I -
Com o surgimento do exame de DNA, a questão da imutabilidade da coisa julgada, nas ações de investigação de paternidade, passou a ser questionada, trazendo a lume a discussão sobre a relativização desse instituto.
Até meados da década de 1990, o entendimento predominante era o da irreversibilidade das decisões transitadas em julgado. Somente se admitia a sua modificação em sede de ação rescisória, nos casos previstos em lei.
Diante da evolução científica, com a precisão trazida pelo exame de DNA, nasceu a discussão da possibilidade de relativizar a coisa julgada nas ações de investigação de paternidade, quando essa já houver sido declarada.
II - Estudo de Caso
Em 1996, a representante legal de um menor, objetivando o reconhecimento da paternidade de seu filho, ajuizou ação de investigação em face de um indivíduo. Entre diversas alegações, dizia ter mantido relacionamento íntimo com ele, daí resultando o nascimento da criança, em meados de 1990. O requerido, contudo, alegava ter-se encontrado com a mãe do menino apenas duas vezes, o que o levava a duvidar da paternidade.
Na época, as partes não possuíam condições de arcar com os exames periciais. O DNA era um exame novo e muito caro, o que impedia a averiguação da verdadeira paternidade por esse meio. Algumas vezes, o Estado arcava com os custos. Mas a espera pela realização do exame demandava anos, o que levava os juízes a julgarem antes mesmo da realização da perícia técnica.
A dificuldade encontrada para a realização do exame de DNA levava a maioria dos magistrados a determinar o duvidoso exame de fator RH, julgando inúmeros casos com base nesses resultados e em depoimentos testemunhais. Com o passar dos anos e a maior acessibilidade ao exame, casos já resolvidos, com a paternidade declarada, vieram a ser questionados em razão do surgimento de prova nova, reconduzindo a discussão para o Judiciário.
No caso em comento, o juiz de primeiro grau declarou ser o indivíduo o pai da criança, baseando-se nos depoimentos das testemunhas e no exame de fator RH. Sentindo-se injustiçado, o suposto pai interpôs recurso de apelação, e a sentença foi mantida, transitando em julgado. Anos mais tarde, nova ação de investigação de paternidade foi proposta, levando o juiz primevo a extinguir o processo sem julgamento do mérito, sob o fundamento da existência de coisa julgada e impossibilidade de nova análise da questão.
Por vários anos os alimentos foram pagos à criança, sem, contudo, o suposto pai assumir a paternidade socioafetiva. Quando o menino completou seus 18 anos, foi procurado para que realizasse o exame de DNA para esclarecer a persistente dúvida. Alguns dias depois veio o resultado negativo do laudo pericial, obtendo o suposto pai a confirmação do que há tempo sustentara. Diante do resultado do DNA, o indivíduo, suposto pai declarado, viu-se no direito de questionar a sentença que determinou a falsa paternidade atribuída a ele.
Torna-se então necessária a indagação acerca da sustentação da imutabilidade do julgado, advindo da presunção relativa, consubstanciada numa decisão judicial que formou uma verdade ficta, distante de uma verdade real.
Cuida-se, portanto, de um caso típico em que se discute a relativização da coisa julgada nas ações em que ocorre a declaração da paternidade. Para isso, requer-se seja desconsiderada uma verdade presumida, oriunda do caráter definitivo das questões decididas judicialmente, em face de uma realidade fática, confirmada pelo exame de DNA surgido posteriormente a essa declaração.
III - Dos Limites da Coisa Julgada
A discussão maior gira em torno da relativização da coisa julgada material. Ainda que enumerada constitucionalmente como direito fundamental, ela não pode apresentar caráter absoluto, quando em confronto com outros princípios também protegidos pelo sistema jurídico. A Constituição da República lista outros direitos fundamentais, tais como o acesso à ordem jurídica justa, a proporcionalidade, a legalidade, a boa-fé, a dignidade da pessoa humana, entre outros.
A coisa julgada formal é aquela que impede a modificação da sentença dentro do mesmo processo, como consequência da preclusão dos recursos. Ou seja, depois de formada, o juiz não pode modificar sua decisão. Contudo, ela possui eficácia dentro do processo em que surgiu, não impedindo que o tema volte a ser discutido em uma nova relação processual. [01]
Já a coisa julgada material é aquela que impede a modificação da sentença dentro do processo em que ocorreu a decisão ou em qualquer outro, posto que a matéria analisada cumpriu todo o procedimento que permite ao Judiciário decidir a questão definitivamente. Assim, depois de formada a coisa julgada material, nenhum juiz poderá concluir de forma diversa. [02]
Defende-se aqui a tese de que, nas ações de investigação de paternidade, não ocorrerá o fenômeno da coisa julgada material quando não houver exaustão na produção das provas, permitindo-se a sua ocorrência somente nos casos onde foram esgotados todos os meios de prova convencionais e, inclusive, o exame pericial de DNA.
A doutrina e a jurisprudência vêm consolidando o entendimento de que, em se tratando de ações de estado, que tratam de direitos indisponíveis da pessoa, a autoridade da coisa julgada deve ser relativizada, sob pena da segurança jurídica se sobrepor à própria justiça.
É o embate entre dois princípios constitucionais: o da segurança jurídica, certificado pela coisa julgada e o direito de estado de filiação, princípio da dignidade humana.
O rigor do instituto da coisa julgada, em inúmeros casos, conduz à injustiça, o que leva ao entendimento de que devem ser impostos limites à imutabilidade dos efeitos do julgado, buscando-se sempre a verdade real, e não a verdade do trânsito em julgado de uma sentença. Isto principalmente, quando é sabido que o Estado não proporciona à pessoa amplo acesso aos meios probatórios essenciais à averiguação da paternidade.
Na maioria das vezes o indivíduo não possui recursos para arcar com o preço do exame de DNA, e o Estado informa que não há possibilidade de realizá-lo de pronto, em razão do elevado número de pessoas aguardando na mesma situação. Diante disso e de inúmeros outros fatores, nos deparamos com casos em que ou a paternidade é injustamente declarada com base em provas escassas ou, até mesmo, declarada pela revelia do investigado, que se queda inerte por desconhecer as consequências jurídicas do seu ato.
Diante de decisões declaratórias da paternidade, que poderão ser contraditadas no futuro, seja pelo surgimento de um DNA negativo, seja pela descoberta de que o indivíduo não pode ter filhos, ou até mesmo pela simples revelação da verdadeira paternidade pela mãe biológica ao suposto pai, o argumento da força da coisa julgada é questionável, tendo em vista que ali se encontram interesses indisponíveis de todas as partes.
Não é crível que o rigor formal, justificado pela segurança jurídica, se sobreponha à justiça, impedindo o indivíduo de obter a prova necessária em juízo para declarar a verdadeira paternidade. Trata-se de um direito de mão dupla, e não apenas de uma das partes interessadas.
Maria Berenice Dias, em artigo de sua autoria intitulado "Investigação de Paternidade, Prova e Ausência de Coisa Julgada Material", preleciona a respeito da prova de DNA:
"omissis...
De qualquer forma, o que descabe é a falta de provas (decorrente quer da omissão do demandado, quer do fato de as partes militarem sob o pálio da assistência judiciária gratuita) vir a gerar definitivamente a impossibilidade de alguém buscar a identificação de seu vínculo familiar. Quando não logra o autor provar os fatos constitutivos de seu direito, ou seja, que é filho do réu, o desacolhimento da ação não dispõe de conteúdo declaratório de que o réu não é o pai do autor. A ausência de elementos de convicção no juízo criminal enseja a absolvição. Ainda que não haja essa possibilidade na esfera cível, a falta de probação não pode levar a um juízo de improcedência, mediante sentença definitiva, conforme preconiza Humberto Theodoro Júnior." [03]
Rolf Madaleno, no mesmo sentido, considerando os direitos indisponíveis e o fato de a ciência genética ter atingido níveis de certeza e segurança, prescreve:
"Deve haver a repulsa do entendimento que segue em defesa do escopo político e social da coisa julgada, quando um laudo de DNA pode atestar a certeza jurídica da filiação e completar ou reescrever a verdade dos vínculos de parentesco que, antes de estampar a realidade dos registros púbicos, acalma a alma agitada de cada um dos protagonistas destas ações que procuram a semente exata de sua criação." [04]
Em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, Mauro Nicolau Júnior cita Belmiro Pedro Welter, que sustenta a tese que "somente haverá coisa julgada material quando na ação de investigação de paternidade forem produzidas todas as provas permitidas em Direito." E afirma ainda que, diante da indisponibilidade do direito à paternidade biológica, no caso de omissão da perícia de DNA na fase de instrução da investigatória, há violação à literal disposição do art. 130 do CPC, em que estariam insertos não só o poder, mas o dever do juiz de "determinar a produção de todas as provas", inclusive a pericial (DNA). "Enquanto não esgotada a instrução, não poderia haver o julgamento de mérito em torno de direito natural, constitucional e indisponível de personalidade. [05]
IV- Do entendimento dos Tribunais Superiores e da Possibilidade de Ajuizamento de Nova Ação de Investigação de Paternidade
O Superior Tribunal de Justiça, verdadeiro tribunal da cidadania, sempre em busca de atender aos fins sociais do processo e às exigências do bem-estar comum, já vem aplicando a teoria da relativização da coisa julgada em algumas ações de investigação de paternidade, como no caso do Recurso Especial 226.436-PR, de relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira:
PROCESSO CIVIL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. REPETIÇÃO DE AÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA, QUE TEVE SEU PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR FALTA DE PROVAS. COISA JULGADA. MITIGAÇÃO. DOUTRINA. PRECEDENTES. DIREITO DE FAMÍLIA. EVOLUÇÃO. RECURSO ACOLHIDO.
I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.
II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.
III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".
IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum. (T4- Quarta Turma. 28/06/2001. DJ 04/02/2002. p.370. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira.)
Esse precedente firmado no Superior Tribunal de Justiça concluiu pela relativização da coisa julgada nas questões de Estado, em que o interesse público avulta com maior intensidade na efetivação do direito da personalidade, baseando-se nas transformações familiares e nas descobertas genéticas, que colocam o magistrado diante do grau máximo de certeza, nada justificando que se ponha no mundo jurídico o que não está na verdade biológica.
Nesse sentido, o Ministro do STJ José Augusto Delgado comenta: "Há de se ter como certo que a segurança jurídica deve ser imposta. Contudo, essa segurança jurídica cede quando princípios de maior hierarquia postos no ordenamento jurídico são violados pela sentença, por, acima de todo esse aparato de estabilidade jurídica, ser necessário prevalecer o sentimento do justo e da confiabilidade nas instituições".
V - Lei n. 12.004/2009 - Regula a Investigação de Paternidade dos filhos havidos fora do casamento.
Com a promulgação da Lei n. 12.004/2009, que alterou a Lei n. 8.560, consolidando o entendimento de presunção da paternidade nos casos em que o suposto pai se nega a realizar o exame de DNA ou submeter-se a qualquer outro meio científico de prova, restou claro o entendimento de que a recusa aos exames torna verdadeira a paternidade.
Essa presunção não deve ser mantida quando do surgimento de prova nova, realizada inclusive com o consentimento das duas partes envolvidas. Não há porque perpetuar uma situação de fato inverídica, punindo o indivíduo com uma declaração falsa, atribuindo a ele uma responsabilidade que não é sua.
De acordo com o texto constitucional e infraconstitucional, por tratar-se de direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, pode-se questionar a condição de filho, ou de pai, com base em novos elementos, reabrindo a discussão na justiça.
VI - Conclusão
Considerando essas questões e o entendimento predominante na doutrina e jurisprudência pátrias, tem-se que a coisa julgada deve ser preservada quando realmente proteger o direito que está, em tese, garantido à parte. Mas quando ela, como instituto processual, obstaculizar o exercício de um direito que não pôde ser exercido por insuficiência de provas, em determinada época, não deverá sobrepor-se à verdade real.
Não se trata de assolar o Estado com novas ações de investigação de paternidade ajuizadas posteriormente à aludida declaração. Ocorre que, tendo o indivíduo prova nova e robusta, que contraria a decisão judicial, deve ser concedido a ele o direito de questionar aquela declaração.
Assim, diante da fragilidade das provas colhidas no curso das ações de estado, entende-se por demais injusto aceitar a imutabilidade das verdades oriundas das decisões judiciais, presumidas pelo julgador e atribuídas aos indivíduos por toda a vida, implicando inclusive em direitos sucessórios.
Como visto, os direitos da personalidade devem ser sopesados com os demais direitos consagrados no texto constitucional. Quando ocorre a colisão de interesses e valores presentes na sociedade é aceitável reduzi-la a uma colisão de direitos fundamentais, averiguando o peso e valor de cada um.
Todas essas considerações nos levam a ponderar e repensar o equilíbrio dos valores de justiça e de segurança. No estado democrático de direito não deve ser permitida a superestimação da proteção constitucional da coisa julgada, uma vez que essa proteção é relativa diante de situações como esta.
Admitir que as normas ditadas pelo Estado se sobreponham ao direito ao verdadeiro reconhecimento à origem da pessoa, portanto, de sua dignidade, é aceitar que esse direito perca seu principal suporte para uma sociedade desprovida de qualquer discernimento entre o justo e o injusto, entre o certo e o errado.
O estado de pai e filho não impera devido a uma sentença judicial, mas nasce com o ser humano, se desenvolve pela vida e cria vínculos muito mais complexos do que aqueles nascidos em um processo. Não se impõe a ninguém uma filiação biológica, tampouco afetiva.
Nesse contexto de diversas opiniões, princípios e ideologias impera a validade dos valores consagrados ao longo dos anos. Diante de prova nova autoexcludente, resta ao Estado fazer valer esses valores, alcançando a verdade e a justiça.
Por último, fazendo uma analogia à idéia de justiça, cabe apenas a citação do que foi dito por Antígona, na tragédia grega de Sófocles:
"Mas Zeus não foi o Arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela Justiça...
E nem me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis: não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram."
Notas
- SANTOS, M. A. Primeiras linhas de direito processual civil. 3º V. São Paulo: Saraiva, 1989.
- ASSIS, Araken de. Breve contribuição ao estudo da coisa julgada nas ações de alimentos, Revista da Ajuris, n.º 46, p. 95-96.
- DIAS, Maria Berenice. Investigação de Paternidade e a questão da Prova. Revista de Processo nº 95, jul-set/99, pp. 97/99.
- MADALENO, Rolf. A coisa Julgada na Investigação de Paternidade. Disponível em: http://www.rolfmadaleno.com.br/sites. Acesso em: 27 de abril de 2009.
- NICOLAU JÚNIOR, Mauro. Negatória de Paternidade e Coisa Julgada: Coisa Julgada ou DNA Negativo. O que deve Prevalecer?. Revista Brasileira de Direito de Família. Ano V – Vol. 21 – Dez.-Jan. 2004.