INTRODUÇÃO
A compreensão da dignidade suprema da pessoa humana tem sido, no curso da História, em boa parte, fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da infâmia que se abre claramente diante de seus olhos. O remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos, as chacinas e aviltantes explorações faz nascer nas consciências a exigência de novas regras conducentes a uma vida mais digna para todos [01].
E essas novas regras se apresentam a partir de um reconhecimento oficial dos direitos humanos em textos normativos, a fim de afirmá-los como de observância obrigatória por todos. Nos séculos que nos antecedem, podemos registrar inúmeros documentos que trazem esse teor de positivação de direitos humanos. Entre as que marcaram época, podemos destacar: a Magna Carta, de 1215; a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789; a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966; o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; a Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969.
Entretanto, é notório que a mera previsão em normas jurídicas não possui o condão de assegurar o devido respeito a esses direitos. É preciso criar mecanismos que concedam efetividade aos direitos humanos, tanto em nível nacional quanto internacional [02]. A literatura de proteção aos direitos fundamentais do homem é vasta, porém tal constatação não impediu a continuidade de violações aos direitos humanos em nosso país.
Por isso, existem vários órgãos de monitoramento e julgamento, que visam garantir o efetivo respeito aos direitos humanos. Podemos citar as Comissões Especiais da Organização das Nações Unidas, a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional, em plano internacional.
No plano nacional, a Constituição da República Federativa do Brasil é, sem dúvida, um dos documentos da história constitucional contemporânea que melhor confere direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, como resposta a um regime de exceção e de tolhimento de direitos que durou mais de duas décadas no Brasil.
Na repartição de competências perpetrada pela Carta Magna, coube ao sistema judicial dos Estados Federados a investigação, processo e julgamento da grande maioria das violações aos direitos humanos, excetuando-se apenas os casos dos incisos IV, V, VI, IX e X do art. 109 da CF/88.
Porém, o que tem se constatado no Brasil é que a impunidade tem abalado a credibilidade do sistema judicial, especialmente naqueles casos emblemáticos em que há graves violações aos direitos humanos.
Diante disso, quando promulgada a Emenda Constitucional n. 45/2004, foi incluído no art. 109 da Constituição o inciso V-A e o § 5º, com a seguinte redação: "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: [...] V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; [...] § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".
Recém criado, o novo dispositivo já recebeu inúmeras críticas, por supostas ofensas ao pacto federativo, ao princípio do juiz natural e por não estabelecer com clareza o seu modus operandi. Existem, inclusive, ações diretas, pugnando a inconstitucionalidade do dispositivo citado perante o Supremo Tribunal Federal [03].
O instituto do incidente de deslocamento de competência está em plena vigência desde a publicação da Emenda Constitucional n. 45/2004, mas o que se percebe é um desconhecimento generalizado do seu modo de aplicação e dos seus objetivos. Buscar, pois, parâmetros mais claros e precisos para a federalização das graves violações aos direitos humanos é uma das metas desta monografia.
A título ilustrativo, registre-se que o Procurador-Geral da República, quando do ajuizamento do Incidente de Deslocamento de Competência n. 1 perante o STJ, em sua exordial, sequer elencou quais seriam os tratados internacionais que o Brasil teria descumprido. Ora, se o próprio legitimado a atuar desconhece os pressupostos de admissibilidade do instituto, é sinal de que o tema merece ampla reflexão para que seja melhor utililizado em prol dos direitos humanos.
1 A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNACIONAL E NACIONAL
O presente projeto de dissertação visa analisar em profundidade o instituto que foi criado como mais uma tentativa de conferir efetividade aos comandos normativos relativos à repressão e punição de graves violações aos direitos humanos. Visa, pois, diminuir o hiato existente entre normatividade e efetividade. E isso constitui obrigação do Estado.
Com efeito, Cançado Trindade ensina que os Estados que ratificam tratados internacionais de direitos humanos encontram-se obrigados a organizar o seu ordenamento jurídico interno de modo que as supostas vítimas de violações dos direitos nele consagrados disponham de um recurso eficaz perante as instâncias nacionais. Esta obrigação adicional opera como uma salvaguarda contra eventuais denegações de justiça, ou atrasos indevidos ou outras irregularidades processuais na administração da justiça [04].
O Direito Internacional dos Direitos Humanos contribui, decisivamente, ao processo de humanização do Direito Internacional. O tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder público não é mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrário, é algo que lhe diz respeito, porque os direitos de que são titulares todos os seres
humanos emanam diretamente do Direito Internacional. Os indivíduos são, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como internacional. E ocupam posição central no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou não vítimas de violações de seus direitos internacionalmente consagrados [05].
A federalização das graves violações aos direitos humanos é, pois, um mecanismo destinado a forçar o sistema judicial brasileiro a funcionar efetivamente.
Registrando, desde logo, que o instituto em comento não irá solucionar em definitivo os problemas das violações aos direitos humanos – pois esta solução advém de inúmeras ações coordenadas – salientamos que, caso bem utilizado, a suscitação do incidente poderá servir como mais um instrumento garantidor de efetiva repressão às violações de direitos humanos e desestimulará condutas ilegais por parte de autoridades envolvidas na investigação, processo e julgamento de ações decorrentes dessas violações.
Por isso, reputamos de suma importância um acurado estudo sobre os pressupostos de admissibilidade do instituto, para que se estabeleçam de forma mais precisa os seus parâmetros e sua forma de aplicação, tendo em vista que se trata de expediente de utilização excepcional, mas necessária em alguns casos concretos. Identificar quais são esses casos, com um elevado grau de segurança jurídica, é o que nós nos propomos a investigar.
Isso porque, o dispositivo constitucional que instituiu o incidente de deslocamento é norma de competência e, como tal, necessita forçosamente pautar-se por critérios objetivos e claros – e não casuais e subjetivos [06]. Caso contrário, o que seria um avanço representará, na realidade, verdadeiro retrocesso, permitindo que, casuisticamente, por circunstâncias transitórias e questionáveis, seja deslocada a competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal.
Algumas hipóteses podem inicialmente ser formuladas: não é toda e qualquer violação de direitos humanos que fundamenta o incidente de deslocamento, mas unicamente uma ocorrência grave; ainda, é necessário que tal grave ocorrência implique violação a tratados internacionais de direitos humanos; finalmente, é necessário demonstrar que a Justiça dos Estados membros não pode assegurar cumprimento das obrigações internacionais.
O conceito referencial é o da dignidade essencial da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88). Dessa dignidade essencial derivando o reconhecimento e dever de respeito e proteção a todos os direitos inerentes àquela condição, e que terminam sendo explicitados nos róis de direitos, elencados em tratados e convenções internacionais.
Tendo a modificação no sistema constitucional brasileiro causado imenso impacto no modo como o Judiciário haverá de operacionalizar as efetivas garantias dos direitos humanos fundamentais (notadamente nos aspectos penais constitucionais), exige-se reflexões aprofundadas, de modo a contribuir para um entendimento que melhor realize a finalidade da norma.
2 A FEDERALIZAÇÃO DAS GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS
Este instituto surgiu como um instrumento para garantir a efetividade da observância dos direitos humanos, diante do recrudescimento da violência e da impunidade no passado recente de nosso país. O surgimento de grupos de extermínio, muitas vezes com policiais envolvidos, somados ao sentimento de impunidade, fez aumentar a pressão dos organismos internacionais (Organização das Nações Unidas, Comissão Interamericana de Direitos Humanos) sobre a União, que é a responsável, no plano externo, pelo cumprimento das obrigações decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos [07].
Trata-se, destarte, de um instrumento vocacionado a preservar a responsabilidade internacional do Brasil perante cortes e organismos internacionais e de efetiva proteção dos direitos humanos.
O incidente de deslocamento de competência pode ser entendido como um instituto político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos [08]. É instrumento político porque visa resguardar a responsabilidade do Estado perante a comunidade internacional. É jurídico porque se dirige a um Tribunal, visando modificar horizontalmente (de juiz estadual para juiz federal; de Tribunal de Justiça para Tribunal Regional Federal) a competência para processo e julgamento de crimes que envolvam graves violações aos direitos humanos.
Pode, outrossim, ser visto como uma garantia de efetividade da tutela jurisdicional criminal, salvaguardando o jus puniendi estatal e também uma forma de dar vazão à necessidade de razoável duração do processo (CF, art. 5°, LXXVIII e arts 7.5 e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos), contra demoras injustificadas ou propositais de órgãos jurisdicionais estaduais. Para apuração desse prazo razoável, deve-se levar em conta vários fatores, elencados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos [09]: a maior ou menor complexidade do processo; a maior ou menor diligência dos órgãos do processo; a duração em si da prisão; a duração dessa prisão em relação à natureza do fato e à pena cominada e da pena aplicável em caso de condenação, levando sempre em conta a razoabilidade.
Trata-se, como dito, de um incidente processual de deslocamento de competência em casos estritamente excepcionais. A competência é transferida da Justiça comum estadual para a Justiça Federal.
Até o momento, só se registrou apenas um incidente de deslocamento de competência no Superior Tribunal de Justiça, órgão competente para o processo e julgamento de tal questão. O IDC nº 1/PA, em que se buscava transferir a competência da Justiça Estadual para a Federal na investigação, processo e julgamento do homicídio da irmã Dorothy Stang.
No caso, amplamente divulgado pela mídia, a Sra. Dorothy Stang havia sido brutalmente assassinada em virtude de conflitos agrários na região de Anapu, município do Pará. A freira trabalhava com projetos de desenvolvimento sustentável junto aos trabalhadores rurais.
Havia uma conhecida tensão entre posseiros e fazendeiros, o que culminou com o brutal assassinato da Sra. Dorothy, por se contrapor aos interesses de pessoas de influência econômica na região, inclusive com denúncias de extração ilegal de madeira. Enfim, havia vários interesses em jogo.
A proteção da integridade física da freira já havia sido pedida às autoridades públicas vários meses antes do crime, porém não foi suficiente para evitá-lo. Verificou-se o descaso dos órgãos de segurança pública em coibir tais violações aos direitos humanos, não só da vítima, como também de agricultores e posseiros no município citado.
Assim, aparentemente, havia pressupostos suficientes para o deslocamento de competência. Porém, o Procurador-Geral da República não conseguiu demonstrar o segundo requisito do instituto, qual seja: a garantia de que o Brasil cumpra com as obrigações decorrentes de pactos internacionais, firmados sobre direitos humanos.
No julgamento do IDC, o relator assim se posicionou:
O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação dos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente [10].
Ficou configurada a inépcia da peça inaugural, pois o PGR não conseguiu demonstrar o risco de descumprimento de tratado internacional firmado pelo Brasil sobre a matéria, e assim, o pedido foi indeferido.
Diante desse caso concreto, resta palpável a necessidade de se estudar mais profundamente o tema para subsidiar os aplicadores do instituto a dele utilizarem da forma correta, isto é, naqueles casos em que, além da grave violação aos direitos humanos, houver risco de descumprimento de tratado internacional sobre direitos humanos firmado pelo Brasil em virtude de falta de vontade ou capacidade dos órgãos jurisdicionais estaduais.
Assim, para que a federalização das graves violações aos direitos humanos possa se legitimar e ganhar maior aceitação perante a comunidade jurídica, faz-se mister afastar a nuvem sombria do subjetivismo que ora paira sobre o instituto.
Críticas não faltam sobre a possibilidade de o Procurador-Geral da República, ao seu bel talante, ajuizar o incidente de deslocamento de competência. E essas críticas ganham ainda maior visibilidade quando se percebe que estamos lidando com questões, em regra, afetas ao Direito Penal, onde vige o princípio de estrita legalidade.
Porém, apesar das críticas, não se pode negar que o dispositivo constitucional possui uma finalidade da mais alta relevância, qual seja o desestímulo da impunidade e das violações aos direitos humanos.
Nessa perspectiva, para Afonso da Silva, a jurisdição constitucional da liberdade consiste na "atividade jurisdicional destinada à tutela das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais da pessoa humana. Seu exercício se dá por meio de um conjunto de instrumentos jurídico-processuais destinados a levar à apreciação dos Tribunais questões que suscitem infrigência dos direitos humanos fundamentais" [11].
Assim, para que a federalização das graves violações aos direitos humanos se consolide como um desses instrumentos jurídico-processuais, é de suma importância que se discuta os parâmetros de sua aplicação. Esta é a hipótese com a qual trabalharemos em nossa pesquisa: dissecar os pressupostos de admissibilidade do incidente de deslocamento de competência de forma a torná-los os mais objetivos possíveis, conferindo maior legitimidade e clareza ao instituto.
Para tanto, pretendemos desenvolver pesquisa empírica, analisando casos de requerimento de IDC feitos ao Procurador-Geral da República. Verificar as discussões e argumentos deduzidos nestes procedimentos é de fundamental importância para identificar o perfil do que se entende por grave violação de direitos humanos, quais são as circunstâncias que envolvem os pedidos, motivos que ensejaram o requerimento e casos mais recorrentes.
Pretendemos ir além da mera discussão superficial sobre competência, superando a bizantina disputa entre Justiça Estadual e Federal. Mas, antes disso, é preciso saber se o instituto em análise é ou não compatível com a Constituição Federal.
2.1. A CONSTITUCIONALIDADE DO IDC
Não há dúvidas de que cabe ao Supremo Tribunal Federal, como guardião máximo da Constituição, dar a última palavra a respeito da constitucionalidade do referido instituto. Porém, em nosso trabalho, defendemos que o IDC é constitucional.
Desde a tramitação da PEC 29/2000 no Congresso Nacional, houve dissidências acerca da inclusão ou não da federalização de crimes contra os direitos humanos.
Posteriormente à promulgação da Emenda Constitucional nº 45, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.486/DF, com pedido de medida cautelar, visando declarar a inconstitucionalidade do dispositivo que instituiu o incidente de deslocamento de competência (IDC), por entender que este ofende o princípio do juiz natural, do devido processo legal e da competência do júri.
É notório que o referido instituto não vai solucionar a questão das violações aos direitos humanos no Brasil, pois isso não se resolve apenas com a feitura de leis. Porém, não cremos que é o caso de declarar sua inconstitucionalidade, pois, se bem utilizado, com critérios e pressupostos definidos, poderá, sim, contribuir para a maior proteção dos direitos humanos e redução da impunidade em nosso país.
Não é o mérito deste trabalho discutir acerca da constitucionalidade ou não do incidente de deslocamento de competência, entretanto, não nos furtaremos a tecer algumas rápidas considerações pelas quais pode o instituto sobreviver sem maiores problemas.
Basta uma interpretação sistemática de nossa Lei Maior para percebermos a compatibilidade do instituto com as disposições constitucionais.
O art. 34, VII, b, da Carta Magna permite à União intervir nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, com decretação de intervenção dependendo de provimento, pelo STF, de representação do Procurador-Geral da República (CF, art. 36, III). Há, portanto, uma certa similaridade entre os institutos e este não adveio de emenda constitucional.
Além disso, o art. 144, § 1º, I, da Constituição, estabelece que a Polícia Federal pode apurar infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme. Regulamentando este inciso, foi editada a Lei n.º 10.446/02, que reza o seguinte:
Art. 1º Na forma do inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais: (...) III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte.
Ora, se há possibilidade de a Polícia Federal proceder a investigações nessa seara, certamente poderá ser competente a Justiça Federal para julgar tais delitos.
Quanto à suposta ofensa ao princípio do juiz natural, propugna, com razão, o Dr. Vladimir Aras, que
as corriqueiras exceções e os conflitos entre juízos diversos são defesas processuais tradicionais, que ocorrem no curso de ações penais e cíveis. Tais instrumentos processuais jamais foram contestados ao argumento de que ofendem o princípio do juiz natural (art. 5º, LVIII, CF). Quantas são as exceções de incompetência (em razão da função, material e territorial), de suspeição e de impedimento que alteram o juízo ou afastam juízes antes acreditados como ‘naturais’? Evidentemente, essas ferramentas de processo, como também o IDC, não afetam a segurança jurídica na atividade jurisdicional, pelo simples fato de alterarem o juízo tido como competente [12].
Diante disso, esperamos que a ADI 3468 seja julgada improcedente, confirmando-se a constitucionalidade do IDC, devendo o Supremo Tribunal Federal estabelecer os requisitos e pressupostos para a admissibilidade do incidente e pôr fim à celeuma.
2.2. O INSTITUTO É NECESSÁRIO?
A discussão sobre a federalização das graves violações aos direitos humanos é, antes de mais nada, um debate em torno da efetividade. Para Afonso da Silva, efetividade ou eficácia social, denota uma "conduta acorde com a prevista pela norma, refere-se ao fato de que a norma é realmente obedecida e aplicada" [13].
Para Barroso, quando há interesses e influências que dificultam a concretização de uma norma, deve-se "formular estruturas lógicas e prover mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas" [14].
A inefetividade da repressão às graves violações aos direitos humanos faz surgir um sentimento generalizado de impunidade que acaba por criar um ambiente propício à continuidade delitiva. Beccaria [15] já dizia que a certeza da punição é fator mais importante que a sua gravidade.
Nesse sentido, a teoria garantista de Luigi Ferrajoli se aplica ao nosso estudo uma vez que, para o autor, é adequado o sistema jurídico que "detiver mecanismos de invalidação e de reparações idôneos, de modo geral a assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados" [16] . A teoria garantista, a grosso modo, estuda as relações entre validade e efetividade das normas, buscando aproximar tais elementos. O garantismo seria, pois, uma teoria que se preocupa com aspectos materiais e processuais que devem sempre existir para que o direito seja válido e efetivo.
Por outro lado, a doutrina do Direito Internacional dos direitos humanos também é de suma importância para conferir lastro ao funcionamento do incidente de deslocamento de competência. Isso porque, principalmente após a proclamação da Carta das Nações Unidas, consagrou-se a idéia segundo a qual todo ser humano é titular de direitos em razão de sua dignidade intrínseca. Pelo mero fato de existir, o homem possui uma nomenclatura de direitos. E esses direitos são oponíveis juridicamente a todos os Estados.
Com essa evolução no Direito Internacional a pessoa passou a ser vista sob prisma distinto. Deixou de ser mero objeto da ordem internacional, passou a ter um reconhecimento e proteção internacional no que toca aos seus direitos inatos. O ser humano passou a ser sujeito de Direito Internacional [17].
Essa perspectiva demonstra um novo olhar sobre a relação entre soberania dos Estados e direitos humanos. Eles interagem reciprocamente em uma tensão dialética cuja consideração é indispensável para compreender a complexidade e as contradições intrínsecas do Direito Internacional dos direitos humanos em sua fase atual.
Para Salcedo, essa contradição encontra uma síntese superadora na noção de obrigações positivas que o Direito Internacional dos direitos humanos impõe aos Estados em relação com a promoção e proteção do direitos humanos, de todos os direitos fundamentais de todo ser humano [18].
E essas obrigações positivas se manifestam em diversos planos de ação dos Estados. Entre eles, destacamos a incorporação ao ordenamento jurídico interno de normas de Direito Internacional protetoras de direitos humanos a fim de garantir o seu efetivo cumprimento.
Ao internalizar essas normas, o Estado brasileiro se obriga a cumpri-las perante a comunidade internacional. O descumprimento dessas obrigações pode gerar responsabilização do país perante organismos internacionais.
Essas novas jurisdições internacionais cumprem o desiderato de compelir os países a adequarem sua ordem jurídica interna conforme os preceitos internacionais, e a formularem políticas públicas, quando a letra da lei apenas e tão-somente não se demonstra instrumento hábil a concretizar os direitos humanos [19] e evitar sua violação impune.
Desse modo, a federalização das graves violações aos direitos humanos faz parte dessa sistemática de concretização dos direitos humanos, de efetiva punição dos violadores desses direitos. É mais um recurso interno [20] destinado a garantir o cumprimento de obrigações internacionais relativas a direitos humanos em nosso país.
Aceitar o monitoramento de órgãos internacionais no que toca aos direitos humanos no Brasil não foi fácil. Mas já passamos por esta etapa. Igual dificuldade será a de mudar a mentalidade da comunidade jurídica para que se perceba que o foco não é a disputa de competência e sim efetividade na proteção aos direitos humanos em nosso país. Houve resistência para reconhecer no plano internacional as violações a direitos humanos e a impunidade que aqui ocorrem. Assim também, há dificuldade para o sistema judicial estadual reconhecer essa dificuldade no plano interno.
O IDC, apesar de excepcional, é válido.
E isso está de acordo com a coerência interna que deve ter o ordenamento jurídico, conforme Norberto Bobbio. Com efeito, como o ordenamento jurídico é uma unidade sistemática, "para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si" [21].
Nessa toada, Flávia Piovesan ensina que o incidente de deslocamento de competência "está em absoluta consonância com a sistemática processual vigente (vide o instituto do desaforamento), como também com a sistemática internacional de proteção dos direitos humanos (que admite seja um caso submetido à apreciação de organismos internacionais quando o Estado mostra-se falho ou omisso no dever de proteger os direitos humanos)" [22].
Resta, pois, demonstrada a compatibilidade do instituto da federalização com o ordenamento jurídico brasileiro, a partir da perspectiva de que se trata de um sistema que deve primar pela concretização dos direitos humanos, tanto de forma preventiva quanto repressiva. E esse dever advém não só da ordem interna, mas também de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Ademais, o instituto sub examine está de acordo com a teoria garantista de Luigi Ferrajoli, por se tratar de um mecanismo que visa assegurar a efetividade da prevenção, reparação e punição às violações de direitos humanos. Portanto, precisa-se, então, buscar legitimar socialmente o instituto a partir do estabelecimento de parâmetros mais objetivos para análise dos pressupostos de admissibilidade do instituto do incidente de deslocamento de competência, que são: grave violação de direitos humanos; risco de responsabilização do Brasil perante organismos internacionais pelo descumprimento de tratados internacionais de direitos humanos; inércia injustificada na apuração dos fatos, omissão, leniência, parcialidade, falta de vontade ou falta de capacidade das autoridades responsáveis pela investigação, processo e julgamento dos casos em que houver violação a direitos humanos.
Buscaremos, pois, determinar o conceito de grave violação aos direitos humanos, analisando casos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Tribunal Penal Internacional, e relatórios de Comissões especiais da ONU, além da própria jurisprudência brasileira.
Faremos um levantamento dos tratados internacionais relativos a direitos humanos já ratificados pelo Brasil, a fim de determinar quais são as obrigações a que o país se submete e quais são as eventuais responsabilidades pelo descumprimento desses tratados.
Por fim, analisaremos a questão da omissão, leniênia, parcialidade, inércia injustificada, falta de vontade ou falta de capacidade que venha a comprometer o bom andamento da investigação, processo e julgamento dos casos que envolvem violações aos direitos humanos. Faremos isso analisando o princípio da complementaridade utilizado pelo Tribunal Penal Internacional como requisito de admissibilidade nos casos a ele submetidos. Entendemos que este estudo comparativo será de grande valia para determinar quando as autoridades estão envolvidas com o insucesso da punição das violações aos direitos humanos.