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A tutela federal dos direitos humanos no Brasil.

Os pressupostos de admissibilidade da federalização

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11/10/2009 às 00:00
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3 PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO IDC

Assim, cabe ao Procurador-Geral da República, por determinação constitucional, suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal, fundamentado em três pressupostos objetivos: 1. um crime em que haja grave violação de direitos humanos; 2. o compromisso do Brasil em honrar tratados internacionais a respeito da matéria, com possibilidade de responsabilização; 3. omissão, leniência, falta de vontade ou de capacidade dos órgãos jurisdicionais estaduais.

O ponto basilar, que realmente vai legitimar e ensejar um possível IDC, são arbitrariedades, cometidas pelos órgãos jurisdicionais, que venham a dilatar o processo no tempo injustificadamente.

Quanto ao leading case acerca da matéria, o bárbaro homicídio da missionária Dorothy Stang, pode-se perceber a omissão das autoridades quanto ao caso. Flávia Piovesan averba que,

de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, no período de 1985 a 2003, de um total de 1.003 crimes relativos a conflitos de terra, só 75 foram a julgamento. De um universo de 1.349 pessoas assassinadas, só houve a condenação de 65 pistoleiros e 15 mandantes. E mais: há hoje 13 casos de violência rural submetidos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), e 6 deles ocorreram no Estado do Pará. Neste quadro marcado pela criminalidade constante e crescente, em que o uso arbitrário e destemido da força é assegurado pela ausência do Estado de Direito, mais que justificável a adoção do instituto da federalização [23].

Parece-nos ser este o único desafio a vislumbrar para a utilização do IDC: o devido preenchimento dos requisitos constitucionais autorizadores do deslocamento, a ser verificado na práxis.

Deve-se, contudo, registrar a excepcionalidade da aplicação do instituto. O recurso ao IDC não pode ser banalizado pois comprometeria a própria atuação dos órgãos federais, pelo crescimento do número de feitos, prejudicando até a eficácia das investigações policiais.

A Justiça Federal só atua em caráter subsidiário, nos casos extremamente excepcionais. O nosso ordenamento jurídico criou algo interessante, que pode ser visto como gradações de intervenção da competência federal na apuração de crimes contra os direitos humanos.

Em regra, os crimes contra em que haja a violação dos direitos humanos são de competência dos Estados federados, com investigação das Polícias estaduais. Se, por exemplo, for verificado que a Polícia Civil Estadual mostra-se ineficaz ou omissa na resolução do delito, a Polícia Federal, independente da instauração de qualquer incidente, por força da Lei n.º 10.446/02, poderá proceder à investigações concorrentemente com a Polícia estadual, de forma autônoma. Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em voto da lavra do Min. Gilmar Mendes, verbis:

"É bem verdade, por outro lado, que é sobre a União que recai a responsabilidade internacional diante do compromisso que tem o Brasil de combater as violações contra os direitos humanos delimitados nos tratados e convenções dos quais é signatário. O ordenamento jurídico, no entanto, já prevê os mecanismos processuais necessários para os casos – frise-se, excepcionais – nos quais a Justiça Estadual, por motivos vários (insuficiência do aparato persecutório, manipulação política, etc.), não esteja funcionando de forma eficiente. A Lei n° 10.446, de 8 de maio de 2002, por exemplo, prevê a possibilidade de investigação, pelo Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo dos órgãos de segurança pública estaduais, dos crimes de repercussão interestadual ou internacional que exijam repressão uniforme, como aqueles relativos "à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte" (Art. 1o, inciso III)." [24]

É a intervenção da Polícia Federal na fase investigativa. Em um outro ponto, ainda mais grave, se ficar constatado também a falta de vontade ou omissão dos órgãos jurisdicionais estaduais, aí sim, preenchidos todos os requisitos autorizadores, será o caso de apelar para o incidente de deslocamento de competência. Trata-se, destarte, de situação bastante atípica.

Além disso, não se pode cogitar do incidente simplesmente porque houve alguma espécie de grave violação aos direitos humanos. Não é a ocorrência de infrações penais deste gênero que irá determinar a censura internacional do Estado brasileiro, é, sim, a falta ou insuficiente repressão a essa espécie de violação [25].

Com efeito, não basta a ocorrência de um crime que viole gravemente direitos humanos, para que seja movimentada a máquina judiciária federal, pois este delito pode e deve ser duramente reprimido, com a devida sanção, pelo Judiciário estadual.

Deve-se, outrossim, ressaltar, conforme ensina Maluly [26], a necessidade de aplicação da máxima da proporcionalidade, na aferição, pelo STJ, da necessidade ou não do deslocamento de competência. A regra é a não-intervenção, devendo esta tomar lugar apenas em momentos excepcionalíssimos. Nesse caso, há um conflito entre a autonomia de jurisdição dos Estados membros e a responsabilização internacional da União na repressão de violações aos direitos humanos.

O STF, em julgamento de intervenção federal, tratou bem da questão, sujeitando-a ao princípio da proporcionalidade. Asseverou, em seu voto, o Min. Gilmar Mendes:

a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade [27].

As máximas citadas pelo Ministro são a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Um ato é adequado quando é apto para produzir o resultado desejado. É necessário se for insubstituível por outro menos gravoso e igualmente eficaz. Por último, é proporcional em sentido estrito se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição e realização dos direitos em conflito.

Submetendo essa sistemática ao tema em comento, vemos que o resultado desejado (adequação) é, conforme a Constituição (art. 109, § 5º), "assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte)". A medida será necessária (insubstituível), se não houver outra forma menos gravosa de solucionar a questão. Como dito, existe, de acordo com a Lei 10.446/02, uma forma menos gravosa de repressão aos crimes contra direitos humanos, pela possibilidade de investigação da Polícia Federal. Somente se essa estratégia não resolver a questão é que se deve seguir para a forma mais extremada de intervenção, que é, no caso, o IDC. Além disso, a proporcionalidade em sentido estrito se verifica na existência da grave violação aos direitos humanos aliada à falta de vontade ou capacidade dos Poderes públicos estaduais.

Portanto, somente na hipótese de comprovada falta dos órgãos jurisdicionais estaduais em desenvolverem corretamente seu mister, que poderá se suscitar o incidente, desde que conjugados todos os pressupostos já declinados.

Desse modo, o cerne de nosso estudo é analisar os três pressupostos do IDC, e, especialmente, verificar como se dá a falta de vontade ou falta de capacidade do Estado-membro em julgar e punir o delito que ofenda gravemente direitos humanos [28].

3.1. GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS

Neste tópico, pretendemos analisar o que se entende por grave violação aos direitos humanos, no plano internacional e no plano interno.

É certo que todo delito, por estar tipificado em norma penal, constitui ofensa a um bem jurídico tido como caro para a sociedade. Isso porque, vigora no Direito Penal o princípio da intervenção mínima. É dizer, só se justifica a criminalização de uma coduta quando for estritamente necessário, quando não houver outra forma de reprimir aquela conduta reprovadora por meios menos gravosos, com, por exemplo, sanções nas esferas cível ou administrativa. Assim, todo crime já traz consigo uma alta carga de reprovabilidade. Mas, nem toda conduta violadora de direitos humanos pode ser considerada grave.

Para adquirir essa conotação, é preciso analisar as circunstâncias e pecualiaridades do caso concreto. Não há uma regra geral, predeterminada. Existem, entretanto, alguns indícios de que uma conduta apresenta grave violação a direitos humanos. Nesse sentido caminha a interpretação do Pretório Excelso brasileiro: "Existem casos específicos em que o crime – tendo em vista a forma como é cometido, a quantidade de sujeitos envolvidos e a repercussão social causada – deixa de ser uma violação apenas à liberdade individual do trabalhador, passando a constituir uma grave ofensa a vários bens e valores constitucionais" [29].

Assim, não é necessário que haja um genocídio para surgir a possibilidade de federalização. Um homicídio já pode ser considerado como grave violação a direitos humanos, e, caso não sejam punidos os criminosos, pode render ensejo à federalização.

Veja-se, por exemplo, o caso Ximenes Lopes x Brasil, em que a República Federativa do Brasil foi condenada perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por ter permitido que os direitos humanos de um cidadão brasileiro fossem gravemente violados, culminando com sua morte. Veja-se o seguinte excerto da sentença prolatada pela Corte:

No caso do senhor Ximenes Lopes, não há evidências de que ele representasse perigo iminente para ele mesmo ou para terceiros. Tampouco há evidência de que quaisquer tentativas menos restritivas para controlar um possível episodio de violência seu. Assim sendo, o uso de qualquer forma de contenção física neste caso foi ilegal. Uma vez contido, com as mãos amarradas por trás das costas, competia ao Estado o supremo dever de proteger o senhor Damião Ximenes Lopes, devido a sua condição de extrema vulnerabilidade. O uso de força física e o espancamento constituíram uma violação de seu direito a uma acedência humana. Há outras alternativas que podem ser utilizadas antes de fazer uso da força ou decidir o isolamento de um paciente. Os programas de saúde mental deveriam se empenhar em manter um ambiente e uma cultura de cuidado que minimize a utilização de tais métodos. O uso injustificado e excessivo da forca neste caso viola o artigo 5.2 da Convenção Americana e constitui prática desumana e tratamento degradante.

Quando o isolamento ou a contenção são usados como punição, coerção ou por objetivos impróprios, a violação dos direitos humanos é ainda mais grave. Nos casos em que o uso da contenção tenha provocado dor ou sofrimento físico ou mental extremos, sua utilização imprópria para objetivo impróprios, poderá constituir tortura. Jamais é necessário espancar um paciente psiquiátrico ou a ele causar qualquer tipo de dano ou sofrimento. O fato de que o senhor Damião Ximenes Lopes estivesse desarmado e sob a custódia do Estado demonstra que uma ação dessa natureza não seria desproporcional à eventual ameaça que ele possa ter representado. Dada a grande vulnerabilidade de uma pessoa em crise psiquiátrica, cabe às autoridades do Estado em grau maior de responsabilidade na proteção a esses indivíduos. O espancamento do senhor Damião Ximenes Lopes- e sua posterior morte- poderiam ter sido evitados se o Estado tivesse cumprido suas obrigações de proporcionar-lhe uma instituição com funcionários capacitados para assisti-lo em sua deficiência mental.

(...)

O senhor Damião Ximenes Lopes tinha sido internado no ano de 1995 e outra vez no ano de 1998. Nesta última internação, a testemunha encontrou cortes, feridas nos tornozelos e no joelho do senhor Damião, razão pela qual pediu explicação ao funcionário da Casa de Repouso Guararapes, quem lhe disse que os ferimentos eram conseqüência de uma tentativa de fuga. A testemunha acreditou nessa versão.

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No dia 4 de outubro de 1999, quando a mãe da testemunha encontrou o senhor Damião Ximenes Lopes ele estava agonizando, e ela pediu socorro ao médico Francisco Ivo de Vasconcelos, porque acreditava que seu filho ia morrer devido às condições em que estava. No entanto, o médico não atendeu seus pedidos. O senhor Damião Ximenes Lopes morreu nesse mesmo dia. Seu cadáver apresentava marcas de tortura; seus punhos estavam dilacerados e totalmente roxos, e suas mãos também estavam perfuradas, com sinais de unhas e uma parte do seu nariz estava machucada. A causa da morte foi dada pelos médicos como "morte natural, parada cardiorespiratória" e nada mais. O corpo do senhor Damião Ximenes Lopes foi então levado para Fortaleza para que fosse realizada uma necropsia, a qual também concluiu que se tratava de "morte indeterminada". A família não acreditou nesse laudo e acredita que houve manipulação e omissão da verdade. A raiz do seu envolvimento com o caso do seu irmão, encontrou muitas pessoas que sofreram maus-tratos ou que tiveram parentes espancados dentro da Casa de Repouso Guararapes, mas as famílias e as vítimas não tinham interesse em denunciar, porque tinham medo de enfrentar a polícia e o hospital."

Trata-se de um caso em que ficaram devidamente comprovadas as graves violações aos direitos humanos e a omissão das autoridades locais em punir os envolvidos com o delito referido, de modo que o Brasil foi condenado a reparações à família da vítima e instado a não repetir tais violações a direitos humanos.

Relatórios das Nações Unidas também podem ser de grande valia para identificar o que se entende por graves violações a direitos humanos. O relatório do expert autônomo da Comissão de Direitos Humanos da ONU sobre a situação no Afeganistão, de 21 de setembro de 2004, assevera que:

A situação dos direitos humanos no Afeganistão envolve uma extensiva gama de questões, incluindo presentes e pretéritas violações cometidas tanto pelo Estado como por atores não-estatais, operando além do alcance da lei como elementos formadores de políticas amplamente divulgadas e disseminadas, e por indivíduos. As violações identificadas constituem graves violações de direitos humanos fundamentais como execuções extrajudiciais, tortura, estupro, prisões e detenções arbitrárias, detenção em condições desumanas, desapropriações ilegais e forçadas de propriedade privada, sumisso e tráfico de crianças, várias formas de abuso contra as mulheres e uma variedade de outras violações cometidas contra elementos mais fracos da sociedade, como minorias, refugiados, mulheres, crianças, pobres e deficientes. [30]

Vê-se, pois, que uma grave violação aos direitos humanos pode advir sob várias formas e ofendendo diversos bens jurídicos. Por isso, faz-se necessário uma acurada análise da situação concreta que legitimidade a utilização do incidente.

3.2. TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS

Outro pressuposto de admissibilidade para o incidente é a comprovação de que o Brasil está descumprindo obrigações internacionais a respeito da proteção e tutela de direitos humanos. Para isso, é preciso elencar quais são os tratados internacionais sobre direitos humanos já ratificados pela República Federativa do Brasil.

Existem inúmeros tratados internacionais, porém nem todos dizem respeito a direitos humanos. Assim, podemos elencar, sem pretensão de exaustão, os seguintes tratados internacionais sobre direitos humanos que já foram ratificados pelo Brasil e que geram obrigações para o Estado brasileiro: a Declaração Universal dos Direitos do Homem; a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, além dos seguintes tratados: Convenção para a prevenção e repressão do Crime de Genocídio, Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). [31]

É preciso, pois, verificar caso a caso quais são as obrigações internacionais que o Brasil descumpriu e quais são as sanções para o descumprimento de tais obrigações, constantes no tratados internacionais acima referidos.

3.3. OMISSÃO, LENIÊNCIA, PARCIALIDADE

Para analisar este último pressuposto, tomaremos por base as premissas do Tribunal Penal Internacional, que só age em caso de falta ou omissão da jurisdição local em reprimir os delitos.

O século XX, palco de inúmeros conflitos bélicos, viu também o vertiginoso desenvolvimento da humanidade, em todas as áreas. A evolução do Direito Internacional contribuiu para a percepção de que certos crimes cometidos dentro de um determinado território nacional possuem, às vezes, repercussão no âmbito internacional, além de violarem direitos individuais básicos.

As hostilidades cometidas nas grandes guerras mundiais [32] geraram a necessidade de se criar um sistema efetivo de proteção aos direitos humanos. Essa proteção se iniciou com o surgimento de várias Declarações e Tratados Internacionais, visando proteger os direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outros).

Porém, sabemos que a mera declaração de direitos em um texto não é suficiente se esses direitos não saírem do plano normativo. Faz-se mister a existência de mecanismos de implementação e efetividade desses direitos. Para isso, existem os órgãos de monitoramento, como Comissões da ONU e a Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Os esforços em prol da criação de um sistema de monitoramento contínuo da situação dos direitos humanos em escala mundial levou ao surgimento de uma jurisdição penal internacional. No passado recente, foram criados, pelo Conselho de Segurança da ONU, Tribunais ad hoc, como o da Iugoslávia e o de Ruanda. Essa jurisdição visa penalizar as graves violações aos direitos humanos e evitar que outras se repitam.

Desse modo, após vários anos de discussões e estudos acerca da matéria, celebrou-se a Conferência de Roma. Nela, foi adotado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Após as necessárias ratificações, o TPI entrou em vigor em 1º de julho de 2002.

Do seu Estatuto, podemos retirar várias disposições que contribuem para o nosso estudo. Existem, em um capítulo especial ou esparsos no texto, alguns princípios gerais de direito penal.

Os princípios possuem a pretensão de orientar a interpretação e aplicação da lei, especialmente quando a construção legal mostra-se insuficiente para resolver determinado caso. Eles buscam uma determinada finalidade, um estado ideal de coisas a ser alcançado.

Por isso, mostra-se de suma relevância a consagração de princípios gerais de direito penal pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, pois eles servem de fundamento para a resolução de casos relativos a Direito Penal no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente porque o Estatuto de Roma foi aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 112/2002 e promulgado pelo Presidente da República, através do Decreto n.º 4.388/2002. O Estatuto integra, portanto, a legislação brasileira.

Assim, podemos nos utilizar de princípios consagrados pelo Estatuto de Roma, como o da complementaridade, para, por meio de interpretação analógica, dar subsídios à utilização do incidente de deslocamento de competência no direito brasileiro.

O princípio da complementaridade encontra-se inserido no Estatuto em vários dispositivos, inclusive no preâmbulo: "o Tribunal Penal Internacional, criado pelo presente Estatuto, será complementar às jurisdições penais nacionais".

O TPI, portanto, baseia-se no princípio da complementaridade, segundo o qual o Tribunal não substitui os tribunais nacionais, pelo contrário, só atuará subsidiariamente às cortes nacionais, uma vez que essas possuem prioridade no exercício da jurisdição [33]. Assim leciona Cançado Trindade:

De conformidade com o princípio da complementaridade, invocado no próprio preâmbulo do Estatuto de Roma, o Tribunal Penal Internacional é concebido como complementar das jurisdições penais nacionais; as próprias condições de exercício de sua competência (artigos 12-14) dão primazia às jurisdições nacionais para investigar e julgar os crimes consignados no Estatuto de Roma, estando o "acionamento" do Tribunal Penal Internacional circunscrito a circunstâncias excepcionais [34].

Isso demonstra o intuito de proteger, na medida do possível, as soberanias estatais, sem, contudo, relegar a segundo plano a proteção aos direitos humanos. Trata-se de um equilíbrio difícil de ser alcançado, mas que é possível, sendo feito pelo Tribunal Penal Internacional no exame da admissibilidade dos delitos que lhe são submetidos.

Em sede de admissibilidade, para determinar se um Estado demonstra ou não vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias (Estatuto, art. 17.2): a) processo ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; b) ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça; c) o processo não ter sido ou não estar sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoa em causa perante a justiça. Esses são os critérios que tratam da falta de vontade em punir devidamente.

Existe, ainda, os casos em que há falta de capacidade ou de estrutura para o processo e julgamento dos delitos. Nesse caso, também entrará em ação o Tribunal Penal Internacional. É o caso do art. 18.3:

A fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessários ou não estará, por outros motivos, em condições de concluir o processo.

Esses pressupostos de admissibilidade (falta de vontade e falta de capacidade) limitam bastante o número de casos submetidos ao TPI, só sendo admitidos aqueles realmente excepcionais, devendo a grande maioria dos casos ater-se às cortes nacionais.

Como conseqüência da complementaridade, o número de casos submetidos à Corte Penal Internacional não deve ser um termômetro de sua eficiência. Pelo contrário, a ausência ou o mínimo de julgamentos no TPI significará o regular funcionamento dos sistemas judiciais nacionais, o que representa um sucesso muito maior, uma vez que o TPI é um órgão complementar, que só atua subsidiariamente.

Desde a sua instalação, em 2002, até hoje, o Tribunal Penal Internacional apenas abriu investigações em quatro países, todos na África: Uganda, Congo, Sudão e África Central [35]. Todos estão ainda em fases inquisitoriais ou instrutórias.

Nesse sentido, a grande maioria dos requerimentos que chegam à Procuradoria Geral da República com pedido de instauração de incidente de deslocamento de competência são arquivados exatamente com base na análise desse pressuposto da complementaridade.

A esse respeito, a título ilustrativo, no PA MPF/PGR nº 1.00.000.002909/2005-60, em que se solicitava o IDC no caso do assassinato de juiz no Estado do Espírito Santo, que ocorrera supostamente a mando de pessoas ligadas ao crime organizado, o PGR ressaltou que:

Não se evidenciou, no presente caso, a inércia injustificada na apuração dos fatos, nem tampouco qualquer descomprometimento da apuração dos acontecimentos descritos, verificando-se como preservada a garantia de que o Brasil cumpra com as obrigações decorrentes de pactos internacionais, firmados sobre direitos humanos.

Ao contrário do que menciona o requerente, o Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado do Espírito Santo se mostra empenhado na responsabilização criminal dos autores do homicídio em comento, bem como os outros órgãos responsáveis pela apuração e responsabilização em questão. Ao acompanhar o caso pela mídia, se observa que as providências cabíveis estão sendo tomadas.

O acolhimento do incidente de deslocamento de competência, previsto no artigo 109, § 5º, da CF, somente se justifica se não houver a possibilidade de adoção de outras medidas que possam garantir a repressão às condutas ofensivas aos direitos humanos.

Cumpre salientar que se falar em ''federalização'' – pura e simples – dos chamados ''crimes contra os direitos humanos'' é um grande equívoco, uma vez que, a rigor, o incidente de deslocamento de competência deve dar-se em casos excepcionais. Trata-se de uma jurisdição subsidiária, que deve ser acionada, verbi gratia, apenas naquelas circunstâncias em que os Estados-membros apresentem quadro de leniência na definição dos feitos criminais movidos contra os que violam os direitos humanos ou mesmo tolerem a desmoralização, pela reversão do quadro procedimental, dos que promovem a defesa destes direitos.

Percebe-se, pois, que o cerne da questão – para se aferir a plausibilidade jurídica da invocação do incidente – reside na identificação de omissão, leniência ou parcialidade das autoridades estaduais envolvidas no deslinde do processo em que ocorreu graves violações aos direitos humanos. Se o Ministério Público, o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária estaduais estão empenhadas na solução do caso, não há falar-se em incidente de deslocamento de competência. A banalização do instituto seria contraproducente, pois atentaria contra a credibilidade das instituições dos Estados-membros.

Daí, infere-se que o IDC deve se apresentar como último recurso no que toca a mecanismos de proteção dos direitos humanos, servindo como garante contra a impunidade e estímulo aos órgãos estaduais para que sempre estejam focados no desenvolvimento de um trabalho excelente que acabe por inviabilizar qualquer hipótese de se chancelar o deslocamento.

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Sobre o autor
Renan Paes Felix

Analista Processual do Ministério Público Federal. Assessor de Subprocurador-Geral da República. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP/UNISUL. Professor de Direito Constitucional. Bacharel em Direito pela UFPB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELIX, Renan Paes. A tutela federal dos direitos humanos no Brasil.: Os pressupostos de admissibilidade da federalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2293, 11 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13646. Acesso em: 24 nov. 2024.

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