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A Lei Antitruste e a AMBEV.

Uma análise sob a norma-da-razão

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Agenda 25/09/2009 às 00:00

Muito há ainda de ser dito acerca da Lei 8.884/94, a lei "anti-confiança". Aqui vamos demonstrar por que esta lei é injusta e deve não apenas sofrer reparos aqui e ali, mas ser eliminada para sempre do sistema jurídico pátrio.

Aqueles políticos, professores e líderes sindicais que maldizem as grandes empresas estão lutando por um inferior padrão de vida [01].

Ludwig von Mises


1.Introdução

No dia 22 de julho de 2009, o CADE deliberou pela exação da maior multa já aplicada na história da instituição: em valores atualizados, R$ 352.693.696,58 (trezentos e cinquenta e dois milhões, seiscentos e noventa e três mil, seiscentos e noventa e seis reais e cinquenta e oito centavos), contra a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev).

A representada foi penalizada em virtude de um programa de fidelidade e bonificações denominado "Tô Contigo" e que, na visão do órgão, constituía um plano de descontos não-linear, a exigir do varejista, como contrapartida, "a exclusividade ou a compra de share AmBev mínimo de 90% do total, de maneira seletiva e não-sistemática".

O enquadramento legal consubstanciou-se pela infração aos artigos art. 20, I e IV c/c art. 21, IV, V e VI da Lei 8.884/94, e a sanção administrativa foi aplicada com fulcro no artigo 23, I, com os agravantes previstos pelo artigo 27, II (má-fé) e III (vantagem pretendida.), além da determinação à empresa para publicar o extrato do texto da decisão, por sua conta, em jornal nacional de grande circulação, em anúncio de meia página, por dois dias seguidos de três semanas consecutivas, e de ser inscrita no "Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor para informar aos consumidores a respeito das práticas perpetradas e seus efeitos negativos".

Da língua inglesa, o termo "trust" designa o acordo entre empresas de forma que uma delas, geralmente a que detenha uma posição central no processo de produção, detenha o poder de administração sobre as demais, como forma de promover a racionalização e a diminuição de custos e assim tornarem-se mais competitivas. Sob o aspecto da cultura jurídica, denomina as formas que se assemelham a estes acordos e que passaram a ser proibidas por força da lei norte-americana, tendo sido a primeira delas o "Sherman Act", de 1890, cujo verbete foi adaptado pata o português, com idêntico sentido. Porém, "trust" também significa, em seu uso comum anglo-saxão, "confiança", e mui propriamente, haveremos de demonstrar, nas linhas seguintes, porque a lei antitruste é, antes de tudo, uma lei "anti-confiança".

O texto a seguir promete ser longo, embora não terminativo, e embora discorra eventualmente sobre texto legal e a sua juridicidade, não se vincula a um exame estritamente jurídico. Muito há ainda de ser dito acerca da lei 8.884/94, a lei "anti-confiança", e aqui vamos demonstrar por que esta lei é injusta e deve não apenas sofrer reparos aqui e ali, mas ser eliminada para sempre do sistema jurídico pátrio, bem como, por extensão, também o órgão responsável pela sua aplicação, qual seja, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE.


2.Como veio a lume a lei antitruste no Brasil?

Ainda me lembro das reportagens televisivas que transmitiam os depoimentos dos congressistas brasileiros, e se há algo que não me consta à época, durante todo o período em que transcorriam os debates nas tribunas, foi ter havido alguma explanação epistemológica sobre a necessidade de implantarmos em solo pátrio uma lei antitruste. Refiro-me a estudos de casos e demonstrações técnicas que viessem a demonstrar que determinadas práticas comerciais terminaram (factualmente) ou terminariam (em tese) por dominar o mercado e cumulativamente, prejudicar os consumidores.

Não, nada disso. O que todo parlamentar falava era simplesmente sobre a necessidade de o Brasil possuir uma lei antitruste, assim como, por exemplo, um adolescente procura convencer o pai da urgência premente de comprar-lhe um tênis novo. O assunto do antitruste, portanto, foi uma moda que, sem ninguém saber informar objetivamente de onde ou como teria surgido como uma idéia formadora da iniciativa legislativa, repentinamente tomou o Congresso e os jornais como uma febre contagiante, como um troféu para os deputados e senadores que, ávidos por luzes e câmeras, se sobressaíssem em empunhar esta bandeira.

Possivelmente quem possa nos oferecer uma resposta a esta indagação seja o professor Dominick Armentano, em seu livro "Antitrust – the case for a repeal [02]" (Antitruste – o caso a ser repelido), explica como se processou a campanha organizada desde os Estados Unidos para que leis semelhantes fossem promulgadas em vários outros países:

Investigações e esforços em execuções também foram expandidos durante a administração Clinton sob a Promotora Geram Assistente Anne K. Bingaman e seu sucessor na Justiça, Joel Klein. Além do agudo aumento em multas criminais corporativas aplicadas por alegada fixação de preços, os caçadores-de-trustes de Clinton (incluindo o FTC) expandiram dramaticamente o número de investigações sobre fusões, abriram processos questionáveis endereçados a assuntos de integração vertical, forneceram suporte à internacionalização do combate antitruste, e produziram volumosos dossiês com incriminações contra firmas tais como Staples, Intel, e, lógico, a Microsoft.

Não coincidentemente, a lei brasileira não passa de mera transliteração de conceitos legais importados do direito norte-americano, com uso dos mesmos termos diáfanos tais como "mercado relevante", "posição dominante", "preços discriminatórios" e outros mais sobre os quais teceremos uma efetiva análise adiante.


3.Considerações sobre o enquadramento pelo art. 20

Como informado, a empresa foi enquadrada nos artigos 20, I e IV c/c art. 21, IV, V e VI da Lei 8.884/94. Aqui, para conforto, e para que possamos comentar sobre o teor do texto legal, o reproduzimos a seguir:

Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

(...)

IV - exercer de forma abusiva posição dominante.

§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo de empresas controla parcela substancial de mercado relevante, como fornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto, serviço ou tecnologia a ele relativa.

§ 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior é presumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vinte por cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia.(Redação dada pela Lei nº 9.069, de 29.6.95)

3.1.Vaguidade e Anti-Juricidade

O que em primeiro lugar há de se comentar assenta-se sobre a extrema injuridicidade contida no caput do art. 20, a meu ver, absolutamente incompatível com o estado de direito. A boa doutrina nos ensina que a lei há de estabelecer para o administrado uma conduta negativa (deverá abster-se do ato, tal como "matar alguém") ou positiva (deverá produzir o ato, tal como "votar").

Bizarra é também a previsão de que a infração independa de culpa. Ora, um delito há de ser cometido com dolo ou culpa. Com dolo, se foi cometido propositalmente, ou se o agente conhecia os potenciais efeitos do seu ato e os desprezou ao consumá-lo; com culpa terá agido se o cometeu em virtude de imperícia, imprudência ou negligência. Portanto, indiciar alguém sem culpa, considerando que o agente foi prudente e diligente para que, no possível, a situação prevista em lei não se consumasse, significa afirmar, sob a última instância da lógica pura, que ele não concorreu para a sua existência!

Mas então temos um problema à frente: se a pessoa (física ou jurídica) não agiu com negligência, isto é com culpa, então agiu com diligência, a saber: preveniu-se, anteviu e evitou, razoavelmente, a situação que o legislador denomina de "atos de qualquer forma manifestados", o que reduz estes atos, na verdade, a meras situações de fato.

Vejamos agora a expressão "que tenham por objeto ou que possam produzir os seguintes efeitos". A oração "que tenham por objeto" denuncia a vontade do acusado em produzir os efeitos, o que poderia remeter ao caso do dolo, mas a expressão seguinte "ou que possam produzir os seguintes efeitos", de pronto já a revoga, tornando-a irrelevante. Isto significa que o cidadão pode ser indiciado tanto sem "pretender" quanto sem "prever" que os efeitos sejam produzidos. Ainda, coloca os "efeitos" no campo da mera possibilidade, ao estabelecer que os atos "possam" vir a ser produzidos, aqui autorizando CADE a acusar alguém em virtude de uma mera "tese" econômica, e que enfatiza esta disposição com a parte final: "ainda que não sejam alcançados" (tanto que nunca o foram, como veremos adiante!).

Sem exageros, o indigitado artigo autoriza que uma empresa seja indiciada por uma situação sobre a qual ela não concorreu; não pretendia concorrer; não previa que pudesse acontecer; os seus efeitos não se produziram; mas poderiam - em tese - acontecer!

Repetindo: um determinado empresário poderá ser autuado por uma situação de fato, (o tal do "ato por qualquer forma manifestado), mesmo que em nada tenha contribuído para tanto, mesmo que não desejasse os efeitos, mesmo que nem sequer o antevisse e ainda que não tenha sido negligente ao prevê-lo, se fosse o caso, para assim evitá-lo, e até mesmo que não tenha ocorrido o prejuízo ao bem jurídico alegadamente a ser protegido, mas que este "pudesse" vir a ocorrer, isto é, hipotética e potencialmente, e claro, a critério do CADE!

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Creio que nem sequer a Alemanha nazista chegou a ser tão inventiva para a perseguição dos judeus! Pela absurda abstração e indefinição do art. 20 da lei 8.884/94, reputo-a como inconstitucional, por colidir com o art. 5º, inciso XXXIX (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal) e os incisos LIV (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal) e LV (aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes). Além disso, o artigo também viola o chamado "espírito da Constituição", ou os seus "princípios invisíveis". Ora, que Constituição é essa que permite ao estado indiciar alguém por ferir um bem jurídico "em tese"?

Com efeito, a nossa Carta Magna estipula que não basta à lei ter existência: o crime precisa ser "definido". Adicionalmente, a conduta do agente precisa ser anti-jurídica, isto é, ou ele age de forma consciente ou deixa de agir em virtude de cuidados que tinha por dever tomar, o que revelaria, pelo menos, a sua culpabilidade. O objeto da lei demanda concretude, de forma a propiciar ao cidadão a possibilidade de conhecê-lo e cumpri-lo, ou de outra forma não há espaço para o contraditório e a ampla defesa.

3.2.Castração da Natureza Empresarial

Considerando, desta forma, que uma empresa pode vir a ser acusada tanto por agir quanto por não agir, resta-lhe somente uma conduta: agir "negativamente", isto é, emascular a sua natureza empresarial de procurar produzir mais e melhor para estabelecer para si própria um limite de participação no mercado. Foi isto precisamente o que fez a General Motors [03] entre os anos 1937 até 1956, decisão que a fez perder dramaticamente espaço para montadoras alemãs e japonesas entre os anos 70 e 80. Como hoje sabemos mais, esta empresa já não existe sob a forma de um empreendimento puramente privado, e mal consegue segurar 19,1% do mercado doméstico norte-americano. Sem possuir o controle sobre as estratégias dos concorrentes, e menos ainda sobre as preferências dos consumidores, um comportamento anti-natural como o que adotou a GM somente se poderia se refletir em carros "não tão atraentes" ou em preços "não tão vantajosos", ou, em outras palavras, punir seus melhores profissionais e preterir seus verdadeiros juízes, os consumidores.

3.3.Sobre a tipificação de conduta sob a norma "Per Se"

Agora chega o momento de refletirmos sobre a última pilastra do comando legal em comento que resta ereta: guarda pelo menos alguma potencialidade verdadeira a expressão "possam produzir seus efeitos, ainda que não sejam alcançados"? Aqui chamo a atenção do leitor para a ideologia que emerge a consagrar o dispositivo normativo: quando ela prevê a desnecessidade de que os efeitos sejam alcançados, reconhece de antemão, por via empírica, que jamais em toda a história houve um caso de monopólio de fato que perdurasse no tempo – e que, cumulativamente(!) - prejudicasse o consumidor, fosse pelo estabelecimento de preços majorados ou fosse pela estagnação tecnológica ou ainda, pela restrição à produção. Portanto, o legislador optou por divorciar os atos dos seus efeitos no plano da realidade econômica para prestigiar a teoria do reconhecimento da norma "per se", mais apta à prática forense, relegando à sarjeta o espírito da norma-da-razão ("rule-of-reason"), a qual conduziria a uma investigação econômica sobre a materialidade dos fatos e dos efeitos. Traduzindo: importa mais ao juiz, freqüentemente ignorante em matéria econômica (no que é atendido pelo legislador), confrontar a prática do ato com a hipótese de incidência consubstanciada no texto legal para proceder ao exame do mérito. Assim fica mais fácil o enquadramento, mas principalmente, imuniza-se a alegação da potencialidade dos efeitos contra um exame de veridicidade quanto à real probabilidade de ocorrerem.

Já adiantamos no parágrafo anterior sobre a inexistência histórica de algum monopólio "de fato" que tivesse perdurado no tempo e que – eis a razão de ser ou pelo menos o pretexto da ideologia antitruste – dominasse o mercado, a prejudicar o consumidor com produtos em quantidade insuficiente, tecnologia estagnada ou preços "abusivamente" majorados. Um célebre caso foi o da Microsoft, que por quase uma década exerceu uma posição de liderança mundial em matéria de softwares, mas que nunca deixou de ser reconhecida pelo público como a detentora dos melhores produtos, que, ao invés de encarecerem, foram se barateando, universalizando e evoluindo. Como hoje sabemos, tão somente em função do desenvolvimento do mercado, atualmente este gigante da computação sofre com a concorrência arrojada do Google, que inclusive, recentemente criou o seu próprio navegador de internet, bem como com o Yahoo e outros mais concorrentes, que sempre permaneceram com o direito de acesso ao mercado intocado, tendo por única barreira a competitividade da líder.

Em Antitrust and Monopoly - Anatomy of a Policy Failure [04] ("Antitruste e Monopólio – Anatomia de uma Política Falaciosa"), onde se pode ter um amplo conhecimento da perseguição contra a empresa de Bill Gates, bem como contra outros cinqüenta e quatro casos de empresas que foram indiciadas tão somente por serem mais eficientes, inovadoras e competitivas, o professor Armentano também elucida no plano teórico sobre a extrema dificuldade de um monopólio de fato vir a se manter hegemonicamente, como por exemplo, no seguinte trecho [05]:

Estabelecer um monopólio em um mercado livre exigiria uma perfeita capacidade de previsão empresarial, tanto no curto quanto no longo prazo, com respeito à demanda dos consumidores, tecnologia, localização, suprimentos e preços, e milhares de outras variáveis incertas; também iria requerer uma definição não ambígua de mercado relevante. Poucas firmas, senão nenhuma, na história econômica, antes ou depois do antitruste, tiveram alguma vez alcançado tal inerrante perfeição, e sozinhas realizaram isto por extensos períodos de tempo. A assim chamada "vida boa" que se reputa gozar pelo monopolista no livre-mercado é, como deveremos descobrir abaixo, parte do folclore da história antitruste.

Também o professor John R. Lott [06] se manifesta nestes termos:

Contrariamente à opinião popular, os monopólios são raros e difíceis de manter, e as poucas situações reais de monopólios que existem beneficiam os consumidores; em alguns casos, tal como ocorre com as companhias farmacêuticas, eles literalmente salvam vidas. Mas o mais importante, o tipo de esquema de fixação de preços alegadamente iníquo que os monopólios empregam – tal como os preços discriminatórios – freqüentemente aumentam a disponibilidade de produtos ou serviços e alavancam a inovação.

Por sua vez, sobre o fundamento econômico da escola neoclássica, qual seja, a teoria dos modelos isolados de competição perfeita, responsável pela fundação da legislação antitruste, socorremo-nos de Armentano, novamente [07], para colocarmos uma séria desconfiança sobre a potencialidade de efeitos assumida como apriorística pela lei 8.884/94:

A teoria da competição perfeita é ao mesmo tempo ilógica e irrelevante. Além disso, ela simplesmente assume que devam existir condições que necessariamente resultem em um equilíbrio. A competição comercial, em outra mão, é sempre um processo em que os empreendedores, com informação imperfeita, tentam realizar ajustes na condições do mercado de modo que uma coordenação mais próxima entre os planos da oferta e da demanda seja alcançada.

(...)

A política antitruste nos Estados Unidos tem sido freqüentemente associada com aquela visão de competição inerente a um equilíbrio competitivo perfeito.

(...)

Se a competição perfeita é ilógica e irrelevante, então as estruturas do mercado, ou as mudanças na estrutura dos mercados, não revelam nada a priori com relação à competição ou ao bem-estar.

Que haja uma corrente representativa de ilustres economistas a demonstrar a sua tese tanto em bases teóricas quanto factuais, para afirmar categoricamente que os tais efeitos potenciais não se realizarão, pelo menos não de uma forma duradoura e que seja capaz de impor condições aos consumidores, e tomando por base a mera suposição de que "possam" estar com a razão, então a potencialidade representada pelo texto do caput do art. 20 esfacela-se por completo, por falta de uma credibilidade, extinguindo irretorquivelmente a ratio legis antitruste. Pois, como poderemos acusar alguém por um ato de que não tem culpa, que não previu, que não quis e cujos efeitos, que poderiam se realizar, embora não realizados, podem muito bem jamais acontecer?

3.4.O que vem a ser um "mercado relevante" ?

O que pode ser considerado como um "mercado relevante"? Esta expressão, tão concreta quanto a atmosfera andina, merece um mínimo de trato, haja vista que os seus limites são as fronteiras por onde pode a empresa pensar em se expandir. Quanto mais estrito o conceito, mais cuidadosa haverá de ser. Talvez esta pergunta necessite ser destrinchada, para uma análise mais acurada.

A que mercado se refere a lei?

Há um limite geográfico? Abarcará o mercado local, o regional, o nacional? Os produtos importados contam?

E quanto ao tipo de comércio, para ficarmos no caso da AMBEV: teriam sido computados somente os bares, ou contariam também as distribuidoras e os supermercados? Aqui é preciso ter cuidado, pois os bares freqüentemente têm interesse no patrocínio do fabricante, que lhes oferecem um trato na decoração, fornecem freezers, mesas, cadeiras, porta-guardanapos, tulipas decoradas e descansos de copos, o que, convenhamos, é uma ajuda e tanto, principalmente para os estabelecimentos dotados de reduzido capital. Todavia, as distribuidoras e principalmente os supermercados, não precisam de nada disso, e com efeito, não se vêem nestas firmas a oferta de uma só marca de cerveja ou outro produto. Em tempo, somente para citar o meu caso, estimo adquirir 90% da minha cerveja nos supermercados, o que coloca qualquer posição de dominância no patamar de um décimo da participação que venham a ocupar.

Agora, quanto aos produtos, contarão somente as cervejas, ou também as águas minerais e os refrigerantes? Em tempo, qual seria a taxa de consumidores que, em face dos altos preços da cerveja que adviriam quando o monopólio enfim, lograsse bem-sucedido, passassem a optar, digamos, por bebidas destiladas, vinho ou ainda...água de coco? Quem poderia prever com um mínimo de exatidão esta decisão que pertence a cada um dos milhões de consumidores?

Qual a relevância a que se refere a lei?

Se, apenas para definirmos o comércio, conceito que o CADE avoca pra si unilateralmente, já nos deparamos com um problema complexo, imagine definir o que seja "relevante". O que será relevante? Será um mercado expressivo em valor? Ou será um mercado de amplo consumo por todas as faixas de renda da população? Ou será um considerado de alta essencialidade? O mercado de iates, com certeza, possui uma expressão econômica formidável, mas ele existe para um grupo seleto de cidadãos... A produção de agulhas e outros aviamentos é utilizada por praticamente toda a população, mas é significativa em valor? A própria cerveja é consumida por todas as classes sociais, mas é um artigo essencial?

Como pode saber de antemão um empresário se o seu produto e o seu público-alvo constituem um mercado relevante, de modo que tenha como evitar cair em infração?

3.5.Que significa exercer uma posição dominante?

Alguém pode argüir que aqui estamos dispostos a uma manobra diversionista, jogando com as palavras. Nossa resposta a estas pessoas é um sonoro "não". Pois existe uma diferença entre ocupar uma posição de liderança e exercer um domínio. Que domínio, pois, pode exercer uma empresa dentro de um mercado livre, onde as decisões são tomadas, em última instância, pelos consumidores? Um domínio se impõe. Como pode impor-se uma empresa ao consumidor se ele vier a considerar que seu concorrente lhe oferece um produto mais vantajoso, por qualquer critério? Vejamos o que diz Mary Bennet Peterson [08] a este respeito:

Quem de fato pôs o ferreiro da vila fora do mercado, ou mais recentemente, o fez com o vendedor de gelo, ou ainda mais recentemente, com o doceiro da esquina? Muitos podem estar inclinados a dizer que estes empreendedores de outra era foram economicamente vencidos pelos gigantes de Detroit, as grandes utilidades (domésticas), Westinghouse e General Eletric, as redes de alimentos de A&P, Safeway, Grand Union e outros grandes conglomerados. Eu argumentaria, ao contrário, que o real algoz do vendedor de gelo foi o consumidor – a pessoa que comprou um refrigerador elétrico ou a gás.

Além disso, perguntamos qual o fundamento de ordem econômica que autorize estipular que alguém possua uma posição dominante ao participar com 20% de um "mercado relevante"? Porquê não exerceria com 19.9%, ou com 50,1%? Considerando, a priori, que um monopólio, por definição lógica, significa ocupar 100% de um mercado, as percentagens obtidas a menor refletem uma teoria sobre a elasticidade que as firmas têm de poderem alterar seus preços a maior até o ponto de ruptura, qual seja, o momento em que os consumidores deixem de comprá-los.

Esta elasticidade é buscada por meio de fórmulas econômicas obtidas a partir de modelos estáticos e com variáveis controladas, e podem até servir para que as próprias empresas os utilizem como agulhas magnéticas para traçarem estratégias de vendas. Entretanto, a determinação linear por parte de um órgão governamental sempre terminará por igualar na marra o que é - e deve ser - por natureza, diferente: a estrutura interna de cada uma das empresas, o que inclui sua organização, logística, localização, capacidade de inovação, etc.. Além disso, desprezará uma multiplicidade de fatores competitivos não expressos em termos de preço. Por exemplo, dois shampoos podem ser quimicamente iguais, porém, um deles pode carregar a foto de um personagem ou popstar famoso ou que subitamente veio a se tornar famoso; este é um dado extremamente subjetivo que ninguém pode ao certo determinar o grau de sucesso, muito menos o CADE por meio de alguma portaria ou resolução. Neste caso, o que ele pode - se é que deve - fazer para evitar que as pessoas desejem comprar o shampoo mais caro que contenha tal diferencial, sem desapontá-las?

Assim explica o professor Armentano [09]:

Há sérias dificuldades metodológicas quanto à tentativa de medir a competição desta maneira, ou para se inferir qualquer coisa significativa relativa a uma eficiente alocação de recursos. A dificuldade mais séria é que qualquer teste de elasticidade cruzada no tempo inevitavelmente confundiria uma mudança nas vendas devido a uma mudança de preço com uma mudança nas vendas devido a quaisquer outros fatores. Desde que outras coisas nunca são constantes em uma situação verdadeira, jamais haverá alguma garantia que alguma delas, de fato, esteja testificando alguma elasticidade cruzada qualquer que seja.

3.6.Posição Dominante x Mercado Relevante

Dadas as dificuldades conceituais e/ou metodológicas inerentes a cada um dos termos estudados, que tal complicar um pouco mais?

Assumido que a delimitação geográfica do mercado seja uma questão para o qual o CADE seja autorizado a definir caso a caso, como responder ao problema de que, em um mercado regional, nem todos os concorrentes serem firmas regionais?

Imaginemos, por exemplo, que no mercado regional abrangido pelos estados do Pará e Amapá uma determinada cervejaria, que aqui denominaremos de Cervejaria Regional Ltda, exerça uma posição dominante, e que por causa disso venha a ser indiciada por abuso desta posição. Todavia, o mercado da cerveja em Belém não é só constituído por concorrentes locais e regionais, mas também concorrentes nacionais. Estes, por sua vez, podem exercer uma posição dominante nacional. No caso, embora não sejam expressivos naquela circunscrição, têm plenas condições de poder alocar recursos para lá e concorrer até mesmo em pé de superioridade. Na verdade, para isto, nem sequer precisam ocupar qualquer posição relativa de dominância, bastando somente que sejam conglomerados maiores do que a Cervejaria Regional Ltda.

3.7.Estaria a AMBEV limitando a livre concorrência?

Assumindo que o programa de descontos e bonificações "Tô Contigo" consista tão somente de acordos contratuais, isto é, que não abrangeu práticas efetivamente criminosas tais como ameaças físicas, sabotagens ou cumplicidade com funcionários públicos, todas as práticas adotadas pela AMBEV são naturais e lícitas. Importa conferir que um acordo deste tipo se assemelha a um contrato de franchising, embora mais precário. Ora, quantas lojas há que vendem produtos exclusivos de um só fabricante? Os shopping-centers estão lotados de acordos assim!

Mas não fiquemos aí. Nossa Constituição versa que somos todos iguais perante a lei. Ou não somos? Se é assim, porque todos os postos de combustíveis vendem produtos de uma só bandeira? E porque as concessionárias de automóveis fazem o mesmo?

É certo que o acordo entre o fabricante e o bar tenha por objeto excluir, naquele ponto de venda, os concorrentes. Porém, quem há de decidir isto, em última instância, são os consumidores. Caso eles não queiram prestigiar esta iniciativa – e os bebedores de cerveja habitualmente fazem mesmo isto – tal esquema se esfarela no ar.

Não obstante, os fabricantes concorrentes não teriam sido jogados contra a barreira de pneus. Os acordos que a AMBEV mantinha com os bares não eram definitivos; antes, guardavam uma relação de provisoriedade, uma vez que os bares poderiam revogá-los a qualquer tempo (respeitadas as condições contratuais), e certamente fariam isto se recebessem melhores ofertas – isto é livre mercado!

Ainda, tal programa não tinha o condão de exaurir todos os bares e pontos de venda. A AMBEV não tem o poder de baixar uma portaria que proíba a fundação de novos bares. Estes por sua vez, sempre aparecem aqui e desaparecem ali, por quaisquer motivos que não raro nada têm a ver com a disputa entre os fabricantes de cerveja. Aliás, sob este ponto de vista é interessante mesmo imaginar que o programa da AMBEV teria o condão de abrir mais mercado no tanto que colaborasse para se abrissem mais bares, o que, de forma nenhuma, poderia ser confundido com uma "restrição" à concorrência.

Além do mais, diferentemente de arranjos realizados com a mão estatal, tais como subsídios, financiamentos diferenciados ou reservas de mercado, a AMBEV suportava um custo que se traduziria ou no preço final do produto, ou em uma menor lucratividade por unidade vendida. Isto teria gerado para os concorrentes uma vantagem comparativa e uma oportunidade de oferecer um diferencial mercadológico.

3.8.Descontos não-lineares configuram uma prática predatória?

Vejamos como se posicionou o CADE, segundo nota emitida em seu site [10]:

O Cade considerou que as provas constantes nos autos do Processo Administrativo comprovam que o denominado programa de fidelidade e bonificações "Tô Contigo" exigia como contrapartida à entrada dos pontos de vendas a exclusividade ou a compra de share AmBev mínimo de 90% do total, de maneira seletiva e não-sistemática. Desse modo, o Cade concluiu que se trata de programa de descontos não-linear, carreado por empresa com posição dominante no mercado de cervejas. Por isso, o Plenário julgou que o "Programa Tô Contigo" possui potencial de arrefecimento da concorrência, de fechamento de mercado e de elevação artificial dos custos de concorrentes. (grifos nossos)

Em toda a cultura antitruste, não há nenhuma teoria mais nonsense do que a que pretende fundamentar a proibição de preços diferenciados, ou, em linguagem mais orwelliana, "preços discriminatórios".

Preços diferenciados são tidos como malévolos à população, pois alega-se que são praticados em virtude da qualidade dos compradores, distinção esta que não haveria de ter lugar, vez que em nada se refletem nos reais custos de produção.

Somente para que tenhamos um referencial tomado por base, é o próprio estado o primeiro a praticar preços diferenciados. Ele o faz por meio dos Correios, com a "carta social", e também com os fornecedores de água e de luz com as "tarifas sociais". Também vende remédios abaixo do custo, com a "farmácia popular" e até mesmo refeições prontas com os "restaurantes populares". Enfim, esta lista é longa, e creio que qualquer pessoa possa conferir.

Todavia, há ainda um caso mais curioso de prática de preço diferenciado, praticado por particulares, e que o estado aplaude: são as licitações, especialmente os pregões. Aqui peço que o leitor não se confunda: tudo bem que o vencedor de um certame licitatório, digamos, um pregão, em que o preço final é obtido a partir de lances verbais, disputa em pé de igualdade com os demais concorrentes. Mas não é disso que se trata. A questão é: uma vez que um fornecedor vença uma licitação, haverá ele de baixar o preço do produto à população em geral ao mesmo nível que o praticou para o governo?

Se até agora não convenceram os argumentos para demonstrar que a criminalização da diferenciação de preços é um absurdo, convidamos o leitor a buscar em Freedomnomics, de John R. Lott, vários casos de discriminação de preços tais que sempre resultam de um critério econômico racional e, as mais das vezes, benéfico à população. Assim ele se justifica [11]:

Então é isto necessariamente algo ruim? A discriminação de preços freqüentemente permite às firmas produzir mais e aumentar o bem-estar geral da sociedade. Isto é especialmente verdadeiro para monopólios que fazem grandes investimentos em pesquisa e desenvolvimento ou em infra-estrutura; se eles não tivessem a permissão de discriminar preços, simplesmente teriam de cobrar um preço uniforme e alto para poder recuperar seus custos com P & D. Isto colocaria seus produtos fora do alcance para os pobres que não podem pagar pelo alto preço.

Um destaque digno de nota que Lott expõe para a questão dos preços discriminatórios é o caso da indústria farmacêutica, que cobra dos norte-americanos os preços mais altos – justamente porque computa para somente eles os custos com pesquisa e desenvolvimento (os japoneses também fazem isto com produtos eletrônicos), enquanto são cobrados dos africanos os preços mais acessíveis e de países intermediários, algum valor entre estes dois limites extremos.

No caso do programa Tô Contigo, da AMBEV, há todo um cálculo econômico racional, baseado em ganho de escala, parceria com os bares (fornecendo equipamentos e acessórios), e segurança de vendas, que se traduzem em um melhor planejamento.

3.9.Abuso de Posição Dominante e Reputação

Se há algo que jamais nenhum órgão governamental poderá medir por meio de modelos econômicos, chama-se reputação. Eis, todavia, um bem valioso, que não pode ser contabilizado.

E é a reputação um fator determinante para que um bar decida vender um produto de um fabricante único. Afinal, seus clientes sempre poderão se dirigir ao seu comércio sabendo que o produto preferido deles está ali. O dono do bar, assim, não teme desapontar seus clientes.

É sabido que em certos estabelecimentos praticam-se fraudes, como por exemplo, a famosa troca do rótulo. Isto se faz mantendo-se as garrafas em água gelada, de modo que os adesivos se descolem. Assim, o garçom pode servir uma garrafa de uma cerveja mais barata do que a solicitada pelo cliente, quando este já está meio pra lá de Marrakech.

É a reputação que possibilita a um fabricante exigir um preço melhor por seu produto, e isto nada, absolutamente nada, tem a ver com custos de produção. A teoria econômica atualmente mais aceita, de inspiração objetivista, é sofrivelmente falha neste ponto. Um preço se estabelece pelo subjetivismo, que é a aceitação do consumidor e a disposição sua de pagar a mais por um bem. Em um dos mais ridículos incisos da lei antitruste, esta proíbe às empresas majorarem "arbitrariamente" seus lucros, como se, em um mercado livre, todos os preços fossem tabelados pelo governo, quando o são estimados pelas empresas não em face dos custos, mas devido à aceitação que estimam obter de sua clientela.

Sobre o autor
Klauber Cristofen Pires

Analista Tributário da Receita Federal do Brasil. Bacharel em Ciências Náuticas. Especialista em Direito Tributário "Lato Sensu" pela ESAF/UFPA. Graduando em Direito pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia (FIBRA) em Belém (PA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Klauber Cristofen. A Lei Antitruste e a AMBEV.: Uma análise sob a norma-da-razão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2277, 25 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13568. Acesso em: 22 nov. 2024.

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