1.Introdução
Em primeiro lugar, esclareça-se que o presente escrito não tem a intenção de esgotar por completo a matéria, mas apenas expor – de forma direta, clara e sucinta – um ponto de vista acerca das implicações processuais que ocorrerão quando ocorrer o indeferimento liminar do Mandado de Segurança, a partir de sua nova regulamentação estipulada pela Lei Federal nº 12.016/09.
Trata-se de uma legislação bastante recente, que não inovou juridicamente em muita coisa, mas trouxe importantes disposições que analisaremos doravante, juntamente com os demais regramentos processuais que regem o tema.
2.O Mandado de Segurança na Constituição Federal
O Mandado de Segurança é uma ação constitucional, de natureza civil, cuja previsão na Carta Política encontra-se estabelecida no seu art. 5º, inciso LXIX, nos seguintes termos, ipsis verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;
A Constituição Federal é clara, portanto, ao estabelecer os pressupostos constitucionais do Mandado de Segurança, quais sejam, a certeza e a liquidez do direito postulado, a ilegalidade ou o abuso de poder no ato praticado pela autoridade pública, e a sua subsidiariedade em relação ao habeas corpus e aos habeas data, só podendo haver seu cotejo quando a pretensão veiculada não puder ser deduzida em alguma dessas outras duas ações mandamentais de índole constitucional [01].
3.Aspectos infraconstitucionais – A Lei nº 12.016/09
O Mandado de Segurança teve sua regulamentação infraconstitucional durante um longo período regida basicamente pela Lei Federal nº 1.533/51, tendo sofrido algumas alterações posteriores, que, todavia, preservaram-lhe a essência.
Em 10 de agosto de 2009, publicou-se a Lei Federal nº 12.016, que expressamente revogou, conforme seu art. 29, praticamente todas as disposições anteriores que regiam a matéria, mais precisamente a já citada Lei nº 1.533/51, além das Leis nº 4.166/62, 4.348/64, 5.021/66, o art. 3º da Lei nº 6.014/73, o art. 1º da Lei nº 6.071/74, o art. 12 da Lei nº 6.978/82 e o art. 2º da Lei nº 9.259/96.
A partir da nova legislação que o rege, o Mandado de Segurança está previsto infraconstitucionalmente da seguinte forma:
Art. 1º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.
Como se percebe, o dispositivo praticamente repete o que diz o art. 5º, LXIX, da Constituição Federal. Subentende-se, portanto, que permanecem os mesmos pressupostos constitucionais à impetração do Writ, quais sejam: a certeza e a liquidez do direito, a ilegalidade ou o abuso de poder no ato praticado pela autoridade, além do seu caráter subsidiário em relação ao habeas corpus e ao habeas data.
Contudo, a Lei nº 12.016/09 prevê alguns requisitos ao cabimento do writ, tais como o prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias para a impetração (art. 23) e a adequação da Petição Inicial ao que dispõem o art. 282 e seguintes do Código de Processo Civil (art. 6º).
Tais dispositivos são fundamentais à coerência do caráter mandamental e excepcional do Writ, justamente porque a legislação infraconstitucional que disciplina o Mandado de Segurança também lhe outorga um procedimento reconhecidamente mais célere do que os previstos para as ações ordinárias.
3.1.O Indeferimento Liminar do Mandado de Segurança – Hipóteses de cabimento
Além desses requisitos infraconstitucionais acima citados, vale destacar que a Lei nº 12.016/09 repete a previsão legislativa anterior que possibilita ao Magistrado indeferir liminarmente a petição inicial do Mandado de Segurança, nos seguintes termos:
Art. 10. A inicial será desde logo indeferida, por decisão motivada, quando não for o caso de mandado de segurança ou lhe faltar algum dos requisitos legais ou quando decorrido o prazo legal para a impetração.
§ 1º Do indeferimento da inicial pelo juiz de primeiro grau caberá apelação e, quando a competência para o julgamento do mandado de segurança couber originariamente a um dos tribunais, do ato do relator caberá agravo para o órgão competente do tribunal que integre.
Em que pese o dispositivo aludido fazer menção a uma decisão, percebe-se que o indeferimento liminar do Mandado de Segurança, em primeiro grau de jurisdição, ocorrerá por sentença do Magistrado – porque implica na extinção do processo (art. 162, §1º, CPC) e porque será combatida pela parte irresignada com seu conteúdo, em regra, por apelação (art. 10, §1º, e art. 14) – nas seguintes hipóteses: a) quando não for o caso de mandado de segurança; b) quando lhe faltar algum dos requisitos legais; e c) quando verificada a decadência do direito à impetração do Writ.
Ao que parece, a expressão "quando não for o caso" diz respeito ao cabimento do Mandado de Segurança em conformidade com seus pressupostos constitucionais, quais sejam: a) a certeza e a liquidez do direito; b) a ilegalidade ou o abuso de poder da autoridade impetrada; c) a sua subsidiariedade em relação ao habeas corpus ou ao habeas data (art. 5º, inciso LXIX, CF).
Da mesma forma, os requisitos da impetração dizem respeito àqueles ônus processuais impostos ao impetrante, previstos na legislação infraconstitucional, tais como o prazo decadencial, a observância às formalidades do art. 282 e seguintes do Código de Processo Civil etc.
Assim, quando o Juiz, ao analisar a Inicial, verificar que, p. ex., o ato da autoridade coatora não é eivado de ilegalidade ou abuso de poder, ou então que a impetração ocorreu em prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, contados a partir da ciência pelo interessado do ato impugnado, deverá indeferir liminarmente a Inicial, extinguindo o processo sem resolução do mérito. É prática que, aliás, já ocorria desde a vigência da Lei nº 1.533/51, pacificamente reconhecida e adotada pela Jurisprudência.
A grande questão que surge, a partir da Lei nº 12.016/09, diz respeito às conseqüências do indeferimento liminar do Mandado de Segurança quando não se verificar a presença, initio litis, do pressuposto constitucional relativo ao direito líquido e certo alegado pelo impetrante, o que analisaremos mais detidamente a seguir.
3.2.Direito líquido e certo, indeferimento liminar e julgamento do mérito, em sede de Mandado de Segurança
Analisando-se o preceituado na norma que prevê e discrimina o Mandado de Segurança, qual seja o inciso LXIX do artigo 5º da Constituição Federal, percebe-se que este deverá ser concedido "para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (grifos nossos).
Acompanhando os ensinamentos do saudoso Hely Lopes Meirelles, nota-se que "o essencial para a impetração do Mandado de Segurança é que o impetrante – pessoa física ou jurídica, órgão público ou universalidade em geral – tenha prerrogativa ou direito próprio ou coletivo a defender e que esse direito se apresente líquido e certo ante o ato impugnado" [02].
Quanto à certeza e liquidez do direito, esta se constitui na finalidade e na razão de ser do Mandado de Segurança, desdobrando-se em, primeiramente, fundamento e requisito para o exercício da ação do Mandado de Segurança, e, por fim, fundamento da sentença mandamental de segurança [03]. Portanto, não sendo tal direito líquido e certo, não há por que se falar em concessão do Writ.
Ademais, de acordo com o que estabelece a Constituição Federal, a exigência de certeza e liquidez ao direito invocado significa que não basta que o direito possa vir a ser demonstrado, mas é preciso que o mesmo seja, desde logo, inequivocamente existente e definido em seu conteúdo, independentemente de comprovação posterior [04], devendo ser, portanto, induvidoso e claro, de antemão.
Portanto, direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, ou seja, é aquele capaz de ser comprovado, de plano, por documentação inequívoca [05].
Assim, a certeza e a liquidez referem-se aos fatos, ou seja, estando estes devidamente provados, por prova documental pré-constituída, as dificuldades com relação à interpretação do direito serão resolvidas pelo juiz [06].
Esse entendimento, aliás, consolidou-se por intermédio da Súmula nº 625 do STF, a qual afirma que "controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança".
Dessa forma, "a impetração do Mandado de Segurança não pode fundamentar-se em simples conjecturas ou em alegações que dependam de dilação probatória incompatível com o procedimento do Mandado de Segurança, pois exige-se a pré-constituição das provas em relação às situações fáticas ensejadoras de seu ajuizamento" [07].
O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já declarou que "o processo de mandado de segurança qualifica-se como processo documental, em cujo âmbito não se admite dilação probatória, pois a liquidez dos fatos, para evidenciar-se de maneira incontestável, exige prova pré-constituída, circunstância essa que afasta a discussão de matéria fática fundada em simples conjecturas ou em meras suposições ou inferências" [08].
Essas ilações, aliás, estão em plena conformidade com o que dispõe o art. 10 da Lei nº 12.016/09, posto que, conforme já visto, não verificando na Inicial o preenchimento dos pressupostos constitucionais à impetração do writ, deverá o Magistrado indeferir liminarmente a Exordial, julgando o feito extinto.
Entretanto, a Lei nº 12.016/09 assim estabelece, verbis:
Art. 19. A sentença ou o acórdão que denegar mandado de segurança, sem decidir o mérito, não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais.
Trata-se de dispositivo que reproduz, parcialmente, o que dispunha a legislação anterior, mais precisamente os artigos 15 e 16 da Lei nº 1.533/51, cujas disposições eram as seguintes:
Art. 15 - A decisão do mandado de segurança não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais.
Art. 16 - O pedido de mandado de segurança poderá ser renovado se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito.
Comparando o que dispõem os dispositivos revogados com o que consta do art. 19 da Lei nº 12.016/09, percebe-se que esta inova sobre o que diziam os anteriores.
Antes, expressamente constava na Lei nº 1.533/51 que havia possibilidade de o impetrante valer-se de nova impetração do Writ, caso a sentença anterior não lhe houvesse apreciado o mérito, ou então de ingressar com uma ação ordinária, caso a segurança fosse denegada.
A partir da legislação ora vigente, afirma-se que a parte que impetrar Mandado de Segurança, mas que obtenha a denegação judicial da ordem, não poderá ingressar com ação ordinária – ou até mesmo outro writ – se a sentença houver decidido o mérito, operando-se os efeitos da coisa julgada material.
Não se trata, porém, de uma inovação jurídica, mas de consolidação de um entendimento já aplicado durante a vigência da legislação anterior. Apesar de essa situação não estar explicitamente posta nos dispositivos revogados aludidos, era a interpretação que já faziam a doutrina [09] e a jurisprudência [10].
Todavia, surge uma indagação importante: poderia haver a incidência dos efeitos da coisa julgada material na hipótese de indeferimento liminar do Mandado de Segurança?
A meu ver, sim. E explico.
Em primeiro lugar, conforme já dito, o ato de análise da Petição Inicial do Mandado de Segurança, para fins do seu recebimento ou não, é de suma importância para o Magistrado, já que a Lei impõe o indeferimento liminar da Exordial quando ela não preencher os pressupostos e requisitos à impetração do writ.
Assim, caso o Juiz entenda que a demanda proposta não preenche os requisitos de certeza e liquidez do direito invocado – ou seja, os fatos narrados não restam devidamente provados – irremediavelmente indeferirá a Inicial e extinguirá o processo, seja ou não com resolução do mérito.
Ocorre que há hipóteses em que a ausência de direito líquido e certo é tão flagrante que o indeferimento da Inicial se confundirá com a própria análise do mérito do Writ.
Muitas vezes, p. ex., ao analisar um pedido de liminar em Mandado de Segurança, a fim de verificar a presença do fumus boni iuris, o Magistrado forma sua convicção pela inexistência do direito invocado de forma tão plena que, em vez de indeferir a medida liminar perseguida por ausência de fumus boni iuris, será obrigado (por força do art. 10, da Lei nº 12.016/09) a indeferir liminarmente o próprio Writ, extinguindo o feito e resolvendo, desde logo, o próprio mérito do processo.
Imagine-se, por exemplo, que determinado cidadão impetre um Mandado de Segurança contra ato de um Secretário de Habitação Municipal que lhe negara o fornecimento de uma Licença para construir (o chamado "habite-se") um posto de gasolina ao lado de outro, vizinhos, numa determinada rua, em razão de essa situação desrespeitar as normas ambientais e de urbanismo da cidade. Poderá ser que o Magistrado, analisando um eventual pedido de liminar e compulsando as provas pré-constituídas da Exordial, entenda initio litis que o ato não é ilegal e que não há direito líquido e certo do impetrante, posto que a construção almejada é frontalmente dissonante com o que estabelece a legislação municipal.
Nesse caso, então, em vez de indeferir a medida liminar requerida, poderia o Magistrado indeferir liminarmente a Inicial, porém, caso convencido da total improcedência do pedido, julgando improcedente a própria pretensão veiculada, resolvendo o mérito e, caso não haja apelação dessa sentença, fazendo incidir os efeitos da coisa julgada material sobre aquela relação jurídica.
Há outras situações, ainda, em que o magistrado já possui um entendimento anterior formado sobre aquela matéria, tendo reiteradamente decidido pela sua improcedência, podendo, então, indeferir liminarmente o Mandado de Segurança decidindo desde logo o mérito.
É de se salientar, ainda, o ônus imposto à parte de instruir a Inicial com as provas pré-constituídas do direito alegado, sem que se possa ocorrer dilação probatória, não havendo, ainda, ofensa à ampla defesa e ao devido processo legal.
Não haveria, nesses exemplos citados, a possibilidade de a parte impetrante ingressar com uma ação ordinária deduzindo a mesma pretensão, porque, conforme o art. 19 da Lei nº 12.016/09, a sentença que indeferiu a Inicial decidiu o próprio mérito. Ou a parte apelaria da sentença, ou então operar-se-iam os efeitos da coisa julgada material.
Vale destacar, aliás, que essa possibilidade – a de decisão do mérito ainda quando da análise do recebimento da Exordial – não é uma novidade no processo civil pátrio, bastando fazer uma simples menção ao art. 285-A, do Código de Processo Civil, onde está disposto que "quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada".
A diferença, portanto, entre a situação do art. 285-A, do CPC, e a dos artigos 10 e 19 da Lei nº 12.016/09 é que, enquanto aquele se refere a causas repetitivas e à repetição do teor de sentenças anteriormente prolatadas, as regras da Lei do Mandado de Segurança não exigem esses requisitos e formalidades, facultando ao magistrado decidir desde logo o mérito caso verifique, initio litis, que o pleito da parte impetrante é manifestamente improcedente.
4.Conclusões
As normas de Direito Processual no país passam por um processo de modernização, de aperfeiçoamento visando à desburocratização e à eficiência plena do direito fundamental à razoável duração do processo, esculpido no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. É notória a índole do legislador em promover mecanismos para que a Jurisdição seja prestada da forma mais eficiente possível.
As alterações introduzidas pela Lei nº 12.016/09 não modificaram substancialmente muita coisa com relação ao procedimento do Mandado de Segurança. Praticamente, consolidou entendimentos jurisprudenciais a respeito da matéria.
Todavia, a situação verificada no presente e breve estudo é uma possibilidade outorgada aos Magistrados, possibilitando-os prestar a Jurisdição em sua plenitude sem as ilações que muitas vezes indevidamente acometem os feitos.
O indeferimento liminar, com resolução do mérito, do Mandado de Segurança é um imperativo legal que deve ser exercido sempre que o Juiz se mostrar convencido da flagrante improcedência do pleito do impetrante, posto que permitir desnecessriamente o trâmite do feito (com notificações, defesa, manifestação do Ministério Público, etc.), ou até mesmo possibilitar a demanda de Ação Ordinária com o mesmo fundamento de um Mandado de Segurança já resolvido em seu mérito, seria uma ofensa ao dever de pacificação social através da eficiente solução dos conflitos, conferido ao Judiciário através do monopólio da Jurisdição, outorgado pelo art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Notas
-
Alexandre de Moraes, Constituição
do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 6ª edição, p.
2.564, editora Atlas.
- Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, 25ª edição, p.23, Malheiros Editores
- José da Silva Pacheco, O Mandado de Segurança e outras Ações Constitucionais Típicas, 4ª edição, p. 112, Ed. Revista dos Tribunais.
- Idem, Op. Cit, p. 113
- Alexandre de Moraes, op. cit., p. 2.554.
- Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 10ª edição, p. 711, editora Atlas.
- Alexandre de Moraes, op. cit., p. 2.554.
- STF, Tribunal Pleno, MS nº 23.652-3/DF, Relator Min. Celso de Mello, Acórdão publicado no D.J. em 16/02/01.
- Alexandre de Moraes, op. cit., p. 2.611-2.
- STF, Súmula nº 304.