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Pagamento de diárias e transporte no processo administrativo disciplinar.

A interpretação do art. 173, I e II, da Lei n.º 8.112/1990

Agenda 16/10/2009 às 00:00

Deve-se pagar a participantes de processo administrativo disciplinar, inclusive o acusado, não apenas no deslocamento para interrogatório do servidor, mas em outros atos processuais instrutórios.

Palavras-chave: Processo administrativo disciplinar. Diárias e transporte. Direito de indenização. Pessoas a quem devido. Art. 173, I e II, Lei federal n. 8.112/1990. Interpretação extensiva. Princípios constitucionais. Isonomia. Contraditório e ampla defesa.

Resumo: O artigo procura demonstrar que, para os fins do art. 173, I e II, da Lei federal n. 8.112/1990, as situações que justificariam o pagamento de diárias a participantes de processo administrativo disciplinar, inclusive o acusado, não se devem limitar ao deslocamento para fins de interrogatório do servidor, mas para outros atos processuais instrutórios, procedendo-se a uma interpretação extensiva do dispositivo legal, à luz da Constituição Federal (princípios da isonomia, contraditório e ampla defesa).


1. Introdução

Tema polêmico diz respeito à interpretação do capitulado no art. 173, I e II, da Lei federal n. 8.112/1990, no que concerne às situações em que seria devido o pagamento de diárias e transporte para os que atuam em processo administrativo disciplinar, no caso de deslocamento da sede dos trabalhos para participar de atos processuais, mais precisamente no que tange ao direito de o servidor acusado perceber indenização pela sua saída do local de tramitação do feito sancionador para acompanhar a realização de prova oral ou de outro gênero, realizada em outra cidade, ou mesmo na hipótese de o próprio processo apenador correr em lugar distinto daquele onde situada a repartição em que lotado o funcionário processado.


2. A exegese do art. 173, I e II, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais

Enuncia a Lei federal n. 8.112/1990:

Art. 173. Serão assegurados transporte e diárias:

I - ao servidor convocado para prestar depoimento fora da sede de sua repartição, na condição de testemunha, denunciado ou indiciado;

II - aos membros da comissão e ao secretário, quando obrigados a se deslocarem da sede dos trabalhos para a realização de missão essencial ao esclarecimento dos fatos.

A exegese que se tem procedido até o momento, em doutrina e jurisprudência esparsas, do capitulado nos incisos I e II do art. 173 da Lei federal n. 8.112/1990, tem sido a literal, tendente a restritiva, no sentido de que as hipóteses nas quais seria possível o pagamento de diárias e transporte seriam apenas quando:

a) o servidor público é convocado para prestar depoimento fora da sede de sua repartição, como testemunha; ou como denunciado (hipótese de sindicância ou processo administrativo disciplinar em curso a partir de denúncia de qualquer do povo ou de colegas de serviço público e no qual não exista ainda ato de indiciação formalizado contra o acusado) – situação que compreende, inclusive, o interrogatório do funcionário viajante; ou quando já indiciado, para diligência ou ato processual outro contra o agente público contra quem já foi lavrada indiciação (por exemplo, no caso de repetição de atos processuais e reabertura da fase instrutória por determinação da autoridade julgadora, a qual, depois da medida indiciatória, resolveu converter o julgamento em diligência para maior esclarecimento ou complementação de algum ponto dos fatos e das provas reunidas até então, à luz do princípio da verdade material ou da oficialidade, quiçá, ainda, em ocorrência de nulidade processual e imperatividade de repetição de atos processuais);

b) os membros da comissão trina de processo administrativo disciplinar, mais o secretário designado não componente do colegiado, se deslocam da sede da repartição onde corre o feito para coleta de provas em outro lugar.

Segundo a visão literalista, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais não teria abrangido, no pagamento de diárias e transporte, a situação de o próprio servidor, investigado em sindicância ou acusado em processo administrativo disciplinar, deslocar-se da sede da repartição onde lotado para acompanhar a instrução de feito punitivo em curso em outra cidade, tolhendo-se ao acusado, em consequência dessa interpretação, o direito de participar de oitivas de testemunhas, perícias, diligências, reproduções simuladas, acareações, reconhecimentos de pessoas ou objetos, dentre outros atos probatórios essenciais para o pleno exercício do direito de defesa, devendo o próprio funcionário, se puder, arcar com os custos, amiúde elevados, de seu deslocamento, acomodação e alimentação em núcleos urbanos distintos da sede funcional do funcionário processado ou investigado, ou então que se cale e assista, genuflexo e impotente, sobretudo os servidores de mais baixa remuneração, à coleta de provas de forma unilateral pela trinca disciplinar nomeada – e que assim seja.

Sucede com certa frequência, num país continental como o Brasil, em órgãos públicos federais, que o processo administrativo disciplinar tramite fora do local de exercício funcional do servidor acusado ou investigado, o qual pode ter sido removido a pedido ou de ofício da localidade onde ocorreram as supostas irregularidades e onde foi instaurado e corre o feito sancionador, passando o funcionário a enfrentar severas dificuldades para o exercício das suas garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa quanto ao acompanhamento do feito punitivo, na medida em que o Estado se recusa a arcar com as despesas de transporte e diárias do funcionário processado para participar de atos processuais que a este dizem respeito.

No modo de ver deste artigo, a exegese que alguns têm promovido em relação aos dispositivos legais não se afina com a interpretação sistemática da Lei federal n. 8.112/1990, nem menos ainda com a efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Primeiro ponto radica na previsão expressa do Estatuto dos Servidores Públicos Federais de que o servidor público tem direito a acompanhar o processo administrativo disciplinar pessoalmente (art. 156, "caput") e de que o inquérito administrativo obedecerá ao princípio do contraditório, assegurada ao acusado ampla defesa, com a utilização dos meios e recursos admitidos em direito (art. 153), além de que, na apuração de irregularidades no serviço público, seria assegurada ao acusado ampla defesa (art. 143).

Como efetivar a disposição legal de que o acusado tem o direito de pessoalmente participar da instrução, se um servidor, por exemplo, lotado na região Nordeste no momento da instauração do processo administrativo disciplinar, tem que arcar com os custos de diárias de hotel, alimentação, viagens aéreas de ida e volta, táxis, para cidade do Rio Grande do Sul onde tramita o feito acusatório, se "quiser" (como se fosse uma questão meramente voluptuária defender-se) reinquirir testemunhas, acompanhar diligências, reconhecimentos de coisas ou pessoas, acareações, reprodução simulada dos fatos, dentre outros atos processuais instrutórios? E quem não possui recursos para isso, como fica – no total desamparo?

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Pense-se no custo de cada deslocamento para oitiva de várias testemunhas, em datas intercaladas, fora os demais atos processuais diversos, entre regiões distintas do Brasil? Imagine-se, grife-se, ainda na hipótese de um funcionário de menor faixa remuneratória: como poderá, efetivamente, exercer seu direito de ampla defesa e custear seu transporte e despesas de estadia para o local de atividade probatória?

A situação se agrava quando se considera que, no processo administrativo disciplinar, diferentemente do processo penal em que a garantia de defesa técnica é obrigatória, vigora, por força do enunciado da Súmula Vinculante 5, do Supremo Tribunal Federal ("A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição"), a facultatividade da atividade defensória por advogado, modo por que, ausente o acusado para o ato processual realizado em outra cidade, notadamente por falta de recursos financeiros para custear o deslocamento, o servidor não terá sequer nomeado pela Administração Pública um defensor dativo "ad hoc" para a ocasião, consumando-se um processo com fase instrutória marcada pela unilateralidade, desafinada, em última instância, com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pelo menos sob uma ótica realista.

A quem serve um processo administrativo disciplinar assim desenvolvido? É bom para uma Administração Pública, inserida num Estado de Direito democrático, colher a prova unilateralmente, sem o "incômodo" da fiscalização pela presença do servidor acusado ou de seu advogado, excluído por falta de recursos financeiros para acompanhar a instrução processual?

Sim, pois a falta de condição econômica termina funcionando como fator restritivo do exercício do direito de contraditório e de ampla defesa pelo servidor acusado, privado, por força da incapacidade financeira, de se defender adequadamente nos autos de um processo que pode redundar na própria perda do cargo público ou da aposentadoria do processado. A Administração Pública, com essa interpretação que lhe é conveniente dos preceptivos legais em apreço, consuma toda uma fase instrutória sem propiciar ao menos o direito de participação do acusado, na contramão das aspirações democráticas do processo administrativo disciplinar na atualidade.


3. Importância da instrução para o desfecho do processo administrativo disciplinar

Não se pode ignorar a importância da fase de coleta de provas para o desfecho do processo administrativo disciplinar.

É por intermédio da prova que a autoridade julgadora poderá formar sua convicção segura sobre o cometimento de falta disciplinar ou sobre a inocência do servidor acusado, porquanto a imposição de penalidades funcionais não pode decorrer de eventos imaginários, nem de presunções de culpa.

Egberto Maia Luz confirma que a prova tem sua capital importância por colaborar para robustecer, decisivamente, a certeza da responsabilidade a que é chamado o servidor ou, ao contrário, para elidir a imputação e evidenciar a inocência do acusado. Nota que a instrução probatória trata da admissão dos elementos que conduzem à verdade jurídica, pressuposto primeiro da distribuição da justiça no campo disciplinar, visto que é na produção probatória, como demonstração da verdade dos fatos, que se deve alicerçar a decisão final do processo punitivo administrativo. [01]

Instruir significa colher os elementos necessários para esclarecer os fatos em torno dos quais se circunscreve a questão da prática de falta disciplinar, sua materialidade e autoria e mais circunstâncias pertinentes, de maneira a permitir que a autoridade ou órgão julgador disponha dos meios de informação para formar sua convicção sobre a inocência ou culpabilidade do acusado, a fim de com isso decidir o processo administrativo disciplinar ou a sindicância punitiva diante de provas seguras, de acervo fático cujo conteúdo tenha sido perfeitamente elucidado mediante as atividades instrutórias desenvolvidas.

Enfim, as provas prestam-se ao decisivo papel de esclarecer e de carrear aos autos todas as informações sobre os fatos relacionados à prática de transgressão disciplinar, com vistas a permitir o julgamento correto pela autoridade ou órgão competente, além de produzir o efeito da objetividade no exercício do poder disciplinar da Administração Pública, porquanto as decisões sancionadoras serão necessariamente baseadas nos elementos probatórios produzidos nos autos, em regime de contraditório e com amplitude de defesa em favor do acusado, de modo a reduzir a margem ao arbítrio na fase decisória, especialmente porque os atos administrativos devem ser motivados, com a declaração das razões fáticas e jurídicas pelas quais são praticados.

A Lei n. 8.112/1990 dita que é assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial (art. 156, caput).

Conquanto o texto legal refira que o acusado tem o direito de acompanhar a instrução, na verdade o papel da defesa não consiste em assistir passivamente o desenrolar dos atos probatórios pelo colegiado oficial, mas compreende a prerrogativa de agir e reagir, propor provas e contraprovas, impugnar a validade daquelas produzidas pelo trio processante.

Como consignamos em nosso livro Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública [02] (disponível pela editora Fortium em www.editorafortium.com.br, em direito administrativo):

"Isso porque a instrução não é atividade exclusiva da trinca oficial, mas também cenário de ativa intervenção e participação necessária da defesa, em vista de que o processo administrativo disciplinar deve ser dialético, produto de uma recíproca contraposição de meios probatórios e de interpretação contraditória de fatos, a fim de que das visões e teses opostas surja o luminar mais próximo possível da verdade fática, ante cujo conteúdo deve a autoridade julgadora proferir sua decisão.

Como o acusado poderia demonstrar sua inocência, ou ao menos a existência de dúvidas na versão acusatória articulada, se a ele não é permitido juntar aos autos documentos, ouvir testemunhas, requerer a realização de perícias sobre matérias de conteúdo técnico ou que reclamam esclarecimentos por expertos, consumar diligências, apresentar sua defesa de viva-voz perante o órgão acusador em interrogatório, enfim, como se poderia falar de defesa com amplitude em feito no qual somente preponderam os elementos de acusação e em cujo procedimento não é deferida a possibilidade de o servidor processado participar dos atos de coleta de prova para impugnar os fatos daí hauridos ou a validade formal do meio de instrução, além de apresentar suas reinquirições e redargüições pertinentes, de forma a permitir uma visão dúplice e contraditória do cenário fático derivado do meio probatório realizado?

A instrução do processo administrativo disciplinar e da sindicância punitiva deve obedecer ao regime de contraditório, de sorte que não se tolera que a coleta de provas se transforme em procedimento unilateral e exclusivo do colegiado oficial, exigindo-se não só o acompanhamento e intervenção do acusado em todos os atos, como também a concessão e deferimento dos pedidos instrutórios de iniciativa da defesa.

O acusado não é inerte expectador da atuação probatória exclusiva oficial, mas deve ativamente intervir na coleta de provas, uma vez que o pressuposto é de que, em razão da dialética processual, com o pensar e o repensar de teses acusatórias e defensórias contrapostas e a diferente interpretação de fatos e meios probatórios, a Administração Pública terá melhores condições de proferir um julgamento mais acertado, satisfazendo, em última instância, o ideal de concretização da justiça na seara disciplinar."

Decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT:

"Instaurado o procedimento administrativo deve o servidor ser intimado para a prática de todos os atos do processo, principalmente a oitiva de testemunhas, não tendo a posterior comunicação ao servidor o condão de tornar válido o ato praticado à sorrelfa pela autoridade impetrante, o que nulifica de forma absoluta o ato assim praticado. Pena imposta pelo sr. Governador, com fulcro em conclusões havidas em processo de tal jaez, é absolutamente nula, devendo o servidor ser reintegrado no cargo, com todos direitos e vantagens a partir da data da prática do ato." [03]

Pontificou o egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: "Não pode a Administração pretender a convalidação do procedimento em que não ensejou a participação do servidor que, ao final, seria punido." [04]

Como se pode traduzir que o direito de acompanhar a instrução de processo administrativo disciplinar, em tramitaçao fora da sede funcional do servidor processado, é privilégio do acusado com condições financeiras, com poder de pagar viagem e hospedagem, e fragorosa desventura do funcionário menos favorecido, obrigado, por insuficiência financeira, a literalmente assistir o curso unilateral da atividade instrutória?

Só os servidores mais abastados devem ter o direito de acompanhar a instrução de processo administrativo disciplinar? E até os que ganham mais – são obrigados, em muitos casos, a gastar tudo o que possuem, ficando em dificuldades econômicas, porque a Administração resolveu proceder a uma interpretação restritiva da concessão de diárias e transporte ao acusado?


4. Por uma Interpretação extensiva dos incisos I e II do art. 173 da Lei federal n. 8.112/1990

A interpretação das leis deve ser promovida à luz da Constituição Federal.

Afigura-se mais compatível com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa entender que a interpretação dos comandos legais em comento deve ser a teleológica e extensiva: a lei disse menos do que pretendia. "Lex dixit minus quam voluit". A finalidade dos dispositivos foi de proporcionar que o servidor público acusado, em processo administrativo disciplinar ou sindicância punitiva, tivesse condições de exercer sua atividade defensória plenamente, sem prejuízo de seu sustento e de sua família, em caso de o feito contra ele instaurado tramitar em cidade distinta da sede funcional do funcionário, mormente nas hipóteses de longas distâncias envolvidas, quando o agente público processado tem que arcar com passagens aéreas onerosas, táxis, hospedagem, alimentação, em locais estranhos, onde não possui familiares nem acomodações com amigos. Foi para essas situações que se previu o pagamento de diárias.

Carlos Maximiliano lembra [05]:

"Toda prescrição legal tem provavelmente um escopo, e presume-se que a este pretenderam corresponder os autores da mesma, isto é, quiseram tornar eficiente, converter em realidade o objetivo ideado. A regra positiva deve ser entendida de modo que satisfaça aquele propósito; quando assim se não procedia, construíam a obra do hermeneuta sobra a areia movediça do processo gramatical. Considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática."

Não se justifica interpretar particularmente o inciso I do art. 173 do Estatuto dos Servidores Públicos Federais no sentido de que a lei apenas pretendeu cobrir os custos de deslocamento quando o próprio servidor ia prestar declarações em seu interrogatório, negando-se-lhe o direito indenizatório mais que justificado em caso de acompanhamento de outros atos processuais igualmente de relevo, como oitivas de testemunhas e de produção de outros tipos de prova, vitais para que o processo administrativo disciplinar respeite, com efetividade, sua feição contraditorial e de amplo desforço defensório.

É necessário lembrar que o interrogatório é o último ato da instrução, precedido de toda uma série de medidas probatórias precedentes, nas quais era vital a oportunidade de participação do acusado, ainda mais em um tipo de procedimento (do processo administrativo disciplinar) em que não existe a garantia de defesa técnica obrigatória.

Se o servidor tem que se defender pessoalmente, sem contar com o patrocínio de advogado pelo Estado em caso de omissão (salvante a designação de defensor dativo ao acusado revel indiciado) como aceitar que a Administração lhe negue o direito, por via transversa, ao recusar o custeio de diárias e transportes para atos processuais de processo administrativo disciplinar em trâmite em lugar remoto e de oneroso deslocamento?

Não reside justificativa razoável no sentido de se compreender que apenas a viagem e a estadia para o interrogatório seriam custeadas, enquanto todos os demais atos processuais de interesse e participação do acusado seriam (quando na verdade não o são) irrelevantes e não custeados pelo Estado, deixando o servidor à própria sorte e remetido às suas condições financeiras: o funcionário com dinheiro se defenderia, ainda que em prejuízo monetário seu e de sua família; o com menor grau remuneratório, incapaz de pagar os ônus econômicos do deslocamento, não teria direito a exercitar plenamente a sua atividade defensória ampla – e, com a devida vênia da expressão, "que fosse reclamar para o bispo", já que a Administração se escudaria no teor da Súmula Vinculante n. 5, da Suprema Corte, para consumar tamanha injustiça.

É essa a interpretação justa e correta do dispositivo legal? É em tamanha iniquidade que deve desaguar a interpretação jurídica? Vale a lição do saudo Carlos Maximiliano em sua obra clássica [06]:

"Assim o jurista: como todo cultor da ciência relacionada com a vida do homem em comunidade, não poderá fechar os olhos à realidade; acima das frases, dos conceitos, impõem-se, incoercíveis, as necessidades dia a dia renovadas pela coexistência humana, proteiforme, complexa."

O aplicador da norma não pode esquecer o custo de um hotel razoável, o gasto com alimentação, táxis, passagens aéreas e outras despesas, que recaem sobre o servidor já no transtorno de se ver processado em cidade distinta de sua sede funcional, situação que reclama a adoção de medidas pela Administração Pública no sentido de atenuar a situação do acusado, e não de agravá-la com a remessa às suas custas, à ventura de ostentar condições econômicas, ou a desventura de sofrer de restrições financeiras, determinantes da impossibilidade de acompanhar o processo administrativo disciplinar.

As consequências narradas desse manifesto cerceamento indireto da atividade defensória impõem um juízo pela revisão da exegese que se tem conferido aos incisos I e II do art. 173 da Lei federal n. 8.112/1990.

Não se pode confundir essa situação de impotência financeira, determinante da perda do direito sagrado de acompanhar o feito punitivo, com a do servidor acusado que, por mero capricho ou estratégia processual defensória, prefere não comparecer a ato processual realizado em processo administrativo disciplinar em curso na mesma sede da repartição onde lotado.


5. Princípio constitucional da isonomia

Por outro ângulo, por força do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, "caput", Constituição Federal de 1988) no processo administrativo disciplinar, se o art. 173, II, da Lei federal n. 8.112/1990, assegura transporte e diárias para os membros da comissão e ao secretário, quando obrigados a se deslocarem da sede dos trabalhos para a realização de missão essencial ao esclarecimento dos fatos, por iguais motivos o deslocamento do servidor acusado da sede funcional onde lotado, para participar de atos processuais instrutórios de feito sancionador em curso em outra cidade, deve ser, sim, indenizado, sob pena de violação do princípio da paridade de armas e de proteção dos acusadores em detrimento da defesa, o que não se pode convir.

Não pode o Estado patrocinar a acusação, mas recusar o mesmo benefício à defesa, pena de romper-se o equilíbrio das "partes" (acusação x defesa, embora a própria Administração Pública julgue o feito) no processo administrativo disciplinar.

Outra vertente mais grave da violação da isonomia respeita à premissa estabelecida pelos exegetas da interpretação restritiva da lei: os ricos ou funcionários de melhor condição econômica que se defendam, os servidores menos favorecidos que assistam, fragilizados, a um monólogo instrutório, incapazes de pagar pelo direito de acompanharem a instrução do processo administrativo disciplinar!


Conclusão

De todo o exposto, conclui-se que o art. 173, I e II, da Lei federal n. 8.112/1990, deve receber interpretação extensiva, no sentido de que a Administração Pública deve custear diárias e transporte para o servidor participar de atos processuais realizados em processo administrativo disciplinar que tramita em lugar diverso da sede funcional onde lotado o acusado, não somente para o interrogatório.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da administração pública. Brasília: Fortium, 2008.

LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo disciplinar: teoria e prática. 4 ed. rev. atual. e ampl., Bauru: Edipro, 2002.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 126


Notas

  1. LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo disciplinar: teoria e prática. 4ª. ed. rev. atual. e ampl., Bauru: Edipro, 2002, p. 177-178.
  2. CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da administração pública. Brasília: Fortium, 2008, p. 487 ss.
  3. Mandado de Segurança 20010020079302-MSG/DF, registro do acórdão 172659, julgamento de 04.02.2003, Conselho Especial, relator o Desembargador Pedro Aurélio Rosa de Farias, DJU de 21.05.2003, p. 81.
  4. Apelação Cível e Remessa de Ofício 20000110196303-APC/DF, registro do acórdão 166294, julgamento de 16.09.2002, 1ª Turma Cível, relatora a Desembargadora Ana Maria Duarte Amarante, DJU de 05.02.2003, p. 24.
  5. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 151-152.
  6. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 126
Sobre o autor
Antonio Carlos Alencar Carvalho

Procurador do Distrito Federal. Especialista em Direito Público e Advocacia Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado em Brasília (DF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Pagamento de diárias e transporte no processo administrativo disciplinar.: A interpretação do art. 173, I e II, da Lei n.º 8.112/1990. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2298, 16 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13693. Acesso em: 19 dez. 2024.

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