Instrução Normativa n° 6, de 20.11.95, cujo art. 2º estabelece que: "Não será concedida inscrição no Cadastro do ICMS, quando os sócios ou titulares (pessoa física ou jurídica) tiverem participação em outra empresa ou forem titulares de firma individual que tenha deixado de cumprir qualquer obrigação principal ou acessória".
Em Belém, apenas para exemplificar, o Fisco Municipal costuma recusar-se a autorizar a impressão de notas fiscais do ISS para os contribuintes que estiverem em débito. Além disso, o protocolo da Sefin recusa sumariamente qualquer petitório de quem esteja em débito com o Fisco, em evidente desrespeito aos princípios constitucionais que consagram o direito de petição e o direito de ampla defesa.
Há quase quarenta anos, o Supremo Tribunal Federal já vem entendendo que normas desse tipo são inconstitucionais, porque não admite que o Fisco, dispondo de meios legais para a cobrança de seus créditos, o que deve ser feito através do processo de execução fiscal, pretenda utilizar esses meios coercitivos indiretos, que constituem verdadeiras sanções, criadas através de instruções, de decretos, ou de qualquer outra norma de nível inferior, embora nem mesmo através de lei pudessem ser criadas, porque essa lei seria inconstitucional. Essas exigências constituem atos ilegais e arbitrários, e o Judiciário costuma conceder ao contribuinte a liminar em Mandado de Segurança, para proteger seu direito líquido e certo. Essas Instruções Normativas são inconstitucionais, porque criam autênticas sanções contra os devedores do Fisco, ferindo o princípio da legalidade e a norma do art. 97, V, do Código Tributário Nacional.
São as seguintes as Súmulas do Supremo Tribunal Federal a respeito, seguidas das referências aos Acórdãos que as originaram:
Súmula 70 "É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo". Julgados: RMS 9698, de 11.07.62 (DJ de 29.11.62); e RE 39.933, de 09.01.61.
Súmula 323- "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos". Julgado: RE 39.933, de 09.01.61
Súmula 547- "Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais".Julgados: RE60.664, de 14.02.68 (RTJ, 45/629); RE65.047, de 14.02.68 (DJ de 28.06.68); RE 63.045, de 11.12.67 (RTJ, 44/422); e RE 64.054, de 05.03.68 (RTJ, 44/776).
O Supremo Tribunal Federal entende, portanto, que o Fisco não pode estabelecer qualquer tipo de sanção ou impedimento para o contribuinte que esteja em débito, tal como a proibição de deferimento do pedido de inscrição no Cadastro do ICMS, ou a proibição do exercício de atividades profissionais, como forma oblíqua de coagir o contribuinte ao pagamento de eventuais débitos tributários anteriores. Se isso acontecer, o direito líquido e certo do contribuinte estará sendo ferido pelo ato ilegal e arbitrário da autoridade, que com abuso de poder, pretender assim coagi-lo ao pagamento de pretensas obrigações tributárias, em vez de utilizar as vias judiciais, através da Execução Fiscal, único instrumento válido de que poderia dispor para a consecução de seu intuito. Normas desse tipo não poderão prevalecer, porque ferem o princípio da legalidade, princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, que se apresenta sob dois aspectos, um positivo e outro negativo, porque enquanto o jurisdicionado pode fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, o administrador somente pode fazer aquilo que a lei determina.
Dessa forma, em face da correta interpretação do princípio da legalidade, a administração pública deve pautar-se rigorosamente pelos princípios constitucionais e legais, em vez de pretender criar dificuldades para uns, ou facilidades para outros. Sua atividade, em suma, é plenamente vinculada pelas determinações legais.
Normas desse tipo, de que se pretende valer o Fisco, criam verdadeiras sanções contra os devedores, ou contra aqueles que o Fisco entende, unilateralmente, que são devedores, obrigando-os a pagar o que o Fisco exige, ou a recorrer ao Judiciário em defesa de seus direitos. Afrontam, conseqüentemente, os princípios fundamentais de nosso ordenamento jurídico.
Transcrevemos, a seguir, diversas decisões, desde a de 1.970 até a recente, de fevereiro de 2.000, do STJ, seguida do voto da Ministra Relatora.
EMENTA- É inadmissível a interdição de estabelecimento comercial como meio coercitivo para cobrança do tributo. Aplicação das Súmulas 70 e 547. Recurso extraordinário não conhecido. (RE 62.047/SP- Relator Ministro Eloy da Rocha, j. 08.05.70)
EMENTA- é inadmissível a apreeensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323). Recurso não conhecido (RE 76359/MG. Recurso Extraordinário. Relator Ministro Xavier de Albuquerque, Segunda Turma. Data da decisão 18.03.74. Fonte: DJ de 05.04.74).
EMENTA - Apreeensão de Mercadorias. ICM. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos. Aplicação da Súmula 323. Recurso extraordinário conhecido e provido. RECORRENTES : TOLDOS DIAS S/A - INDÚSTRIA E COMÉRCIO E OUTRO. RECORRIDO : ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RE 99.219/RJ, Relator Ministro Sydney Sanches, j. 30.08.85)
TRIBUTÁRIO. INSCRIÇÃO NO CGC. INDEFERIMENTO. SÓCIO INADIMPLENTE. I. Não é lícito ao Fisco exigir da empresa, em situação regular, que pretenda abrir filial, que seus sócios estejam em situação fiscal regular, tanto quanto à obrigação tributária principal como à acessória, para deferir pedido de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes- CGC. Trata-se de uma forma indireta e fácil de cobrar o tributo, quando a cobrança deve ser feita via execução judicial. II. Merece elogios a apresentação ordenada, concatenada, precisa, dos documentos trazidos pela impetrante, facilitando o manuseio dos autos (TRF- 1ª Região, AMS n° 1997.01.000093-8-MG, 3ª T., rel. Juiz Tourinho Neto, j. em 14.04.98 e publ. Em 08.05.98)
TRIBUTÁRIO. ASSOCIAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS. EXIGÊNCIA PARA A INSCRIÇÃO NO CGC DA REGULARIDADE DA SITUAÇÃO FISCAL DE UM DOS ASSOCIADOS. EXIGÊNCIA INDEVIDA. Não pode o Fisco se valer de medidas oblíquas como meio coercitivo para a cobrança de tributos, sem obedecer sequer o devido processo legal. (TRF- 1ª Região, AMS n° 1997.01.000662-5-DF Apelação em Mandado de Segurança- 3ª T., rel. Juiz Tourinho Neto, j. em 04.08.98 e publ. em 23.10.98- DJ de 23.10.98, p. 387).
EMENTA- PROCESSO CIVIL. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. INSCRIÇÃO NO CGC. 1. Exigência de inscrição que se faz pertinente para o exercício da atividade comercial. 2. Negativa de registro que se constitui, a princípio, em forma oblíqua de exigir pagamento. 3. Recurso improvido. (AG 1998.01.00.061243-8/MT. Agravo de Instrumento. Rel. Juíza Eliana Calmon, Quarta Turma. Data da decisão 23.02.99. Fonte: DJ de 07.05.99, p. 282)
EMENTA. PROCESSO CIVIL. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. INSCRIÇÃO NO CGC. 1. Exigência de inscrição que se faz pertinente para o exercício da atividade comercial. 2. Negativa de registro que se constitui, a princípio, em forma oblíqua de exigir pagamento. 3. Recurso improvido. (AG 1998.01.00.060746-7/MG. Agravo de Instrumento. Rel. Juíza Eliana Calmon, Quarta Turma. Data da decisão 23.02.99. Fonte: DJ de 07.05.99, p. 282)
EMENTA- TRIBUTÁRIO - CADASTRO GERAL DE CONTRIBUINTES: CGC- REGISTRO DE EMPRESA- INDEFERIMENTO. 1- Não é lícito ao Fisco impor, por via oblíqua, sanção a devedor remisso- Súmula n° 547 do STF. 2- Sócio de empresa que está inadimplente não pode servir de empecilho para a inscrição de nova empresa pelo só motivo de nele figurar o remisso como integrante. 3- Recurso provido. (Unânime, j. 08.02.00. STJ, RE em MS n° 8.880- Ceará- 19/9700623-8, Relatora Min. Eliana Calmon, Recorrente Ypioca Agroindustrial Ltda., Recorrido- Estado do Ceará)
Em seu Voto, diz a Min. Eliana Calmon:
"A Secretaria da Fazenda negou-se a atender a pedido de inscrição de nova empresa, ao argumento de que um dos sócios dirigentes da empresa estava inadimplente para com o Fisco. A recusa embasou-se no art. 94, IV do Decreto n° 22.406, de 26.02.93, do teor seguinte:
Art. 94- Não será concedida a inscrição nos seguintes casos:
(...)
IV- Quando o titular ou sócio da empresa pleiteante o seja de outra que esteja baixada de ofício.
Reprova-se não a aplicação da norma, mas sim o conteúdo da mesma, eis que impõe ao novo estabelecimento o constrangimento de pagar débito que não é seu, com o só objetivo de obter a chancela estatal. Daí o repúdio que está a merecer a exigência. É de invocar-se o teor da Súmula 547 do STF, pela pertinência e eqüidade. Com efeito, repudia-se o decreto porque ele, efetivamente, impõe à parte sanção contra o devedor remisso. Daí o entendimento do STF:Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais. Ora, sem a inscrição não pode funcionar a empresa e isto é, sem dúvida, cerceamento ao exercício de uma atividade. Observe-se, ainda, que a dívida não é da empresa que pretende formar-se, e sim de seus sócios, em razão de participarem de uma outra empresa que está remissa.
O argumento da Fazenda de que, no caso, trata-se de obrigação acessória, não procede, vez que, nos termos do art. 113, § 3º do CTN, esta, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária"...