6 CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS
As disposições sobre abuso de direito detêm nítido caráter social, qualificando-se como normas de ordem pública (CC/02, art. 2.035, parágrafo único). Por conseguinte, são cognoscíveis de ofício, em qualquer tempo ou grau de jurisdição, pelo juiz diante do caso concreto.
A par disso, o abuso de direito pode se manifestar nas mais diversas áreas do direito, seja nas relações negociais, seja nas relações extracontratuais (direito de vizinhança), seja no direito processual (litigância de má-fé), no direito mercantil (desconsideração da personalidade jurídica) etc. Logo, as consequências jurídicas de sua incidência variam conforme a hipótese subjacente. Podem ensejar desde a reparação de danos, com base no art. 927, caput, do CC/02, até a supressão dos efeitos jurídicos visados pelo agente, conforme art. 166, incs. VI e VII, do CC/02, os quais cominam de nulidade, o negócio jurídico que "tiver por objetivo fraudar lei imperativa" ou quando "a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção".
A propósito, para fins de reparação de danos não se investiga o animus do agente, ou seja, a intenção de causar prejuízo. Basta que o agente pratique a conduta excedendo aos limites de seu direito subjetivo. Nesse sentido, o Enunciado 37, das Jornadas de Direito Civil: "a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe da culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico".
7 CASUÍSTICA
O abuso de direito, embora previsto na parte geral do Código Civil, pode se manifestar nos mais diversos "ramos" do Direito [21], como no direito processual; mercantil; societário; consumidor; trabalhista; administrativo etc. Em alguns casos, há norma expressa coibindo e sancionando a conduta abusiva. Em outros, é o próprio art. 187, do CC/02, que irá fornecer elementos para ser prevenir e/ou reprimir a conduta que refugir à finalidade prevista em lei e se manifestar de maneira irregular e abusiva.
No Direito Processual Civil, o abuso de direito no direito processual civil pode se manifestar pela litigância de má-fé (CPC, arts. 17e 18) ou pela prática de atos atentatórios à dignidade da justiça (CPC, art. 600), prevendo a legislação sanções que vão desde a supressão dos fins visados pelo agente até a aplicação de multas e indenizações.
A Desconsideração da Personalidade Jurídica, aplicável ao Direito Civil (CC/02, art. 50), às relações de consumo (CDC, art. 28) à matéria ambiental (Lei 9.605/98) e trabalhista (CLT, art. 4º) também surgiu da vedação ao abuso de direito. O legislador, ao se aperceber que, muitos sócios e/ou acionistas utilizavam, astuciosamente, a personalidade jurídica de suas empresas para fraudar a lei ou contrair obrigações sem possibilidade de cumprimento, em manifesto prejuízo de terceiros, previu instrumento hábil a coibir essas práticas. Passou-se, pois, a admitir, uma vez constatados atos abusivos e fraudulentos, a responsabilização pessoal desses sócios e acionistas pelas obrigações contraídas em nome da sociedade.
No Direito do Consumidor outras hipóteses também podem ser lembradas. É o caso da publicidade enganosa e da publicidade abusiva, vedadas pelo art. 37, do CDC. Na mesma trilha, a cobrança que exponha o consumidor ao ridículo, ou que lhe submeta a qualquer forma de constrangimento ou ameaça (CDC, art. 42).
A liberdade de imprensa, embora prevista na Constituição Federal, art. 5º, inc. IX, também não se manifesta como direito absoluto. Assim, não se admite, por exemplo, que certo jornalista atinja, gratuita e aleatoriamente, a honra de um desafeto, exclusivamente por motivos de foro íntimo, sob o manto protetor da liberdade de imprensa. Pelo contrário, o exercício do direito de informar deve se operar de maneira regular. Sem excessos, sem ofensas, sem abusos, sob pena de ensejar ao ofendido direito de resposta proporcional ao agravo; ou indenização por dano material, moral ou à imagem (CF, art. 5º, incs. V e X).
No próprio Direito Civil o abuso de direito pode se manifestar além das relações negociais ou do direito de propriedade. Pode incidir, também, nas relações familiares, como é dos pais que se opõem, de maneira injustificada, ao exercício do direito de visita pelos avós em relação aos netos (CC/02, art. 1.631). Ou ainda, da recusa injustificada do cônjuge em prestar outorga uxória ou marital, para alienação de imóveis ou celebração de fiança, o que, constatado o exercício arbitrário, pode ser suprida pelo juiz (CC/02, arts. 1.647, inc. I, c/c 1.648).
Em suma, condutas abusivas, firmadas num pseudo-direito, podem se manifestar das mais variadas formas e nos diversos "ramos" do Direito, cumprindo ao operador estar atento a essas circunstâncias, de modo a coibi-las e reprimi-las, seja pelo emprego de regras específicas, seja com base na cláusula geral do art. 187, do CC/02. Assim agindo, contribuirá para que o Direito atenda aos fins sociais a que ele se dirige e às exigências do bem comum.
8 CONCLUSÕES
Os primeiros sinais do abuso de direito foram percebidos já no Direito Romano. Todavia, sua sistematização, mediante emprego de elementos objetivos para sua aferição somente ocorreu nas legislações do Século XX, caso do Código Civil de 2002, art. 187.2. O abuso de direito pode ser conceituado como o exercício irregular de um direito subjetivo, que, sob o pretexto de realizá-lo com base na lei, dela se afasta por contrariar os princípios e valores que compõem o ordenamento jurídico, contendo em seu interior práticas que contrariam o bom senso e a equidade, não estando apto à produção dos efeitos visados por seu agente, além de sujeitar-se às sanções correspondentes.
3. O abuso do direito (CC/02, art. 187), ao lado do ato ilícito stricto sensu (CC/02, art. 186), são espécies do gênero ato ilícito latu sensu, cada qual dotado de peculiaridades e requisitos própria de incidência.
4. O art. 187, do CC/02, ao versar sobre o abuso de direito caracteriza-se como autêntica cláusula geral, permitindo que o operador proceda à subsunção do fato à norma de maneira aberta, arguta e sensível à temática subjacente, de modo a coibir e punir o abuso de direito.
5. Para a configuração do abuso de direito é necessário que o exercício do direito exceda aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC/02, art. 187).
6. Os elementos previstos no art. 187, do CC/02, podem se manifestar de maneira alternativa, e não necessariamente cumulativa, para que se caracterize o abuso de direito.
7. O art. 187, do CC/02, diante dos fins sociais a que se destina, é norma de ordem pública e pode ser aplicada de ofício pelo juiz.
8. Para fins de indenização decorrentes de abuso de direito, não se investiga o elemento subjetivo culpa, mas tão-somente a presença dos elementos objetivo-finalísticos, presentes no art. 187, do CC/02.
9. A prática de atos reputados como abuso de direito podem se manifestar nos mais variados "ramos" do Direito, cabendo ao operador do direito estar atento aos parâmetros legais para identificá-lo, evitar a produção de seus efeitos nocivos, bem como impor a sanção necessária, de cunho pedagógico-preventiva.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
- CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 4ª ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 28.
- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 639.
- BARROS, João Álvaro Quintiliano. Abuso de direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6944>. Acesso em: 20 ago. 2008.
- MOREIRA, José Carlos Barbosa. Abuso do direito. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. v. 26. nov/dez/2003, p. 125.
- GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Curso de Direito Civil – Parte Geral. v. 1. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 446.
- O próprio Clóvis Beviláqua, um dos pais do Código Civil de 1916, admitia a existência do abuso de direito. Observe suas considerações: "no exercício do nosso direito, desde que não transponhamos os círculos de ação que ele nos traça, devemos ser garantidos pela ordem jurídico. Há, entretanto, limitações que essa mesma ordem impõe ao exercício do nosso direito, como sejam, por exemplo, as que são estabelecidas para o direito de propriedade imóvel em atenção às necessidades públicas, ou ao interesse dos vizinhos". Mais adiante, aduz "as servidões devem ser utilizadas de modo a não prejudicar o prédio serviente nem o seu proprietário". BEVILAQUA, Clovis. Teoria geral do direito civil, 7ª. ed., Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1955, p. 247.
- CARVALHO NETO, Inácio de. Op. cit., p. 253.
- LIMA, Alvino. Culpa e risco, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 205.
- NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, p. 176.
- CARPENA, Heloísa. Abuso do direito nos contratos de consumo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 143.
- RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Parte Geral. 34ª ed. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003.
- MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p.126.
- Art. 334. É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.
- TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do código civil de 2002. In: A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. XIX.
- FERREIRA, Keila Pacheco. Abuso do direito nas relações obrigacionais. Belo Horizonte: Del Rey, p. 85.
- REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
- MARCONDES, Danilo. Ética – De Platão a Foucalt. Zahar –. 2ª Edição. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro. 2007, p. 9.
- RODRIGUES JÚNIOR, Álvaro A recusa ao pagamento de indenização por invalidez total em contrato de seguro e o abuso de direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1613, 1 dez. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10716>. Acesso em: 20 ago. 2008.
- NORONHA, Fernando. Op. cit., p. 173.
- COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 76.
- O Direito é unitário. A expressão "ramos" do direito, aqui empregado, operou-se em termos meramente didático-pedagógicos, não científico.