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Uma visão prospectiva da atuação jurisdicional em relação à organização sindical

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Agenda 26/08/2009 às 00:00

3. Um aparte para uma comparação inconveniente

Por incrível que possa parecer aos olhos ávidos por ensinamentos de um ordenamento jurídico como o brasileiro – que, nas palavras de José Rodrigo Rodriguez, possui uma legislação que "ainda está no estágio do ‘foro sindical’, garantia ‘maliciosamente restringida’ nas palavras de Oscar Ermida Uriarte que corresponde à proteção do dirigente sindical contra a dispensa injustificada" [19] e que sequer adentrou, afora as imperfeições do sistema de unicidade sindical, no trato do combate contra as práticas anti-sindicais que visam a ferir ou tolhir a liberdade sindical individual considerado seu sistema restrito de foro sindical, de forma séria e sistematizada, a proteção contra os atos anti-sindicais que atentam contra as posições jurídicas tituladas pelo sindicato, ou seja, a liberdade sindical coletiva –, a histórica do sindicalismo britânico ilustra a história da anti-sindicalidade tutelada juridicamente [20].

Não é sem razão que Tony Blair tenha asseverado, na véspera de sua posse, como Primeiro Ministro, em Downing Street, que a legislação britânica é a mais restritiva no reconhecimento de direitos sindicais no mundo ocidental [21]. A legislação britânica não se iguala, em restrições ao reconhecimento de direitos sindicais, aos sistemas, por exemplo, da Arábia Saudita (onde os sindicatos são ilegais, o direito à associação sindical é tido como uma afronta aos princípios do islã e a negociação coletiva e as greves são proibidas [22]) ou da China (onde as greves sequer são claramente tuteladas [23]), mas, de toda a sorte, é bem mais restritiva e defeituosa, se levados em consideração os parâmetros internacionalmente aceitos e aprovados pela OIT, quando comparada à Austrália, ao Canadá, à Nova Zelândia, à África do Sul e aos EUA.

A despeito das intenções parlamentares que redundaram na Trade Disputes Act de 1906, o reconhecimento de nítidos direitos sindicais previstos nessa lei foram, paulatinamente, desmantelados por práticas governamentais, pela interferência perniciosa e refratária do Poder Judiciário e pela edição de cada vez mais restritivas outras leis. Editada, exatamente, para fazer frente à enorme e refratária interferência judicial a um melhor reconhecimento e desenvolvimento de direitos sindicais (mormente após a House of Lords ter considerado, no caso Taff Vale Railway, um sindicato profissional responsável, pelo só fato de ter causado naturais prejuízos a um empregador por conta de um de suas greves, ao pagamento de uma multa que, hoje, estaria cotada na casa dos dois milhões de libras esterlinas, inviabilizando a atividade sindical), a Trade Disputes Act, em sua simplicidade e precisão, (i) garantiu a liberdade de greve (desde os piquetes e sem restrição a lugares ou número de grevistas), embora sem maiores seguranças jurídicas; (ii) concedeu aos representantes sindicais imunidade contra prováveis responsabilizações decorrentes de atividades industriais promovidas de forma legítima e regular (industrial action); além de (iii) ter previsto uma sólida proteção aos fundos sindicais [24].

Muito embora, sob a Trade Disputes Act 1906, os sindicatos tenham conseguido crescer em seus esperados afazeres, também cresceram as hostilidades judiciárias contrárias a um sindicalismo mais livre, incentivadas, tais hostilidades, pela simplicidade da norma, que permitia a que os juízes britânicos de então, considerando os sindicatos como organismos super privilegiados sob o império da lei, pudessem, ainda assim, se responsabilizar economicamente pelo que faziam, sofrendo severas restrições aos seus direitos, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento de greves de solidariedade ou de simpatia (secondary action), possíveis por aquelas terras.

Com a crescente hostilidade judicial praticada contra os sindicatos, algo típico do sistema de common law, a anti-sindicalidade se perfez, no seio da experiência britânica, muito, também, pela criação dos juízes (direito costumeiro) em encontrar novos fundamentos para considerar greves ilegais, para expedir ordens de certa intimidação sindical (injunctions) e para brecar pleitos sindicais em decorrência de erros menores e burocráticos encontrados no procedimento legal de se iniciar greves, de entabulação de normas coletivas e, inclusive, principalmente, de se processar o reconhecimento de um dado sindicato como o legítimo representante de uma certa coletividade obreira em determinada unidade de negociação.

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Repelida a Trade Disputes Act 1906 pela Industrial Relations Act de 1971 (embora tenha havido tentativas de se recuperar a Trade Disputes Act 1906 entre os anos de 1974 e 1976) e definitivamente destruída pelos governos anti-sindicais de Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair, ainda que, após a ultrapassagem pela Corte de Cassações com recursos contra as hostilidades criadas pelos juízes de hierarquia inferior, a House of Lords restaurasse direitos e imunidades aos sindicatos e seus representantes, o prejuízo causado, após algum tempo, ao sindicalismo, já havia afetado, em definitivo, o desenvolvimento regular das atividades sindicais no Reino Unido. O desenrolar dos acontecimentos no mundo sindical britânico revelou que o Parlamento, quando editava leis em salvaguarda de direitos sindicais no início do século XX, adotava uma linguagem totalmente distinta da do Poder Judiciário, que, "dançando uma outra dança", acabou beneficiando governos de nítido viés anti-sindical [25]. Nesse contexto, tais governos, entre os quais os de Thatcher e Blair, foram conseguindo aprovar leis de crescente restrição à efetividade de direitos sindicais, entre as quais os Employment Acts de 1980, 1982, 1988, 1989 e 1990, a Trade Union Act de 1984, a Public Order Act de 1986 e a famosa Trade Union and Labour Relations (Consolidation) Act (TULRCA) de 1992, todas editadas para desarmar o movimento sindical e desmobilizar os trabalhadores, a ponto de terem criado um atual ambiente em que mais de dois terços de trabalhadores não são contemplados por acordos coletivos [26].

Com os governos trabalhistas assumindo o poder a partir de 1997 e sob forte crítica internacional, algumas medidas foram adotadas para corrigir, no quanto possível, a situação do sindicalismo britânico, corrigindo o descompasso entre a realidade, entre o normado, e entre o julgado, o que se efetivou com a Employment Relations Act de 1999, que, em verdade, adicionou uma nova seção, a Schedule A1, à TULRCA de 1992. Tal diploma legal regrou de maneira tão violenta o reconhecimento quanto à existência de um pretenso sindicato que redundou um contexto social em que atuar sindicalmente, no Reino Unido, se tornou experiência traumatizante porque as exigências legais para se processar o reconhecimento quanto à legitimidade de um sindicato representativo dos interesses de trabalhadores em uma dada unidade de negociação e para que o sindicato possa, regularmente, adotar medidas concretas de ação sindical em prol, eventualmente, de um movimento paredista, por exemplo, transformaram as leis britânicas em uma maravilhosa armadilha para os sindicatos [27], na qual as empresas são incentivadas a, legalmente, recorrer à Justiça para discutir empecilhos legais mínimos e de menor importância para frustrar as expectativas de uma séria ação sindical [28].

E o Judiciário, nesse contexto, nada mais faz do que fazer cumprir as determinações legais, restritivas e vinculadas ao Estado, formalistas e impeditivas à atuação de verdadeiros e legítimos representantes sindicais.

A situação, no Reino Unido, chegou a um tal ponto de gravidade, que tramita, atualmente, no Parlamento britânico, a proposta de uma Trade Union Rights and Freedom Bill, em prol de uma maior liberdade sindical, cujo teor está sendo debatido, vivamente, na House of Commons com vistas à inserção do trato da matéria sindical em um pacote para uma nova Employment Bill.


4. Uma visão dinâmica da liberdade sindical

Para não se receber as influências de uma atuação jurisdicional negativa à própria sobrevivência da organização sindical, como foi o caso inglês, atualmente em profunda revisão, faz-se necessário alterar, do ponto de vista do método de abordagem dos conflitos atinentes à estrutura sindical trazidos aos Tribunais do Trabalho, a visão que esses mesmos Tribunais do Trabalho possuem em relação à organização sindical. Vale dizer, faz-se necessário incentivar uma visão dinâmica da liberdade sindical.

Antes da existência formal dos entes sindicais, da organização sindical, sem dúvida nenhuma importante para um modelo ainda regido pela unicidade sindical, o destaque deve ser dado à identificação da verdadeira e da legítima representatividade sindical do ente perante as bases representadas. É preciso explorar, na busca da legítima representatividade sindical, se a organização sindical mantém, internamente, um regime de democracia sindical (para o ingresso no sindicato, para a participação nos procedimentos eletivos e para a expulsão do sindicato) e se tem condições reais de desenvolvimento de sua função representativa e de sua função negocial.

A premissa, para o reconhecimento, inclusive, da personalidade jurídica sindical, embora não possa descartar as formalidades regradas pelos atos normativos do Ministério do Trabalho e Emprego, também deve se ater a identificar, na organização sindical, a prática interna dos princípios democráticos, bem como a força socialmente legitimada para a condução das funções representativa (artigo 8º, inciso III, da Constituição Federal) e negocial.

A adoção de um ponto de inflexão na visão jurisprudencial da organização sindical é mais do que bem vinda.

É que, pela liberdade sindical coletiva positiva e negativa, o sujeito titular do direito subjetivo de pretensão (oponível contra os empregados, contra os sindicatos – obreiros ou patronais e contra o Estado) é a coletividade obreira organizada em assembléia e personificada, de forma ficta, pelo sindicato, seu porta-voz mor, que garante as faculdades de poder, livremente, como ente organizado representante dos interesses e direitos de uma coletividade (a categoria, no direito brasileiro), executar as funções e tarefas que lhe são constitucionalmente próprias, assim como de redigir e modificar seus estatutos, utilizando-se de sua personalidade jurídica sindical para selecionar e eleger seus dirigentes, organizar sua administração interna e suas atividades externas (ação sindical), inclusive as de filiação, ou não, em organizações representativas de hierarquia superior, nacionais e/ou internacionais.

Segundo Renato Rua de Almeida, a liberdade sindical coletiva é também conhecida como a autonomia sindical [29], que reclama uma funcionalidade para que o ente sindical exerça suas funções de representação e autopromoção coletivas, de forma a que o direito que os indivíduos possuem, como liberdade sindical individual positiva ou negativa, de constituir, ou não, sindicatos, se torne indissolúvel de um, agora, direito coletivo fundamental de independência desses organismos e de ação, livre, interna e externamente [30].

Ainda nas lições de Renato Rua de Almeida, a liberdade sindical, pressupõe muito mais do que o direito de organização livre e democrática, mas, principalmente, o direito de ação coletiva dos trabalhadores organizados, protegida contra práticas anti-sindicais e resguardadas pelo direito à informação, mormente, no plano da empresa, à participação dos trabalhadores na gestão da empresa, mediante típicas representações sindicais nos locais de trabalho como, também, mediante as representações unitárias e não-sindicais de trabalhadores, instituídas direta e de forma eleita pelos trabalhadores nos locais de trabalho, segundo os ditames da Convenção nº 135 da OIT de 1971 [31].

É a busca por esse efetivo exercício da liberdade sindical coletiva, que se traduz em efetiva ação coletiva, ação sindical, no mundo fenomênico, quer na defesa dos interesses da categoria, quer na negociação coletiva, quer no exercício do direito de greve, que se sustenta representar uma visão dinâmica da liberdade sindical e que precisa ser levada em consideração pelos Tribunais quando apresentada a questão da estrutura da organização sindical e de sua atuação perante o Poder Judiciário.

O nó górdio para a inflexão da visão dos tribunais quanto à organização sindical está na dúvida referente a saber se, à organização sindical, em suas relações coletivas de trabalho aplicam-se os princípios inerentes à nova filosofia, no trato do direito comum e geral, que insculpiu a estrutura da Lei nº 10.406/2002 (Novo Código Civil Brasileiro – NCCB) ou, para a organização sindical, continua o debate em torno da sua vinculação ao princípio da liberdade sindical.

Como o Brasil se encontra em contexto de mitigada e tolhida liberdade sindical, não se tem dúvidas de que, como ferramenta para, ainda nesse sistema, identificar verdadeiras e legítimas representatividades sindicais, é preciso que os Tribunais do Trabalho, no trato de dissídios intersindicais não coletivos de representatividade sindical (ações declaratórias de nulidade de registro sindical, ações cautelares, ações consignatórias de pagamento de contribuição sindical e mandados de segurança, etc.) se utilizem, paralelamente aos critérios já consagrados pela jurisprudência (direito de precedência, ou de anterioridade), na análise formal quanto à legitimidade de atuação da organização sindical, das cláusulas gerais e dos conceitos legais indeterminados que permeiam a nova legislação civil, de aplicação, sim, às relações coletivas de trabalho e à leitura, mais moderna, do artificialismo da estrutura das organizações sindicais.

Pelas cláusulas gerais, as normas fornecem diretrizes ao julgador para decidir a partir de um patamar de liberdade decisória, o que permite que o magistrado possa, eventualmente, integrar determinado negócio jurídico ao conceder conteúdo concreto às enunciações abstratas inerentes à cláusula geral. São exemplos de cláusulas gerais na nova codificação civil, a expressão "função social" no artigo 421 como limite à autonomia privada e as referências à "boa-fé objetiva" e "probidade" no artigo 422, por exemplo. Pelos conceitos legais indeterminados, há, pela abstração, imprecisão e generalidade de uma expressão, vinculação, pela lei, a uma conseqüência jurídica determinada, como é o caso das expressões "atividade de risco" para a caracterização de responsabilidade objetiva no artigo 927 e "perigo iminente" como causa excludente da ilicitude do ato no artigo 188, inciso II.

Por esses instrumentos, o julgador, ativando-se nas relações jurídicas, preenche a vagueza de cláusulas gerais ou conceitos legais indeterminados para, atuando em concreto na solução dos conflitos sob o mote da eticidade, da sociabilidade e da operabilidade, emprestar solução prospectiva e legítima para dado problema.

Sobre o autor
Marcus de Oliveira Kaufmann

Doutor (2012) e Mestre (2004) em Direito das Relações Sociais (Direito do Trabalho) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel (1998) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Professor em cursos de graduação e de pós-graduação "lato sensu", lecionou Legislação Social, Direito Material (Individual e Coletivo) e Processual do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb), no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), na unidade de Brasília da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) em Curitiba/PR, no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter) em Canoas/RS, na Escola da Associação dos Magistrados do Trabalho da Décima Região (Ematra X) em Brasília/DF e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas/PUC-Camp). Na Academia, dedica-se ao Direito Coletivo do Trabalho, desenvolvendo estudos referentes a práticas antissindicais, sindicalismo, liberdade sindical, atos de ingerência, representações unitárias de trabalhadores. É Membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior (IBDSCJ), Seção Brasileira da "Société Internationale de Droit du Travail et de la Sécurité Sociale" (SIDTSS). É advogado e consultor em Brasília/DF (sócio de Paixão Côrtes e Advogados Associados), atuando nas áreas contenciosa, individual e coletiva, e consultiva, individual e coletiva, do trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KAUFMANN, Marcus Oliveira. Uma visão prospectiva da atuação jurisdicional em relação à organização sindical. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2247, 26 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13395. Acesso em: 26 dez. 2024.

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