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A coisa julgada no anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos

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Agenda 25/08/2009 às 00:00

Capítulo 3. Da coisa julgada nas ações coletivas e no anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos

A temática da coisa julgada na ações coletivas é uma das mais complexas e polêmicas de todo o exame da "tutela coletiva".

3.1. Breves considerações acerca da coisa julgada

Como cediço, a coisa julgada é a indiscutibilidade do conteúdo de determinada decisão judicial, tornando a norma individualizada contida na decisão estável, ou seja, a parte dispositiva da decisão.

A doutrina divide a coisa julgada em material e formal. Esta é a indiscutibilidade da decisão no processo em que foi proferida (endoprocessual); aquela é a mencionada indiscutibilidade no processo em que a decisão foi proferida e em outros processos, que seria a verdadeira coisa julgada.

Para que a decisão faça coisa julgada (material), alguns pressupostos são exigidos: que a decisão seja jurisdicional, de mérito e fundada em cognição exauriente, além da necessidade de existir "coisa julgada formal".

Quanto ao regime jurídico da coisa julgada material, tem-se que ela possui limites objetivos – questões principaliter tantum – e subjetivos – trata-se de saber quem está submetido à autoridade da coisa julgada. Nesse aspecto, a coisa julgada pode operar-se inter partes, ultra partes ou erga omnes.

A primeira é a regra geral em nosso ordenamento, consagrada no artigo 472, do CPC, sendo as duas últimas exceções.

A coisa julgada ultra partes é aquela que atinge também determinados terceiros e não apenas as partes do processo, podendo ocorrer em diversas hipóteses, dentre as quais, nas ações coletivas como se verá adiante.

Já a coisa julgada erga omnes é aquela que atinge a todos os jurisdicionados, tendo feito ou não parte do processo. Nas ações coletivas é o que ocorre quando se tutela direitos difusos ou individuais homogêneos [40].

No que toca ao modo de produção, há três tipos de coisa julgada: a) coisa julgada pro et contra – forma-se independentemente do teor da decisão judicial, sendo a regra geral; b) coisa julgada secundum eventum litis – só é formada quando a demanda é julgada procedente; e c) secundum eventum probationis – só é formada em caso de esgotamento de provas.

Na coisa julgada secundum eventum litis, se a ação for julgada improcedente, ela poderá ser reproposta, pois a decisão ali proferida não produzirá coisa julgada material. Segundo afirma Fredie Didier Jr., este regime não é bem visto pela doutrina, pois trata as partes de forma desigual, colocando o réu em posição flagrante de desvantagem [41].

Por outro lado, a coisa julgada secundum eventum probationis acontece se a demanda for julgada procedente, que é sempre com esgotamento de prova, ou improcedente com suficiência de provas. A decisão judicial só produzirá coisa julgada se forem exauridos todos os meios de prova. Se a decisão proferida no processo julgar a demanda improcedente por insufuciência de provas, não formará coisa julgada. No regime geral (pro et contra), a improcedência por falta de provas torna-se indiscutível pela coisa julgada. Como exemplos dessa espécie de formação de coisa julgada, há os artigos 103, I e III, CDC, 18, Lei nº 4717/65, 16, Lei nº 1.533/51.

A coisa julgada ainda produz efeitos i) negativo, quando impede que a questão principal já definitivamente decidida seja novamente julgada como questão principal em outro processo; ii) positivo, que é o efeito que impõe a observância da coisa julgada quando ela é utilizada como fundamento do pedido (causa de pedir); e iii) eficácia preclusiva da coisa julgada, que ocorre por precluir toda possibilidade de rediscussão de todos os argumentos ("alegações e defesas", nos termos do artigo 474, do CPC) que poderiam ter sido suscitados, mas não foram.

3.2Coisa julgada nas ações coletivas: sistema atual

A disciplina da coisa julgada nas ações coletivas no direito brasileiro hoje é dada pelos arts. 103 e 104 do CDC para os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Isso porque, como já dito ao longo do presente, em razão do artigo 21 da Lei da Ação Civil Pública, há uma verdadeira simbiose entre esses dois diplomas legais, perfazendo, junto com legislações esparsas, o micro sistema de tutela coletiva.

O artigo 103 disciplina, de forma diversa e de acordo com a espécie de direito coletivo (lato sensu), a coisa julgada.

Relembre-se, apenas, que em se tratando de sentença terminativa na ação coletiva, não se aplica artigo acima mencionado, já que só se pode falar em coisa julgada (material) em face de sentenças definitivas.

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Quanto à coisa julgada para os direitos difusos, não poderia ter outro efeito senão erga omnes, uma vez que, se o direito pertence a todos, a solução da lide sobre ele (que é transindividual e indivisível) só pode abranger a todos [42]. Aqui ocorre, fugindo à regra geral, a coisa julgada secundum evetum probationis, a depender do sucesso da prova, pois se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento.

Já no que tange aos direitos coletivos (stricto sensu) do artigo 103, II, do CDC, a coisa julgada se opera ultra partes - ressalvada a hipótese de improcedência por insuficiência de provas – isto é, para além das partes do processo, de forma a atingir todo o grupo, categoria ou classe a quem pertence o direito discutido [43].

Tanto a coisa julgada na ação que tutela direitos difusos, como na que protege direitos coletivos em sentido estrito, será secundum eventum litis, posto que se opera apenas diante das circunstâncias da causa.

No concernente à coisa julgada relativa às ações que tutelam direitos individuais homogêneos – que não são direitos transindividuais; ao revés, têm sujeito determinado e unitário -, a situação é diferente. A sentença que julga esse tipo de ação coletiva examina pretensões individuais, sendo a coisa julgada, nos termos do artigo 103, III, do CDC, erga omnes, somente no caso de procedência da ação, de modo a beneficiar todos os sujeitos titulares dos direitos individuais postulados, bem como seus sucessores. Vê-se aqui nova modalidade de coisa julgada secundum eventum litis, tendo em vista que só operada quando a sentença for de procedência. No caso de improcedência, a coisa julgada não será erga omnes.

O regime da coisa julgada nas ações coletivas ainda possui uma inovação: o transporte da coisa julgada in utilibus para as ações individuais que versem sobre o tema, diante do artigo 104, do CDC. Esse dispositivo possui o intuito de tornar viável o ajuizamento da ação individual, ainda quando pendente ação coletiva para a tutela de direito difuso, coletivo ou individual homogêneo e, ainda de deixar evidente que a tutela coletiva não irá trazer benefícios para aquele que não requerer a suspensão do processo individual no prazo de trinta dias após obter a ciência do ajuizamento da ação coletiva.

Por fim, vale suscitar inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei nº 7.347/85. Sua atual redação, dada pela Lei nº 9.494/97 assim dispõe:

"Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova."

Segundo Marinoni, houve, em relação às ações coletivas que não dizem respeito a relações de consumo – uma vez que estas seriam especificamente regidas pelo CDC, que não tem nenhuma previsão nesse sentido -, tentativa de limitação dos efeitos da sentença - já que limitar a abrangência da coisa julgada seria impossível, descaracterizando o próprio instituto. Nesse sentido:

"Os efeitos concretos da decisão (que se operam no mundo real) operam-se em sentidos imprevisíveis e não podem ser contidos pela vontade do legislador. Assim como uma pessoa divorciada não pode ser divorciada apenas na cidade onde foi prolatada a sentença de seu divórcio (passando a ser casada em outros municípios), uma sentença proferida em ação coletiva não pode ter seus efeitos limitados a certa porção do território nacional. Os efeitos da sentença operam onde devem operar, e não onde o queira que eles se verifiquem" [44].

Não se pode olvidar a característica marcante dos direitos coletivos lato sensu (já discutidos no presente trabalho), fato que reforça a conclusão de que outorgar limites à coisa julgada ou aos efeitos da sentença seria, indubitavelmente, conferir a um só direito a possibilidade de dois tratamentos diferenciados, em que pese tal regra ser aplicada pelos tribunais.

3.3Coisa julgada nas ações coletivas: Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos

Nas ações coletivas de que trata o anteprojeto, a coisa julgada encontra-se disciplinada em seu artigo 13.

A sentença fará coisa julgada erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova.

Tratando-se de interesses ou direitos individuais homogêneos, em caso de improcedência do pedido, os interessados poderão propor ação a título individual.

Os efeitos da coisa julgada nas ações em defesa de interesses ou direitos difusos ou coletivos não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos artigos 34 e 35 do anteprojeto, aplicando-se, inclusive, essa lógica à sentença penal condenatória.

Mesmo na hipótese de sentença de improcedência, fundada nas provas produzidas, qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, no prazo de 2 (dois) anos contados do conhecimento geral de descoberta de prova nova, superveniente, que não poderia ser produzida no processo, desde que idônea, por si só, para mudar seu resultado. Essa faculdade, nas mesmas condições, fica assegurada ao demandado da ação coletiva julgada procedente.

Por derradeiro, importa dar relevo ao fato de que o art. 13, § 4º, do anteprojeto prevê que a competência territorial do órgão julgador não representará limitação para a coisa julgada erga omnes, o que confirma a tese de que a criticada alteração levada a efeito no art. 16 da Lei de Ação Civil Pública pela Lei 9.494/97 é flagrantemente inconstitucional, desprovida de qualquer razoabilidade, como visto no tópico anterior.

Nesse diapasão, andou bem o anteprojeto ao destacar a impossibilidade de limitação à coisa julgada erga omnes, produto da própria natureza dos interesses e direitos em jogo.


4.Conclusão

Em uma sociedade de massa, como é a nossa, os mesmos problemas ocorridos com algumas pessoas são compartilhados por outras, posto que são oriundos de uma só origem ou decorrem do fato que os interesses não podem ser titulados exclusivamente por um indivíduo, pois pertencem a toda a coletividade. Para lidar com esses conflitos, necessária é uma tutela que se mostre adequada a proteger tais interesses, de modo a permitir que a sociedade, e não mais o indivíduo possa buscar essa defesa. Esse é um dos motivos pelo qual se pode falar em direito fundamental à tutela jurisdicional, que é aquele que possibilita a efetivação dos demais direitos fundamentais.

Desse modo, como visto ao longo do estudo, é possível enxergar uma relação de integração, interdependência entre direito processual e direito material (mais um princípio interligado ao da efetividade: princípio da instrumentalidade), ou seja, o processo serve ao direito material e é servido por ele, devendo se estruturar tecnicamente de modo a possibilitar a prestação das formas de tutela asseveradas pelo direito material.

É nesse sentido que o processo se mostra um grande aliado à concretização dos direitos transindividuais e individuais homogêneos.

Assim, a modernização do sistema processual coletivo decorrerá da adoção, em caso de aprovação do anteprojeto, de diretrizes que se afastam de opções tradicionais do processo civil individual, levando-se em conta a especificidade do processo coletivo e ajustando-o às peculiaridades decorrentes da própria essência dos interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Em outras palavras, através, não apenas do processo, mas de uma tutela jurisdicional efetiva, adequada ao tipo de direito (difuso, coletivo ou individual homogêneo), consegue-se concretizar a força normativa da Constituição, protegendo-se os direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana.


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Sobre a autora
Debora Fernandes de Souza Melo

Advogada, Graduada pela PUC-Rio, Especialização em Direito Civil, Empresarial e Processo Civil pela Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro e especialização em Direito Processual: Grandes Transformações, pela Universidade do Sul de Santa Catarina, UnisulVirtual.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Debora Fernandes Souza. A coisa julgada no anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2246, 25 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13388. Acesso em: 23 dez. 2024.

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