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Percalços na implementação do concurso público

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Agenda 01/09/2009 às 00:00

3 A QUE REGIME JURÍDICO PERTENCEM OS NÃO CONCURSADOS?

A inobservância da regra do concurso público, conforme as práticas e artifícios descritos anteriormente e por outras modalidades inimagináveis, traz a necessária indagação acerca da natureza do regime jurídico a que estão vinculados os trabalhadores envolvidos, à administração pública.

3.1 Relevância da definição do regime jurídico

Tal indagação, para os fins almejados por este artigo, tem relevância porque irá definir a competência do órgão jurisdicional para processar e julgar os litígios decorrentes dessa relação jurídica, se a Justiça comum (estadual ou federal), ou a Justiça do Trabalho, considerada sua competência especializada prevista no art. 114 da Constituição de 1988, com novo texto dado pela Emenda Constitucional n. 45/2004.

A incorreta ou equivocada apreciação das regras de competência leva a absurdos, como o detectado no Estado do Piauí, tomado como exemplo, aliás, mau exemplo.

Veja-se a situação:

O Ministério Público do Trabalho da 22ª ajuizou, em 2002, ação civil pública para fazer cumprir o preceito do concurso público nos quadros da administração estadual, mormente nas áreas de saúde e educação, em que, no lugar de concursos públicos, os postos vinham sendo ocupados por não concursados ("prestadores de serviços", terceirizados, "estagiários", contratados por prazo determinado que se prorrogaram no tempo, e outras figuras esdrúxulas de admissão). Após incidentes, questionamentos e decisões sobre competência, foi proferida liminar determinando a realização de concursos públicos e dispensa dos não concursados, diante da nulidade preconizada no §2º do art. 37, da CF. Seguiu-se a sentença, na mesma linha da liminar, confirmada, exceto quanto ao valor da multa por descumprimento da liminar, que foi reduzido em segunda instância, pelo TRT da 22ª Região.

Diante da iminência do atendimento da decisão trabalhista pelo administrador estadual – cumprimento devido, aliás, desde a medida liminar concedida na ação civil pública pelo MM. Juiz da 3ª Vara do Trabalho - e para assegurar a permanência dos "sem concurso" nos quadros do Estado, o sindicato da "categoria profissional" impetrou um mandado de segurança coletivo no Tribunal de Justiça do Estado, o qual, desprezando as decisões da Justiça do Trabalho sobre o caso, e, especialmente, fazendo tabula rasa da liminar proferida na ADI n. 3.434/PI, pelo STF, além de distorcer fatos (pois não tratava mais o ato guerreado de exercício da autotutela administrativa, mas, sim, de ato decorrente de sentença judicial), disposições legais e princípios constitucionais incidentes na espécie, deu guarida à pretensão.

Impasse criado - até que seja resolvido pelo órgão jurisdicional superior - obviamente, o administrador estadual vai preferir cumprir a decisão do Tribunal de Justiça, que lhe convém, uma vez que contratou sem concurso, conservou os não concursados que encontrou ao iniciar sua gestão, tentou "efetivá-los" no serviço público mediante lei inconstitucional e tem interesse eleiçoeiro na manutenção da situação. Recorde-se que, perante a opinião pública deturpada, a demissão de pessoal, ainda que para atender a comando superior da Constituição, em uma região na qual o governo é o maior "empregador", é antipática e não rende votos.

3.2 Não concursado não ingressa no RJU

O concurso público é requisito para formação do vínculo administrativo ou estatutário. Isso está claro desde a Carta de 1967 no ordenamento constitucional brasileiro.

Foi o próprio STF quem assim afirmou, interpretando o art. 37, II, da Constituição vigente, ao declarar inconstitucionais dispositivos de outra lei piauiense que enquadrava, no Estatuto recem criado, trabalhadores não concursados:

"Estado do Piauí. Lei n. 4.546/92, art. 5º, inc. IV, que enquadra no regime único, de natureza estatutária, servidores admitidos sem concurso público após o advento da Constituição de 1988. Alegada incompatibilidade com as normas dos arts. 37, II, e 39 do texto permanente da referida carta e com o art. 19 do ADCT. Plausibilidade da tese. O provimento de cargos públicos tem sua disciplina traçada, com rigor vinculante, pelo constituinte originário, não havendo que se falar, nesse âmbito, em autonomia organizacional dos entes federados". (MC-ADI n. 982-6-PI, rel. Min. Ilmar Galvão, julg. em 24-3-1994, publ. em 06-5-1994).

Ora, se, para o trabalhador ser alçado ao regime administrativo de cargos públicos é indispensável a aprovação em concurso público, ressalvadas as nomeações para os cargos em comissão previstos em lei, a conclusão inafastável é no sentido de que o não concursado não ostenta o "status" de servidor público, não se submete ao Estatuto, enfim, não ingressa no regime jurídico único – de natureza essencialmente formal.

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Logo, o simples fato de a entidade pública possuir Estatuto não atrai para esse regime o trabalhador admitido com desrespeito à regra do concurso público, porque, repita-se, sem concurso ele não ingressa nesse regime formal, e, consequentemente, não se pode falar de relação jurídica de natureza institucional ou administrativa.

3.3 Não concursado entra automaticamente no regime informal da CLT

Então, se aquele que estiver no serviço público, de alguma forma, sem observância dos preceitos alusivos ao concurso público, não fará parte do RJU, e como não pode existir um "limbo" jurídico, ou seja, essa relação jurídica anormal deve ter alguma natureza, há de se reconhecer que tal natureza, no caso, será contratual, regida pela Consolidação das Leis do Trabalho, uma vez que, para sua formação, não se exige formalidade, nem contrato escrito, mas o mero consenso das partes e a presença dos requisitos caracterizadores do contrato de trabalho, isto é, pessoalidade na prestação dos serviços, habitualidade, onerosidade e subordinação jurídica (art. 3º da CLT).

Tanto é assim que a Justiça do Trabalho é quem aprecia as ações dos não concursados cujas admissões foram anuladas por ofensa ao art. 37, II, da Constituição, a ponto de consolidar as conseqüências dessas relações jurídicas na Súmula 363, já transcrita.

Com base nessa linha de raciocínio é que, também o STJ, reconheceu a incidência do regime contratual trabalhista nas hipóteses de desvio das contratações temporárias:

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. CONTRATO TEMPORÁRIO. CONTINUAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS SEM A PRÉVIA PRORROGAÇÃO. NATUREZA TEMPORÁRIA DO VÍNCULO AFASTADA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.

1. O conflito entre a Justiça Comum e a Especializada deve ser dirimido pela natureza do pedido e da causa de pedir, estabelecendo-se, via de conseqüência, a competência em razão da matéria.

2. Nos casos em que, o contrato temporário para o atendimento de necessidade de excepcional interesse público tenha atingido o seu termo final mas, no entanto, a prestação de serviços continua por tempo indeterminado e de forma habitual, com a anuência do Estado, o vínculo entre as partes passa a ser regido pelas normas da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. (precedentes).

3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Nova Friburgo/RJ, ora suscitante". CC 78.695-RJ (2007/0001637-0), rel. Min. Carlos Fernando Mathias, publ. no DJU de 01/10/2007.

E o TST caminhava para sumular entendimento no mesmo sentido, através da Orientação Jurisprudencial/SBDI-1 n. 205, cancelada, porém, em abril de 2009, e que dispunha:

"COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. ENTE PÚBLICO. CONTRATAÇÃO IRREGULAR. REGIME ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO. (nova redação, DJ 20.04.2005)

I - Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho dirimir dissídio individual entre trabalhador e ente público se há controvérsia acerca do vínculo empregatício.

II - A simples presença de lei que disciplina a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso IX, da CF/1988) não é o bastante para deslocar a competência da Justiça do Trabalho se se alega desvirtuamento em tal contratação, mediante a prestação de serviços à Administração para atendimento de necessidade permanente e não para acudir a situação transitória e emergencial".

3.4 O atual entendimento do STF e o esvaziamento da Justiça do Trabalho nas questões sobre concurso público

Ao apreciar a ADI/MC n. 3.395-6-DF, o STF, sobre o novo texto do art. 114 da Constituição, decorrente da EC n. 45/2004, reafirmou o entendimento de que os litígios travados entre o Poder Público e seus servidores, fundados em relação jurídica estatutária, são da competência da justiça comum, e, não, da Justiça do Trabalho:

"Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. (...) O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária". (Rel. Min. Cezar Peluso, julg. em 05-4-2006, publ. em 10-11-2006).

Mais recentemente, ao proclamar a inconstitucionalidade formal da EC n. 19/1998, o STF restaurou a vigência do "caput" original do art. 39 da Constituição, que prevê a adoção do regime jurídico único na administração pública direta, autárquica e fundacional:

"A matéria votada em destaque na Câmara dos Deputados no DVS n. 9 não foi aprovada em primeiro turno, pois obteve apenas 298 votos e não os 308 necessários. Manteve-se, assim, o então vigente caput do art. 39, que tratava do regime jurídico único, incompatível com a figura do emprego público. O deslocamento do texto do § 2º do art. 39, nos termos do substitutivo aprovado, para o caput desse mesmo dispositivo representou, assim, uma tentativa de superar a não aprovação do DVS n. 9 e evitar a permanência do regime jurídico único previsto na redação original suprimida, circunstância que permitiu a implementação do contrato de emprego público ainda que à revelia da regra constitucional que exige o quorum de três quintos para aprovação de qualquer mudança constitucional. Pedido de medida cautelar deferido, dessa forma, quanto ao caput do art. 39 da Constituição Federal, ressalvando-se, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos anteriormente praticados com base em legislações eventualmente editadas durante a vigência do dispositivo ora suspenso. (...) Vícios formais e materiais dos demais dispositivos constitucionais impugnados, todos oriundos da EC 19/98, aparentemente inexistentes ante a constatação de que as mudanças de redação promovidas no curso do processo legislativo não alteraram substancialmente o sentido das proposições ao final aprovadas e de que não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico anterior". (ADI/MC n. 2.135, rel. p/ o ac. Min. Ellen Gracie, julg. em 02-8-2007, publ. em 07-3-2008).

Consequência disso é que o STF passou a entender impossível, no seio da administração pública, a coexistência dos regimes estatutário e contratual (da CLT), proclamando, apenas, o regime jurídico único, necessariamente de natureza administrativa. Ressalte-se que a Corte Suprema nega à administração a escolha do regime jurídico único, ao considerar como obrigatório o de natureza administrativa, sempre, à luz da redação original ou restaurada do art. 39, "caput", da Constituição, e, em consequência disso, sempre incompetente a Justiça do Trabalho, quando presente interesse do ente público em confronto com seus servidores.

O entendimento preponderante atual da maioria dos membros do STF é de "que a relação entre o servidor e o Estado é sempre uma relação de Direito Administrativo, razão pela qual se sujeita à Justiça Comum" (Rcl. n. 4.990/PB).

Tal pensamento (que não pode desconsiderar o efeito "ex nunc" dado expressamente à ADI/MC n. 2.135, não se aplicando, então, às relação instauradas quando a multiplicidade de regimes era permitida pela EC 19), altera todas as regras regedoras da definição da competência da Justiça do Trabalho, ou seja, uma competência em razão da matéria (matéria trabalhista), demarcada pelo pedido e pela causa de pedir, passando-se a atribuir-lhe, sempre, uma "incompetência" em razão da pessoa, qual seja, da presença, na ação, de uma pessoa jurídica de direito público interno.

Esvaziada está, por tal motivo, a competência da Justiça do Trabalho – e, logicamente, a legitimidade do Ministério Público que nela atua, e vem atuando com prioridade nessa área – relativamente a questões de desrespeito ao concurso público, envolvendo ditas pessoas jurídicas de direito público, sobejando-lhe somente as causas do interesse dos entes da administração pública indireta dotados de personalidade jurídica de direito privado que seguem o regime da CLT, à luz do art. 173, §1º, II, da CF/1988.

3.5 A esperança em novas Emendas Constitucionais

E o "estrago" feito na competência trabalhista pelas citadas últimas decisões do STF só pode ser corrigido através de Emenda Constitucional, a não ser que o próprio Tribunal reflua no seu entendimento – o que parece improvável.

Entre as propostas nesse sentido, destacam-se as PECs n. 294/2008 e n. 306/2008, ambas de autoria do Dep. Eduardo Valverde.

A primeira altera o art. 114, I, da Constituição, dando à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar "as ações oriundas das relações de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive aquelas decorrentes de contratações temporárias (art. 37, IX), de comissionados (art. 37, V), ou as irregularmente estabelecidas ante a ausência de prévio concurso público, em violação do disposto no art. 37, incisos II, V e IX (art. 37, §2º)". Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, sob a relatoria do Dep. Flávio Dino, e apensada à PEC n. 328/2009.

Essa PEC n. 294/2008 é coerente com as disposições constitucionais acerca dos servidores públicos, na medida em que contratações temporárias e servidores comissionados são incompatíveis com a estabilidade inerente ao servidor público estatutário. E os contratados com desrespeito aos itens II, V e IX, do art. 37, da CF, isto é, a) em desatenção ao princípio do concurso público, b) deturpação do exercício das funções de confiança e cargos comissionados reservados aos servidores de carreira ou c) violação das regras de contratação por tempo determinado, não podem ser servidores públicos - "status" reservado aos concursados. Além de coerente, a nova e clara regra poria fim na discussão sobre competência, dividindo-a, quando houver interesse dos entes públicos na causa, entre Justiça comum (relações estatutárias legalmente formadas) e Justiça do Trabalho (relações jurídicas formadas com administração pública irregularmente, e relações temporárias, abrangidos os contratos a termo e os em comissão).

Resta aguardar seu desfecho no Congresso Nacional.

A PEC n. 306/2008, por sua vez, busca resgatar a redação do art. 39 da CF/1988, dada pela EC n. 19, declarada formalmente inconstitucional pelo STF através da ADI/MC n. 2.135. Propõe, assim, a seguinte redação:

"Artigo 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados elos respectivos Poderes. § 3º - Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público efetivo o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII, e XXX, e aos servidores ocupantes de cargo público em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração bem como de vaga temporária ou de emprego público, o também disposto nos demais incisos do art. 7º, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo exigir".

Porém, em 13-8-2009, o autor da proposição solicitou, através do REQ n. 5317, a retirada da PEC n. 306/2008.

Sobre a autora
Evanna Soares

Procuradora Regional do Ministério Público do Trabalho na 7ª Região (CE). Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA, Buenos Aires). Mestra em Direito Constitucional (Unifor, Fortaleza). Pós-graduada (Especialização) em Direito Processual (UFPI, Teresina).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Evanna. Percalços na implementação do concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2253, 1 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13424. Acesso em: 17 nov. 2024.

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